sábado, 13 de junho de 2020

ENTREVISTA COM A ESCRITORA CATARINENSE URDA ALICE KLUEGER

Urda Alice Klueger nasceu em Blumenau, cidade onde construiu sua carreira literária. Historiadora fotograduada e pós-graduada na Universidade Regional de Blumenau, é autora de quase vinte livros entre romances, crônicas, relatos de viagens e literatura infanto-juvenil, dos quais se destacam: “Verde Vale” (1979), “No Tempo das Tangerinas” (1983), “Cruzeiros do Sul” (1992), “Entre Condores e Lhamas” (1999), “No Tempo da Bolacha Maria” (2002) e “Sambaqui” (2008). Militante dos movimentos sociais, Urda atua também como editora e pesquisa a arqueologia do litoral de Santa Catarina. Nesta entrevista, concedida ao Sarau Eletrônico em novembro de 2008, a escritora fala, entre outros assuntos, sobre sua infância, sua obra, sua história de vida e sobre sua passagem por grandes veículos da imprensa escrita catarinense.




“Meu sonho de consumo era ser sócia da Biblioteca”

(Entrevista: Viegas Fernandes da Costa / Fotos: Gabriel Severo Venco Teixeira da Cunha)


Gostamos de começar nossas entrevistas perguntando a respeito da história de vida dos nossos entrevistados. Onde a Urda nasceu e se criou?

Sou blumenauense. Nasci na Rua XV, no tempo em que meus pais moravam lá. Eles eram muito de se mudar, ir para a praia, voltar da praia, então morei muito cá e lá. Mas toda a minha base é de Blumenau. Tanto meu pai quanto minha mãe eram egressos da agricultura. Ambos saíram da agricultura por causa da 2ª Guerra Mundial: meu pai, blumenauense, porque foi ser soldado, e minha mãe porque veio de Tijucas ocupar o espaço que a guerra abriu nas fábricas porque os rapazes foram para o exército. Aquele tempo era o tempo em que as mulheres obedeciam aos homens, e meu pai se criou e trouxe para nós todo um pensamento de direita, vamos dizer assim. Nesses cinco anos em que ficou no exército por conta da guerra – ele deu baixa quando começa a guerra e é chamado de volta quando o Brasil entra na guerra – , passou a admirar profundamente o exército. Em 1964 ele apóia o golpe militar, e não só ele, mas meus vizinhos, os parentes e todo mundo. Então sou criada dentro da direita, e só bem mais tarde vou fazer a caminhada para o outro lado. Sou da geração do medo, porque as pessoas sumiam, os nossos professores e amigos sumiam. Alguns voltavam, alguns não voltavam. Tive um professor muito querido, o Ewaldo Trierweiler, que foi levado pela ditadura, preso e torturado no porão de um navio em Itajaí. Então a gente tinha muito medo de falar as coisas. A partir dos 16 ou 17 anos morei na casa de uma prima, que era um pouco mais nova do que eu, e nós íamos juntas para a escola, ficávamos juntas durante o recreio, voltávamos no mesmo ônibus, com a mesma turma, fazíamos os deveres juntas, fazíamos as tarefas domésticas, íamos fumar um cigarrinho escondidas, e tudo isso fazíamos juntas e com medo. Desde a hora em que acordávamos, até a hora em que íamos dormir, não tínhamos coragem de falar sobre nossos pensamentos políticos. Em 1964, quando se dá o golpe, eu tinha 12 anos e era muito criança. Mas a gente foi crescendo e, a partir de certo momento, começamos a sentir o peso da pressão do medo. As novidades políticas, as mudanças de pensamento, o que estava acontecendo lá fora, não chegavam através dos jornais, das rádios ou das revistas, mas através da música: Chico Buarque, Caetano Veloso e outros. Mas era uma resistência muito difícil. O disco saía e logo era apreendido, porém todo mundo já o tinha decorado ou comprado. As músicas eram de uma crítica muito velada, mas para nós elas diziam tudo. Hoje algumas dessas músicas são tidas como músicas de amor. Tem uma música do Chico Buarque que diz “Hoje você é quem manda/ Falou ta falado/ Não tem discussão/ Não” e que as novas gerações pensam que é uma música de amor, de namorados brigando, mas é o Chico falando com o Presidente da República. A gente tinha essa consciência.

 

Em várias entrevistas que concedeste, falas dessa geração do medo, de como subias os morros...

Era um poço!  Na casa da minha prima tinha um gramado onde tínhamos visão para todos os lados, e no meio desse gramado tinha um poço desativado. Sentávamos sobre este poço para conversarmos sobre nossas idéias políticas. Porque ali podíamos observar em todas as direções e não havia ninguém que nos pudesse ouvir. Quando os pais da minha prima nos ouviam conversando, enquanto lavávamos a louça ou alguma coisa assim, vinham-nos dizer “fiquem quietas! Pode ter alguém do lado de fora escutando”. A Marlene de Fáveri fez um levantamento sobre o medo na 2ª Guerra Mundial e conta muitos exemplos destes. Era um outro tempo, outro momento, mas equivalente. Tinha coisas que a gente jamais diria em um ponto de ônibus, por exemplo, porque havia gente escutando e que poderia nos denunciar, e assim como tinha gente sumindo, nós também poderíamos sumir.


Quando conversamos com as pessoas sobre este período em Blumenau, o que muitas vezes ouvimos é que a ditadura não teria chegado aqui. Ao te ouvir falar, tenho a impressão que este medo veio principalmente pela fala dos teus pais e também pela música. Mas para teres consciência daquilo que a música dizia, tu já tinhas consciência de que alguma coisa estava instalada. Como surge esta consciência?

É aos poucos. O general mandava e a gente obedecia. Meu pai tinha aquela concepção de soldado: obedece e pronto! Mas nesse período vivi muito tempo fora de casa, então acho que a influência veio da escola, da concepção dos nossos professores. Hoje sei que determinados soldados que andaram se matriculando no ginásio, no científico, do Colégio Pedro II, onde eu estudava, estavam lá não como alunos regulares, mas como espiões. Então os professores calavam a boca, e aqueles que não a calavam e diziam o que pensavam... Como foi o caso do professor Ewaldo Trierweiler, que clamava por justiça social – ele era muito religioso, católico, e clamava por uma justiça social quase que bíblica – , o que o levou para a prisão. Então esse medo vai se criando conforme a gente vai crescendo e aprendendo que não podemos falar. E até hoje acho que não superei este medo. Quando o Décio Neri de Lima foi eleito pela primeira vez prefeito de Blumenau, nós fizemos campanha para ele, e na hora da apuração dos votos saímos festejando em carreata. Foi juntando carro e, atrás da caminhonete onde eu estava, chegou uma Kombi cheia de auto-falantes tocando músicas ditas cívicas, como o Hino Nacional. Em cima dessa caminhonete estava um amigo meu, o Ferretti, e éramos da mesma idade. Os outros que estavam ali eram mais jovens, e para eles toda aquela festa era normal. Conforme a carreata entrava pelo Garcia, este amigo e eu fomos dizendo “meu deus, nós vamos passar na frente do Batalhão! Nós vamos passar no Batalhão! E o que vai acontecer? Estão tocando o Hino Nacional em uma carreata!” Nós entramos em pânico. Passamos pelo Batalhão, criei-me lá perto, sei onde é a casa do comandante, ele estava no jardim assistindo a passagem da carreata, foto e nós passamos com aquela Kombi cheia de gente, tocando o Hino Nacional, e não aconteceu nada! Até hoje tem coisas que me causam medo. Botaram isso na gente! Fico pensando nessa coisa da gente ter medo do Batalhão. Tinha aqui em Blumenau um coronel que era tido como o bicho-papão de Blumenau. O nome dele era Coronel Brandão, já publiquei até em livro essa história. Nas sextas-feiras e nos sábados à noite ele pegava um grupo de soldados e saía pelas ruas de Blumenau. Se tu estavas em uma festa, na época tinha as boates familiares que eram mais frequentadas pelos jovens do Centro, ao saíres tinhas que retornar diretamente para casa. Se estavas em três, já podias ser acusado de estar formando o “grupo dos onze”. Então esse coronel saía pelas ruas e, quando encontrava um grupo com mais de três pessoas, levava todos presos, principalmente se estivessem conversando. Levava preso como subversivo ou como maconheiro, mesmo que a pessoa jamais tivesse consumido maconha. Ele mesmo levava para o Batalhão e ele mesmo se encarregava de torturá-los, enfiando a cabeça do preso no bacio do banheiro, por exemplo. Tenho uma amiga que passou por isso, e ela estava só dando uma voltinha depois da festa.


Ao lermos teus textos, principalmente tuas crônicas, percebemos que a tua mãe teve uma presença muito forte dentro de casa, exercendo quase que a função de uma matriarca. Como era a relação com a tua mãe? A impressão que se tem é que ela exercia certo domínio e até mesmo um aprisionamento. Como consegues te desvencilhar disso, inclusive saindo de casa bastante cedo?

Minha mãe era forte, tanto é que quando vem para Blumenau será discriminada principalmente por três coisas: ser brasileira, católica e não saber falar alemão. Já o meu pai era o cara “certo” no lugar “certo”: brasileiro também, mas dito alemão porque era da segunda geração dos nascidos no Brasil, luterano e sabia falar alemão. Então minha mãe era rejeitada pela família de meu pai e pela sociedade em geral, e acho que isso vai gerar nela essa coisa de ter que ser muito forte e fazer exigências. Ela era uma católica muito fervorosa, e só se casaria com meu pai se fosse na Igreja Católica e se os filhos fossem criados no catolicismo. Mas a minha saída de casa foi diferente do habitual. Não fui eu quem saí, mas meus pais. Eles foram morar na praia quando eu já estava na idade de ficar estudando aqui em Blumenau, e me deixaram aqui aos quatorze anos. Nessa altura eu tinha que ficar para estudar. Para mim foi uma maravilha! Como minha mãe era muito durona, eu teria levado mais uns três ou quatro anos para sair à noite, ir ao cinema, coisa e tal. Fiquei morando em um colégio de freiras muito legais. Desde que a gente fosse em duas ou três, ou com alguém de maior, elas nos autorizavam a sair. Então eu ia ao cinema duas ou três vezes por semana – ainda não tínhamos televisão –, a festinhas e a bailes.


E quando teu pai adoece, vais para Armação?

Não, nunca mais voltei para casa. Eu só voltava nas férias e nos finais de semana. Quando eu tinha 16 anos meu pai cai mesmo doente. Ele tinha tuberculose, o que na época era estigmatizante, e foi escondendo a doença até o dia em que, de tão fraco, desmaiou. Ficou quatorze meses internado em um sanatório muito rigoroso, o Santa Beatriz, lá em Itajaí, e acabei assumindo o lugar dele. Então acabaram meus finais de semana, meus bailes e cinema, porque eu saía correndo das aulas, aos sábados pela manhã, para pegar o ônibus na rodoviária. Sábados e domingos eram os dias de maior movimento no restaurante – ele tinha restaurante e sempre lidou com este ramo. Nas férias eu trabalhava no restaurante todos os dias, fazendo o que ele fazia: controle de estoque, atendimento ao cliente, caixa, providenciando tudo que se tem que providenciar em um restaurante. Minha mãe fazia a parte da cozinha, e durante a semana ela fazia as duas coisas. Eu tinha uma irmã pequena. Então lutei bastante desde muito cedo.


Depois que terminas os estudos, com o que vais trabalhar?

Minha primeira profissão, além do trabalho no restaurante, foi telefonista da Telesc. Blumenau era a única cidade de Santa Catarina que tinha DDD. Tem algumas coisas que acho que vale a pena registrar. Se você quisesse falar com Tubarão, por exemplo, era um inferno! Tinha uma linha para Tubarão via Florianópolis. Na década de 1970 nenhuma pessoa física tentaria ligar para Tubarão; pegaria um ônibus e iria até lá. Mas havia as firmas que precisavam falar com Tubarão, e para isso um funcionário tinha que chegar mais cedo pela manhã para pedir ligação para lá. Nós passávamos para Florianópolis, e lá levava seis horas para passar a ligação, e essas seis horas levavam 24, 48. Isso é só um exemplo. Poucas pessoas tinham telefone em casa, e quando nascia ou morria alguém, ou quando se tinha o namorado em outro estado e havia a necessidade de se telefonar, tinha-se que ir a um lugar chamado PS, um posto de serviço em que havia cabines onde eram feitas as ligações. Então nós, telefonistas, tínhamos condições de ouvir as conversas, embora a pessoa que estivesse na cabine não soubesse disso. Lembro-me de um caso, para ilustrar, de um casal. O moço era daqui e a moça lá de João Pessoa, na Paraíba. Eles tinham se casado, mas não havia dado certo e se separaram. Porém, amavam-se profundamente, e todas as manhãs de sábado ele ia para o posto, o mesmo fazia ela lá em João Pessoa, para conversar por telefone. E eram lindas conversas de amor! Todas as telefonistas entravam na linha deles para ficar escutando, e nós nos desdobrávamos para fazer a ligação deles.  Não podíamos pedir para Recife, Brasília ou outros lugares para fazer essa ponte com João Pessoa; tínhamos que pedir para São Paulo. Se não pedíssemos para São Paulo, podíamos receber uma punição, mas fazíamos todas as pontes possíveis e imagináveis para colocar os dois a falar. Eu gostaria de saber um dia o que aconteceu com eles. Depois trabalhei em um laboratório de bioquímica de um professor meu, o professor Lothar Krieck , que hoje é nome de escola. Depois andei fazendo um curso de informática, quando o computador ainda era à manivela, isso lá por 1971. Fiz o curso inteiro e não cheguei a ver um computador! Era um curso de programação. Foi quando percebi que estava enjoada de Blumenau. Eu queria ir embora! O mundo estava acontecendo, o movimento hippie estava acontecendo, tudo estava acontecendo e eu aqui nesta cidade tapada e colona que era – e ainda é, não mudou muito – Blumenau. Então tinha umas coisas acontecendo, acreditava-se no “milagre econômico”, e tinha a SUDENE, a SUDAM e outros órgãos do governo sobre os quais saíam revistas maravilhosas contando as coisas que eles estavam fazendo. Com esse diploma nas mãos, escrevi cartas para a SUDENE, SUDAM etc, à mão, pedindo emprego. Tenho as respostas guardadas até hoje. Depois pensei que poderia achar um emprego aqui em Santa Catarina. Peguei a lista telefônica do estado, fui olhando cidade por cidade e vendo quais as firmas que tinham nome em letras grandes. Eu não sabia que firmas eram essas, mas deviam ser firmas grandes, e mandava uma carta padrão. Comecei a receber respostas. Lembro que a primeira resposta que recebi foi da SUDENE. Eu desejava muito ir para o Nordeste, e aquilo foi uma coisa mágica! E de repente uma firma de Correia Pinto, que fica perto de Lages, chamou-me para fazer um teste. Fiz, passei e fui trabalhar lá. O interessante é que essa firma, que se chamava Papel e Celulose Catarinense, pertencia à família Klabin, e empregava uma barbaridade de gente. Só naquele local onde eu trabalhava havia mais de mil trabalhadores, fora os reflorestamentos, que naquela altura eu não tina consciência do mal que faziam para a nossa natureza. Tanto é que nós nos orgulhávamos muito: “os nossos reflorestamentos vão até a divisa com a Argentina!” Hoje tudo isso está nas mãos de uma multinacional, cuja maior fazenda ajudei o Movimento dos Sem Terra a ocupar. Então veja as voltas que a vida dá.


Considerando diversos textos teus, e assistindo ao filme “Por Causa do Papai Noel”, de Mara Salla, concluímos que começas a ler em função de um acidente de bicicleta que tiveste na infância, onde tiveste que ficar imobilizada por conta de um tornozelo quebrado.

Na verdade, esta imobilidade me deu mais tempo para ler, porque começo a ler muito desde o momento em que sou alfabetizada. Morávamos em Balneário Camboriu, e meu pai veio para Blumenau para que eu pudesse entrar na escola. Estava passando o período de eu entrar na escola, e lá em Balneário não tinha nada, só uma escolinha muito longe. Era uma escola reunida, e para chegar lá eu teria que caminhar pelo mato. Então eles acharam melhor voltar. Quando minha mãe foi à escola para me matricular, as matrículas já tinham passado e não havia mais vagas. A diretora disse a minha mãe: “a senhora a leva para casa, ensina um pouco, e ela entra junto com o primeiro ano de repetentes”. Então foi muito engraçado essa coisa de eu ser alfabetizada, porque minha mãe usou o método em que ela foi alfabetizada: b + a = ba, b + e = be, b + i = bi. Aprendi as sílabas, conheci-as todas, mas não juntava sílaba com sílaba. Houve um domingo de manhã, tínhamos chegado da missa, e minha mãe tirou um tempo antes do almoço para me fazer estudar mais um pouco. E eu lá: b + a = ba, t + a= a, t + a = ta. E ela: “o que é que dá?” E eu nada. Íamos de novo, e de novo, e de novo, e eu nunca que chegava na batata. De repente ela ficou furiosa, deu-me uma “porrada” na cabeça e eu disse “batata”. Daquele momento em diante eu estava alfabetizada. Começaram as aulas. Como era uma turma de repetentes, alguns daqueles alunos já tinham completado 14 anos e saíam para trabalhar nas fábricas, considerava-se que era gente já alfabetizada e por isso não tinha cartilha para aprender a ler e escrever. Porém havia o primeiro livro de leitura, e no primeiro dia em que o recebi – ele tinha as lições, com letras grandes, mas textos em letra pequena, como a apresentação –, levei para casa e li tudo no primeiro dia, e teve alunos na minha sala que nunca o leram até a metade. Depois comecei a ler compulsivamente. Tanto é que meu sonho de consumo de infância era fazer doze anos para poder ser sócia da Biblioteca Pública Municipal Doutor Fritz Müller. Até os doze anos eu havia lido tudo que tinha na minha casa, nos meus vizinhos e na minha escola. Isso engloba livro, revista, jornal e tudo o que estivesse ao meu alcance, inclusive as enciclopédias Barsa e Delta Larousse. E quebrar o tornozelo nessa altura foi uma coisa magnífica, porque nos primeiros meses eu ainda não era sócia da biblioteca, tinha apenas onze anos, mas depois sim. Eu não podia andar, meu pé perdia a firmeza, mas andar de bicicleta podia. Então ia de bicicleta à biblioteca, e não conseguia dormir enquanto não acabasse o livro. Eu fazia de conta que estava dormindo para minha mãe ir dormir, e quando estava tudo em silêncio, acendia a luz e acabava o livro.


Para os padrões brasileiros, começas a publicar tarde...

Eu tinha uns 26 anos. Eu não levava a sério! Escrevia direto, mas... Teve um período, quando eu tinha 13, 14 anos, em que persegui outras linguagens. Tentei pintar, tentei fazer histórias em quadrinhos, tentei fazer projetos de plantas baixas, mas aquilo não me preenchia. O meu negócio era mesmo escrever, mas ninguém escrevia! Escrever era uma anormalidade. Eu até tinha visto um escritor, uma vez. Era o professor José Ferreira da Silva. Certa vez, quando eu estava na biblioteca pegando um livro, alguém me disse: “aquele lá é um escritor”. Fiquei atrás da porta, olhando por uma fresta. Ele estava sentado do lado de fora, no jardim dos fundos da Fundação Cultural, em uma mesa e com uns papéis. Fiquei espiando: “aquilo era um escritor!” Porque eu achava que os escritores ou já tinham morrido, ou moravam em algum lugar distante, mas que não existiria um escritor aqui. Aos 14 anos, lá em Armação, vou conhecer um escritor de verdade, o Marcos Konder Reis, que foi meu amigo até a morte. Trocamos 35 anos de correspondência. As cartas que o Marcos me mandou, recentemente doei para o museu histórico de Itajaí, e muitas das que escrevi para ele tenho as cópias em carbono. Estas ainda não doei porque as quero reler. Uma parte da minha vida está ali. Bem, tinha um tema que me apaixonava mais, que era o tema da imigração e vou ler sobre todas as imigrações possíveis e imagináveis.


Alguma influência da tua avó, que era lituana?

Minha avó era imigrante, isso pode ter tido influência. Mas também o gosto pela história que desperta muito cedo em mim. Os meus livros preferidos eram os romances históricos. Alguns deles li várias vezes. Cito aqui “Os Frutos da Terra”, do Knut Hamsun, e “E o Vento Levou”, da Margaret Mitchell, entre outros. Então eu tinha aquela fascinação pelo romance histórico, mas não achava que o que fazia tinha alguma importância, algum valor, algum significado. Eu tinha vergonha, e escrevia escondida no mato, num bananal ou dentro de um grande galinheiro que havia lá em casa. Escrevia tudo em cadernos, e os guardava dentro do galinheiro, em um quartinho de guardar ração onde meus pais não iriam achar. Todo mundo nesse tempo escrevia cartas, porque não havia a facilidade do telefone e da internet, mas ninguém escrevia nada além de cartas. Sentia-me fazendo alguma coisa errada. E quando pensei em escrever uma coisa do início ao fim, perguntei-me do que gostava mais. Imigração. E a que eu mais entendo é daquela em que estou dentro, a imigração do Vale do Itajaí. Foi aí que escrevi o “Verde Vale”. A primeira pessoa para quem mostrei o texto foi o Marcos Konder Reis.


E o livro foi logo publicado?

Escrevi e datilografei em algumas vias. Mandei uma para o Marcos, outra para o "seu" José Gonçalves, aqui de Blumenau, e outra para o "seu" José Escalabrino Finardi , que escreveu a história de Ascurra. Todos os três se entusiasmaram e foram falar com seus editores, dizendo que tinha aparecido um livro que era diferente e era bom. Recebi então recados de duas editoras, a Lunardelli e outra de Porto Alegre. Quando me perguntam se é difícil publicar um livro, é difícil, todo mundo se queixa, mas para mim não foi difícil publicar. Fiz essa opção por Florianópolis porque ir a Porto Alegre era uma coisa muito distante, muito difícil. Acho que naquela altura eu não saberia ir a Porto Alegre resolver alguma coisa, enquanto Florianópolis era logo ali.

 

Qual foi a repercussão do “Verde Vale” no tempo do seu lançamento, e qual era a posição do Odilon Lunardelli a respeito desse livro?

O "seu" Odilon Lunardelli não leu o “Verde Vale”! Quem leu foi o Marcos Konder Reis e o "seu" José Gonçalves. Quem me levou lá foi o "seu" José Gonçalves, e pelo caminho, no carro, ele foi me explicando o que eu tinha que dizer e como negociar. Quando cheguei lá não aconteceu nada disso. O "seu" Odilon olhou para mim e perguntou: “essa é a Urda?” “É.” “Trouxeste o original do livro?” “Trouxe, está aqui.” Ele pegou, colocou na gaveta e disse: “sai lá pelo mês de junho.” Depois houve revisões, porque isso foi antes do tempo do computador e a edição empastelava. Essa era uma revisão que só o escritor podia fazer, porque só ele sentiria quando estivesse faltando uma linha, uma palavra ou até um capítulo. A revisão que hoje se faz é outra, e visa principalmente os erros de português. No “Verde Vale” faltou uma linha, e as primeiras nove edições saíram sem aquela linha. A cada nova edição eu dizia: “saiu de novo sem aquela linha.” E o "seu" Odilon: “mas por que não me avisaste que faltou uma linha?” Então a edição completa é a décima.


Teus romances, até o “Cruzeiros do Sul”, sempre foram identificados em relação à imigração germânica. Porém eles apresentam um diferencial em relação a obras anteriores de autores que trabalharam com a imigração, porque tu não trabalhas o germânico como algo puro, mas o germânico como aquele que comete a ousadia da miscigenação. É o descendente de alemães que se relaciona com o negro, com o índio, com o italiano ou com o brasileiro; um pouco da visão do Gilberto Freyre e sua “democracia racial”. Por que esta opção de trabalhar a temática germânica desta forma um pouco mais ousada, de uma germanidade miscigenada? Tiveste um contato anterior com a obra do Gilberto Freyre?

Tive contato com a obra do Gilberto Freyre depois que escrevi “Verde Vale” e “No Tempo das Tangerinas”. Parece que ganhei um rótulo: a escritora que escreve sobre Blumenau e sobre o alemão. As pessoas esquecem dos meus livros que são totalmente diferentes. Acho que o que pegou foi a miscigenação que havia dentro da minha casa. Nós éramos híbridos em tudo: culturalmente, etnicamente e religiosamente. E as rejeições que minha mãe sofreu refletiam muito na gente. Não era só ela que sofria, eu sofria também. Tenho lembrança de aniversários, casamentos, dessas festas que reúnem toda a família. Nós éramos três meninas muito bonitinhas, e pessoas da família me pegavam no colo e diziam: “estás vendo essa aqui, como é bonitinha? É do Rolando!” – que era meu pai. E aquilo tinha toda uma carga de preconceito. Ela era do Rolando, mas era também filha da brasileira. Isso reflete profundamente em mim, tanto é que nunca me senti alemã, mas sempre uma brasileira de muitas origens. E a partir de um certo momento, além de brasileira, passo a me sentir americana. Hoje, se me perguntarem, não diria cidadã do mundo, mas cidadã da América.


Costumo dizer que a tua obra é composta por duas fases. A primeira delas vai até o “Cruzeiros do Sul”, e neste livro, a partir da segunda parte, há uma ruptura. Porém mesmo na tua primeira fase há um livro, chamado “Te Levanta e Voa”, que vai abordar o movimento hippie. Como é que este movimento chega até ti? Houve uma Blumenau hippie?

Houve! Quando Blumenau fez 150 anos, foram gravados programas de 30 segundos com diversas pessoas que falavam sobre a Blumenau do passado. Cada qual escolhia sobre o que falar, e falar do “Opa” e da “Oma” era quase que unânime. Mas o que me marcou mesmo não foi a “Oma” e o “Opa”, mas o movimento hippie, e falei sobre o que tinha acontecido. Quando o movimento chega a Blumenau, os hippies vão se alojar num hotelzinho que tinha na rua Ângelo Dias. A partir de certo momento Blumenau entra nas rotas hippies. Nessa altura nós já estávamos totalmente fascinados pelos Beatles e por algumas coisas que estavam acontecendo no mundo, e quando os hippies começaram a chegar, para mim, aquilo foi o máximo! E eles passaram a ter um lugar de trabalho, que foi a escadaria da igreja matriz, hoje catedral. Eles passavam os dias, ali, fazendo sandálias e diversos artesanatos. O X-salada era uma coisa recente em Blumenau; acho que chegou junto com os hippies. Foi uma coisa tão incrível que nós só queríamos comer X-salada. E eles ficavam conversando sobre poesia, sobre filosofia, tocando música. Aquele espírito que vai nortear o modo de vida hippie de alguma forma estava ali junto, dentro da parte artística, porque muito do que se queria dizer era proibido. Se bem que este proibido tinha certo tamanho, porque nós podíamos, por exemplo, ir contra a guerra do Vietnã. Fizemos uma passeata contra a guerra do Vietnã no dia em que terminei o terceiro ano do científico. Então aquilo, para mim, era um fascínio! A todo momento eu estava enfiada lá no meio dos hippies. Meu pai não me deixaria ir embora com eles, mas meu sonho era ir embora com eles! Isso foi muito forte em minha vida, tanto é que não passou, ficaram as heranças daquela escadaria lá da igreja. E quando digo isso na televisão, nos 150 anos de Blumenau, várias pessoas me abordaram. Senhoras de blazer e salto alto me diziam: “você me fez viajar no tempo! Eu estava lá, fui junto com eles, andei descalça daqui até a Bahia, ou Bolívia, tocando flauta doce, e hoje não posso me referir a isso dentro da minha casa porque meus filhos e meus netos vão dizer que sou louca, que isso é uma vergonha, e você vai lá na televisão e fala!” Ou quem me dizia: “eu passava do outro lado da rua porque meu pai dizia ‘não chega perto, é tudo maconheiro, é perigoso’.”


Parece-me que “Cruzeiros do Sul” fechou um círculo na tua obra, e talvez seja o teu livro mais complexo e completo. Na sua estrutura, lembra um pouco “Cem Anos de Solidão”, do Gabriel García Márquez. O livro começa com uma estrutura muito parecida com a do “Verde Vale” e “No Tempo das Tangerinas”, depois vai tomando um fôlego maior, os personagens começam a se multiplicar e em um determinado momento a história, que começa lá na formação de Santa Catarina, chega ao tempo presente, na crise econômica do governo Sarney, crise que vivenciaste porque trabalhavas na Caixa Econômica Federal. Como nasceu o projeto do “Cruzeiros do Sul”? O que te motivou a escrever este livro? É aqui que começa a mudança do teu olhar, que até então dizias de direita? Porque neste livro a crítica social e a crítica à política econômica são muito fortes.

O “Cruzeiros do Sul” demorou quatro anos e meio para ser escrito, entre pesquisas, leituras e escritas. Fiz também algumas viagens durante esse tempo. Fui a Paris para ficar um mês, e lá fiquei muitas tardes, naquelas mesinhas na rua, tomando um cuba-libre e imaginando como iria continuar o “Cruzeiros do Sul”. Ele andou comigo por quatro anos e meio! Surgiu do Plano Cruzado, onde o povo tomou a frente fechando os supermercados e onde houve o congelamento dos preços. O lema era: “Tem que dar certo!” Como muita gente, num primeiro momento também acreditei piamente. Naquela semana em que o plano entrou em vigor, onde a moeda perdeu três zeros, o Brizola apareceu na televisão durante o horário político do PDT. Como produto da direita, eu tinha uma certa bronca do Brizola, e fiquei escutando para criticar. E o Brizola criticou o Plano Cruzado dizendo que inflação não se tira por decreto, entre outras coisas. Seis meses depois, quando o plano veio por água abaixo, eu disse: “esse cara realmente tinha razão!” Esses quatro anos e meio em que estou escrevendo o livro também vão coincidir com minha vivência sindical. Era bancária e vou me aproximando cada vez mais do sindicato dos bancários, principalmente a partir de 1985, quando houve uma grande greve da categoria em Blumenau. Foi uma sequência de greves. Nós íamos para as assembleias, e quando aparecia o fotógrafo do Jornal de Santa Catarina, escondíamos a cara para não aparecermos na foto. Tínhamos medo do Serviço Nacional de Informação. Então vai se dando uma nova visão de mundo, para mim, dentro dessa minha vivência sindical e de luta por conquistas, e aí acontece o Plano Cruzado e o pronunciamento do Brizola logo no começo foi uma coisa muito forte, porque vi que ele estava certo. E o Plano Cruzado aconteceu dentro de onde eu trabalhava, no banco, onde vou atender as pessoas que ficaram na miséria por causa dele, as pessoas que venderam suas terras e colocaram o dinheiro na poupança para viver de juros. Então pensei: “tenho que escrever sobre essas pessoas”. Essa foi a idéia original. E quem vai ser meu herói? Teria que ter um personagem principal, e quem vai ser? Um descendente de alemão? De italiano? Um luso? Teria que ser alguém que representasse todo mundo. Vou ler sobre a história do estado e retroagir a 1650, e começar a história com o índio. Para isso as pesquisas de Sálvio Alexandre Müller e de Sílvio Coelho dos Santos me ajudaram bastante.


Urda, já citaste nessa entrevista a influência que recebeste do livro “Os Frutos da Terra”, do Knut Hamsun. Neste livro ele trabalha na perspectiva da construção da civilização, do homem que doma a natureza, e se olharmos para alguns dos teus livros, isto está lá também. No “Cruzeiros do Sul” temos a formação do território, do povo catarinense, a ação do ser humano sobre o meio físico. O mesmo pode ser observado em “As Brumas Dançam Sobre o Espelho do Rio”, no “Verde Vale” e também neste teu último romance, o “Sambaqui”, que trabalha o processo civilizatório do povo sambaquiano, porque este também ocupa um espaço, constrói uma cultura. Neste aspecto, há aqui uma influência do Knut Hamsun?

No começo certamente sim, e talvez até hoje. Li esse livro, pela primeira vez, por volta dos quinze anos, e nos dez anos seguintes devo tê-lo lido umas vintes vezes. Depois passei um longo tempo sem o ler, e há uns quatro anos eu o reli e saquei de onde veio a minha influência maior. Acho que teve um monte de gente que me influenciou, como Érico Veríssimo, Jorge Amado, José Mauro de Vasconcelos, isto para citar os brasileiros. Adoraria saber escrever como Machado de Assis, mas acho que não tenho competência para tanto. Muitos estrangeiros, li os clássicos, tanta coisa, mas o X da questão está lá no Knut Hamsun. Há também um outro escritor que me marcará e estabelecerá um “antes” e um “depois” na minha vida, que é o Franz Kafka. Li “O Castelo” e “O Processo” e não estava preparada para aquela porrada. Até hoje não sei definir como mexeu, o que mudou, o que aconteceu, mas sei que eu era uma pessoa antes e me tornei outra depois.


Começas escrevendo romances, e depois começas a te exercitar em outros gêneros, como a crônica, o ensaio, os relatos de viagens. Como surge a crônica na tua carreira?

Se alguém me dissesse que eu iria escrever crônica, eu diria que não, que sou uma romancista histórica. Porém um dia o jornal A Notícia me ligou dizendo que eles estavam montando um caderno cultural e queriam que eu escrevesse as crônicas. Eu disse: “mas eu não sei escrever crônicas!” “Tenta para a gente ver. Faz umas três crônicas e manda para a gente dar uma olhada.” Fui para casa pensando nos assuntos para escrever três crônicas. Datilografei, coloquei no malote e fiquei esperando que me telefonassem. De repente um amigo meu chega dizendo “Urda, que coisas legais andas escrevendo no A Notícia!” Liguei para eles perguntando se estavam me publicando. “Sim, já publicamos três e precisamos de material para esta semana.” Fiquei uns três anos publicando no A Notícia. Ter uma coluna fixa em jornal é uma coisa muito estressante porque a gente fica pensando no que vai escrever, já que no dia marcado o texto tem que estar lá. Hoje escrevo para diversos jornais, mas com compromisso sério foi o A Notícia e o Diário Catarinense, e neste último fiquei bem menos tempo.


O que houve no Diário Catarinense?

Pertenço a um comitê pró Palestina em Blumenau. Acho que está acontecendo um genocídio lá na Palestina, uma coisa tão horrorosa quanto a que fizeram com o povo judeu na 2ª Guerra Mundial. E assim como falo do judeu que foi injustiçado na 2ª Guerra Mundial, tenho que falar do palestino injustiçado pelo judeu. Quando o redator chefe do jornal me contratou, falei que não ia dar certo: “as minhas ideias e as de vocês não fecham”. “Mas nós vamos respeitar as suas ideias”, disseram-me. No período que estive lá, escrevi um total de quatro crônicas sobre a Palestina, três passaram, e a quarta virou um samba de crioulo doido. Fui demitida em altos brados. Os Sirotsky mesmo não me disseram “tu não podes escrever sobre a Palestina”, mas botaram lá uma professora da UFSC, partidária de Ariel Sharon, para brigar comigo no jornal e levantar essa questão de que eu estava errada. Tu sabes que a gente sempre acaba tendo uns leitores mais fiéis. Alguns destes não queriam que eu fosse demitida, e ficaram mandando e-mails para o jornal, eles responderam, eram mensagens escritas pelos Sirotsky, e os leitores me passaram estes e-mails. Para a minha carreira, isso foi ótimo! Essa briga acabou envolvendo pessoas, leitores, simpatizantes e antagônicos de doze países. Já há trabalhos acadêmicos feitos sobre esse material que recebi. Isso me deu também uma visibilidade que eu não tinha, o que faz com que hoje eu publique em três continentes e em muitos órgãos de imprensa. Com aquele exercício de escrever toda semana para o A Notícia, acabei criando o hábito de toda semana produzir uma crônica. E se tenho um tempo a mais, se vou acampar, escrevo duas ou três.


Como é o teu processo criativo? De onde vêm os temas?

Vêm daquilo que está acontecendo. Por exemplo, agora o Obama foi eleito e todo escritor do mundo falou sobre ele. Não sobrou texto para mim, então nem me meti a falar do Obama. Estou como expectadora do que vai acontecer e esperando que mude para melhor, se bem que sabemos que trocar republicanos e democratas nos Estados Unidos é quase trocar seis por meia-dúzia. Uns são mais agressivos, outros menos, mas ambos são capitalistas. Porém tenho fé que alguma coisa aconteça. Ontem Obama disse que vai fechar Guantánamo, o que já é um bom começo. Mas quando acontece algo que mexe intimamente comigo, então escrevo sobre aquilo. Por exemplo, outro dia morreu, nas montanhas da Colômbia, Manuel Marulanda Vélez, e todo mundo falou sobre ele. Porém houve um viés sobre o qual não vi ninguém falar: o ser humano Manuel Marulanda. Todos falaram do aspecto político, mas fui pesquisar como ele andava solitariamente pelas montanhas com seu cachorro e sua arma, andando por cada rincão da Colômbia sem nunca ter ido até a capital. Então fiz um texto sobre o ser humano. E quando não há um fato que mexa comigo, escrevo textos sobre o amor, a natureza, a pré-história, o meu cachorrinho – tenho uma série agora chamada “Meu cachorro Atahualpa”, que está sendo publicada em diversos lugares.


Do “Cruzeiros do Sul” ao “Sambaqui”, teu último romance, nós temos um intervalo de quase duas décadas onde publicaste livros de crônicas, relatos de viagens e artigos de história. Por que este período tão grande sem publicar um novo romance? E por que a pré-história?

O fato de estar escrevendo crônicas para o A Notícia me tirou o tempo para escrever romances. E apareceu um monstro assustador na minha frente chamado aposentadoria. O que vou fazer na aposentadoria? Depois de um primeiro momento de susto, pensei: “vou ser feliz”. E ser feliz, para mim, era cursar História, curso que sempre sonhei fazer. Nesse período em que me envolvi com o curso de História, escrevi quase nada. Logo no primeiro semestre de História entrou na sala de aula uma professora de arqueologia. Eu andava muito pelo mundo, via muita arqueologia, e pensava: “por que é que no Brasil não tem nada?” E ela vai falar justamente da arqueologia de Santa Catarina, do nosso litoral, de um período de 6 mil anos, de coisas que conheci e não sabia o que eram. E a arqueologia era uma coisa que estava dentro de mim há muito tempo! Desde os tempos de ginásio! Lembro de, aos 15 anos, o Padre Sílvio Tron, nosso vigário, me chamar na casa paroquial e dizer: “senta aqui minha filha; o que tu queres ser quando cresceres?” – porque todas as meninas que estavam estudando iam fazer o curso de Normal para serem professoras, e eu queria fazer o Científico porque não queria ser professora. Então respondi que queria ser arqueóloga. “Tu sabes que no Brasil não é possível ser arqueólogo? Porque pra fazer arqueologia tem que ir pro Egito ou Pompéia”. Isso era uma coisa inadmissível de se pensar naquela altura, que um colono blumenauense e pobre, como eu era, poderia um dia ir para o Egito, quanto mais estudar arqueologia! Então naquela oportunidade o Padre Sílvio tirou isso da minha cabeça, mas tenho lembrança daquele momento como uma coisa que era muito forte até ali. Então era uma ideia antiga. Quando, de repente, surge a professora Elisabete Tamanini com a arqueologia de Santa Catarina. Lembro que fiquei olhando os slides que ela mostrava nas aulas e vi uma baleia de pedra que deve ter uns 5 mil anos, que está lá no Museu do Sambaqui de Joinville, e pensei: “meu Deus, preciso ir mais fundo nisso, escrever a respeito!” Entre o começo da pesquisa e o romance ir para a gráfica, passaram-se de dez anos e dez meses.


Muitos autores utilizam o termo romance histórico, outros o rejeitam, como é o caso do Salim Miguel, um dos nossos últimos entrevistados aqui no Sarau Eletrônico. Apesar de ele fazer ficção estruturada sobre a história, faz questão de dizer que não faz romance histórico. Tu já fazes questão de dizer o contrário. Além de escritora, tu és historiadora, graduada e pós-graduada em História. Como tu entendes o romance histórico? Onde termina o romance e começa a história? Nos teus romances, o que é ficção e o que é história?

Nos meus isso é muito fácil de definir, porque a ficção são os meus personagens e os fatos são os fatos históricos, e às vezes misturo personagens da história com meus personagens imaginários. Hoje, porém, tenho uma visão um pouco mais refinada sobre o termo romance histórico, mas continuo me chamando de romancista histórica. Acho que o romance, que a literatura em geral, de alguma forma acaba refletindo o pensamento daquele escritor, que é um testemunho do seu momento na história. Dificilmente um romance não vai trazer a história. Neste momento estou lendo um romance histórico do Salim Miguel chamado “Nur na Escuridão”, e é só começar a ler para ver que é um romance histórico, apesar de ele dizer que não. Vejo na contracapa desse livro a primeira observação, feita pelo Sílvio Coelho dos Santos, dizendo: “Salim Miguel, neste romance, teve o poder de nos trazer toda a história de um tempo, etc.” E é! Acho que é muito difícil separar o romance da História. Pode-se separar a História do romance, agora o romance da História é difícil.


Além de escritora, és também proprietária e fundadora da Editora Hemisfério Sul. Como está sendo essa experiência de editora? Quais as dificuldades e a política editorial da Hemisfério Sul?

A Hemisfério Sul trabalha com literatura: romance, conto, crônica e alguma coisa de literatura infantil em prosa. Sempre visamos a excelência do texto. E é muito gratificante!


Mas qual é a realidade de uma editora em um município marginal, como é o caso de Blumenau?

Mas ela não se restringe a Blumenau. Ela está em praticamente todo o estado de Santa Catarina, e tem alguns pontos de venda fora do estado. A distribuição do livro é uma coisa complexa, mas a gente sempre vai lutando com muita dificuldade financeira e estamos há onze anos no mercado. Posso te dizer que há uma grande dificuldade em se conseguir bons textos. Textos ruins aparecem em grande quantidade, e se alguém que deseja ser escritor vier a ler esta entrevista, digo que o que faz com que um texto seja bom ou ruim é a quantidade de leitura que um escritor tem. Há escritores que não leem e não querem ler, escrevem qualquer coisa e acham que está bom, e não é assim. E não são doze livros, como às vezes escuto alguns escritores dizer que leram, mas dois mil pelo menos! Sempre dou esse conselho. Outro dia tive o prazer de encontrar um rapaz a quem dei este conselho, e agora vejo que ele anda escrevendo bem melhor. Ninguém está condenado a não escrever bem, mas precisa se preparar.


Sempre perguntamos, para quem é da região, a respeito da vida intelectual de Blumenau. És uma pessoa com uma longa história de vida e começas a carreira literária lá na década de 1970. No momento em que começas a publicar, estabelecias contatos com círculos de intelectuais de Blumenau? Havia a troca de ideias e uma formação intelectual? E hoje, como está isso?

Lá no começo eu tinha o Marcos Konder Reis, que foi meu interlocutor. Lembro que em algum momento o Lindolf Bell entrou na minha vida, mas de uma forma esparsa. Não chegamos a ser grandes amigos, mas houve momentos que me marcaram. Houve, por exemplo, um dia em que estive na Galeria Açu-Açu, no tempo em que ela ficava na Rua Namy Deeke, e ele me chamou para olhar por uma janela que ele tinha feito, e que era muito bonita, e me disse que quando sonhávamos ou desejávamos alguma coisa na vida, tínhamos que seguir. E quando vivíamos numa cidade pequena como a nossa, e seguíamos o próprio sonho, no primeiro momento seríamos condenados, mas se persistirmos no sonho, adquirimos o respeito da comunidade. E é bem isso! As pessoas passam a te respeitar, se bem que sempre tem aquelas pessoas que dizem te admirar e ver todos os quadros que tu pintas, quando não sou pintora. Mesmo tendo visto todos os quadros que não pintei, a pessoa cria um respeito. Naquele tempo, na escola, não se imaginava que um aluno pudesse vir a ser escritor, diferentemente de hoje, em que a escola estimula. E quando apareço com o “Verde Vale”, o livro fazendo sucesso e agradando, um grupo de escritores que periodicamente se reunia em almoços no antigo restaurante Moinho do Vale passou a me convidar para estar junto com eles. Neste momento também estava surgindo um movimento cultural em Blumenau, o primeiro que vejo surgir, que vai ser o dos Poetas Independentes. Esse pessoal ainda está vivo. Alguns sumiram e outros continuam em sua senda de arte. E havia uma crítica muito grande dos velhos sobre os novos, uma ciumeira até: “os caras vieram aqui para estragar a imagem da nossa cidade. Nós somos os intelectuais da cidade!” Passei a conviver também com os novos e cheguei a um acordo comigo mesma, porque não queria ser como aqueles velhos, queria estar sempre aberta ao que fosse novo. Às vezes você escorrega e faz alguma coisa em desacordo com esta premissa, mas tenho procurado prestar atenção ao que é novo. E o que acontece hoje em Blumenau é o que acontece em qualquer lugar do mundo, hoje e em qualquer tempo. Temos alguns bons escritores, mais alguns médios e uma quantidade incrível de péssimos escritores. Isso não é próprio de Blumenau, não é uma crítica que estou fazendo a esta cidade, e deixo uma pergunta: quando Shakespeare era vivo e escrevia, será que era só ele que escrevia? Não, ele era o melhor de todos; tanto é que tantos séculos depois nós ainda o estamos lendo. E isto é de âmbito geral e irrestrito, e Blumenau não foge à regra.


Na literatura, quais são teus projetos atuais?

Estou perseguindo um passando ainda mais antigo. Trabalhei com um período de mais de 6 mil anos, no caso dos sambaquis. Agora comecei a pesquisar aquelas pessoas que viveram entre 8 e 10 mil anos antes do presente no planalto de Santa Catarina. Isso está me levando a uma voragem do tempo e já estou há 650 milhões de anos antes do presente. Estou sonhando que vou escrever um romance que vai começar como um romance geológico para, muitos milhões de anos depois, chegar ao ser humano.

 

https://bu.furb.br/sarauEletronico/index.php?option=com_content&task=view&id=118


ENTREVISTA COM O ESCRITOR CATARINENSE SALIM MIGUEL

Nascido no Líbano em 1924, Salim Miguel chegou ao Brasil ainda criança. Depois de viver sua adolescência no município catarinense de Biguaçu, mudou-se para Florianópolis onde, nas décadas de 1940 e 50, integrou o movimento modernista nas artes catarinenses: o Grupo Sul. Juntamente com sua esposa, a também escritora Eglê Malheiros, escreveu o roteiro do primeiro longa-metragem catarinense, o filme “O Preço da Ilusão”. Em 1965, depois de ser preso pelo Regime Militar, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde editou a revista Ficção e trabalhou para a Editora Bloch e de onde retornou em 1979. Jornalista renomado com passagem por diversos jornais e revistas nacionais, Salim Miguel dirigiu também a editora da Universidade Federal de Santa Catarina e a Fundação Cultural Franklin Cascaes. Autor de 30 livros, entre contos, crônicas, romances, depoimentos e impressões de leitura, dos quais se destacam: “A Morte do Tenente e Outras Mortes”, “A Voz Submersa”, “Nur na Escuridão” (que recebeu o prêmio de melhor romance de 1999 pela Associação Paulista de Críticos de Arte, e o Prêmio Zaffari & Bourbon da 9º Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo), “A Vida Breve de Sezefredo das Neves, poeta” (indicado para o Prêmio Jabuti) e “Mare Nostrum”.

Doutor Honoris Causa pela UFSC e reconhecido como intelectual do ano pela União Brasileira dos Escritores e Folha de S. Paulo, recebendo o Troféu Juca Pato, Salim Miguel recebeu o Sarau Eletrônico em seu apartamento, ao lado do campus da UFSC de Florianópolis, onde concedeu o presente depoimento no mês de setembro de 2008 e às vésperas de ver publicado seu mais novo romance, “Jornada com Rupert”.

Nesta entrevista o escritor e jornalista conta sobre a parceria que estabeleceu com um livreiro cego e que lhe oportunizou as primeiras leituras, ainda em Biguaçu, relembra sua infância, a experiência com o Grupo Sul e os momentos difíceis por que passou durante a Ditadura Militar brasileira e fala da sua história no jornalismo, das suas aventuras literárias e da sua experiência como escritor.

 




(Entrevista: Viegas Fernandes da Costa / Fotos: Darlan Jevaer Schmitt)

 

Gostaríamos de começar com a tua história de vida. Como se deu a tua vinda para o Brasil e o teu primeiro contato com os livros?

Eu começaria com a palavra árabe “Maktub”, que quer dizer “estava escrito”. Estava escrito que o destino da minha família seria o Brasil. E quando nós saímos do Líbano, estávamos sendo encaminhados para os Estados Unidos. Como a cota para libaneses já estava esgotada, nós viemos fazer aquilo que ainda hoje se faz: ir ao México e de lá, por meio de contrabando, entrar nos Estados Unidos. Quando chegamos em Marselha, houve um imprevisto. A vista do meu pai estava com uma inflamação e não pudemos continuar a viagem. Ficamos alguns dias em Marselha, o dinheiro escasseava, os irmãos da minha mãe, meus tios que moravam nos Estados Unidos, mandaram algum recurso, mas o primeiro navio que saía vinha para o Brasil. Então meu pai disse assim: “eu tenho uma irmã morando no Rio de Janeiro e um irmão no Norte” – que nunca foi localizado. Então o projeto era o seguinte. “Vamos para o Rio de Janeiro, ficamos alguns dias com a minha irmã” – meu pai dizendo – “e de lá retomamos o projeto para os Estados Unidos”. Foi aí que entrou “maktub”. Quando chegamos aqui, em pouco tempo, meu pai disse para minha mãe: “vamos ficar pelo menos alguns anos por aqui porque estou gostando deste tal de Brasil”. E estes “poucos anos” duraram a vida toda. Ele nunca saiu do Brasil, nem para voltar ao Líbano! Só que nós fomos parar em Magé, na casa de minha tia, e lá ele fez o que fazem todos os imigrantes libaneses – não só eles, mas também os sírios, os judeus, que começam mascateando – : ele começou mascateando. Mas não estava dando certo. Então ele se lembrou que tinha uns primos em Florianópolis. Veio para Florianópolis e aí “maktub” de novo! Uma correspondência mal explicada, enquanto ele pensava em voltar para o Rio, porque era tudo igual, fez com que a família chegasse em Florianópolis. Ficamos uns dois, três meses aqui, e o primeiro lugar em que fomos morar foi em São Pedro de Alcântara, primeiro núcleo de colonização alemã em Santa Catarina. Ficamos lá um ano e pouco e fomos parar em Rachadel, outro núcleo de colonização alemã. Depois fomos para Alto Biguaçu. Mas o resto da minha infância e a minha adolescência passei em Biguaçu. Por isso digo que sou um líbano-biguaçuense. Comecei a ser alfabetizado em árabe e em alemão, porque tanto em São Pedro de Alcântara como em Rachadel não havia escola que ensinasse em português. Mas quando cheguei em Biguaçu, entrei imediatamente no grupo escolar, e nessa besteira de criança não quis mais estudar nem o alemão nem o árabe. Meu pai dizia “aprende, continua estudando, um homem que sabe dois idiomas vale por dois”. Ele tinha sido professor primário no Líbano. Eu me recusei a estudar e hoje, a não ser alguns palavrões em alemão e árabe, não sei mais nada.

 

Houve, nas comunidades onde vocês se instalaram, alguma resistência ao fato de vocês serem libaneses, algum tipo de preconceito?

Em São Pedro de Alcântara sim. Embora meu pai não tivesse nenhuma vocação para o comércio, acho que – vendo hoje, à distância – os alemães tinham menos vocação do que ele. Então ele estava tirando a freguesia dos comerciantes alemães. E um dia houve, na missa de domingo, um padre que falou contra os alemães que estavam preferindo comprar naquele turco do que com os alemães. De repente ninguém mais comprava na venda do meu pai. A família foi obrigada a sair e fomos para Rachadel, que é outro núcleo de colonização alemã. Mas lá já foi diferente. Tanto que meu pai logo se tornou amigo de alguns alemães, e um deles passou a me ensinar o alemão. Mas como lá também comercialmente não estava indo bem, fomos para Alto Biguaçu, que hoje é o município de Antônio Carlos. Ali o núcleo alemão já era muito rarefeito, mas lá também comercialmente não estava dando certo e meu pai resolveu ir para Biguaçu, onde pelo menos havia algumas famílias descendentes de libaneses, e foi onde ficamos por doze anos. Minha infância e adolescência passei em Biguaçu.

 

E na tua família havia uma cultura do livro, ou ele se dá mais tarde na tua vida?

Havia este contato. Minha mãe era de uma família tradicional, e além do árabe ela havia estudado russo e inglês. Meu pai era de uma família humilde, mas foi professor primário. E além disso, naquela época, estudava-se árabe e francês no Líbano. E ambos gostavam muito de ler. Então eu comecei a me interessar pelo livro com meu pai me contando – a minha mãe também, mas mais ele – aquelas histórias orais que passam de geração para geração, um pouco modificadas, mas que mantêm aquela tradição da literatura oral, que é uma coisa muito bonita. Contar histórias é uma coisa muito bonita. Então eu comecei a me interessar pelo livro ali. Quando fui alfabetizado, e aí é outro fato curioso, entrei no grupo escolar José Brasilício de Sousa sabendo pouca coisa de português. No fim do ano a professora bateu palmas, chamou a atenção dos alunos, me apontou e disse: “vejam só, chegou ontem aqui, mal sabia algumas palavras de português misturadas com árabe e alemão; hoje fala, lê e escreve melhor que vocês! Não se envergonham diante deste turco?” Eu desabei no choro, não sei se foi

 pelo elogio ou pelo turco. Porque meu pai sempre dizia: “não aceite que te chamem de turco.” Porque a Síria e o Líbano durantes anos foram dominados pelo império otomano, pelos turcos. E a professora me deu de presente um tinteiro que tenho até hoje. Aos oito anos comecei a ler absolutamente tudo que encontrava. Quando não tinha nada para ler, eu lia bula de remédio. E devo muito a almanaques. Foi em almanaques que li, aos oito anos, pela primeira vez, Machado de Assis, o “Soneto à Carolina”, que é um dos mais belos sonetos da língua portuguesa e, certamente, o melhor de toda a poesia machadiana. Até porque a praia dele não era bem a poesia, embora deixou um volume enorme de poesias.

 

Além dos almanaques, quais as outras fontes de acesso à literatura? Havia bibliotecas?

Em Biguaçu praticamente não havia bibliotecas nem nas escolas. Havia uma meia dúzia de livros, e poucas pessoas tinham bibliotecas. Tinha alguns livros, mas que não podiam ser chamados de biblioteca. Até que certo dia, lá pelos meus dez ou doze anos, eu me lembrei que havia uma livraria de um poeta cego chamado João Mendes. Fui lá e fiz uma proposta que ele não aceitou. Mas ele me fez uma outra proposta, que eu aceitei. A minha era a de ele me emprestar livros e eu me comprometia a não amassá-los e não sujá-los quando fosse devolvê-los, depois que os tivesse lido. E quando eu tivesse os tostõezinhos para comprar um livro, eu compraria. Ele disse “não, vamos fazer diferente. Tu vens aqui, lês para mim em voz alta o tempo que tu quiseres todos os dias, porque eu também tenho fome de leitura.” E acertamos isso. Durante alguns anos li em voz alta para ele. Todas as vezes em que conto esta história as pessoas me perguntam, e acho que tu vais me perguntar: “que livraria fantástica era essa que pôde, durante anos, alimentar vocês?” Ora, o que ele tinha não daria para nos alimentar a fome de livros por quinze dias. Mas ele tinha experiência. Ele tinha um primo em Florianópolis, que era poeta também, que gostava muito de ler e tinha uma excelente biblioteca, e passou a nos mandar livros. Além disso, ele começou a comprar livros em consignação. Comprava quarenta livros de uma editora e noventa dias depois devolvia. Mas não podia devolver os quarenta livros. O que ele fazia? Obrigava parentes e amigos a comprar alguns dos livros, devolvia os demais, mas nós já tínhamos lido os quarenta. Então através disso tomei conhecimento da literatura brasileira e universal. Foi ali que li Shakespeare, “As alegres comadres de Windsor”, em uma edição portuguesa muito feiazinha por sinal. Foi ali que li pela primeira vez um livro em espanhol, “Don Segundo Sombra” de Ricardo Güiraldes. Não sei se ele ou e eu entendemos todo o espanhol, mas o negócio é que devoramos o livro. Então foi ali a minha formação. O primeiro romance que li na vida, não sei de onde me apareceu este romance, foi “O Tronco do Ipê” do José de Alencar. Relendo este livro há pouco tempo, pela terceira vez, notei uma coisa que não havia observado na segunda leitura. Na primeira nem pensar! Tem um conselheiro, neste livro, que é o conselheiro Acácio, que é o primo Basílio do Eça de Queiroz. É o mesmo tipo enfatuado que diz coisas banais com uma pose como que se estivesse dizendo as últimas maravilhas do mundo. E aí fui para a internet para ver se o livro do Eça era posterior. Eu achava que era, mas não tinha certeza. Porque se o livro do Eça fosse anterior, o José de Alencar poderia ter copiado aquele conselheiro. Mas não. O livro do José de Alencar é de 1873 e o livro do Eça é de 1878. Será que o Eça tomou conhecimento?

 

É possível supor que, pelo fato de seres um devorador de livros, o interesse pela escrita se dá de uma forma quase natural. Quando começas a escrever e perceber que o que escrevias tinha qualidade? E como se dá o processo que leva à publicação dos teus textos?

Bem, são duas perguntas e por isso vou responder de duas maneiras diferentes. Lá pelos dez anos de idade, meu pai me vendo devorar tudo o que era impresso, aqueles símbolos mágicos, perguntou assim: “o que pretendes fazer na vida?” E respondi: ler e escrever. Aí a minha mãe, que era uma mulher sensível, mas com os pés no chão, disse: “não vai ser fácil.” Meu pai então disse: ”fácil não vai ser, mas se ele persistir, conseguirá.” Então se há uma palavra que me acompanha até hoje, esta é persistir. Persistência é fundamental em tudo que a gente quer fazer. Então aos dez anos eu já pensava não só em ler, mas também em escrever. Naquela época, depois das estripulias do dia, porque eu não só lia, eu era uma criança normal que gostava de nadar, de correria, de jogar futebol, até de brigar com os amiguinhos, de noite a gente se reunia na frente das casas e cada um contava, a sua maneira, aquilo que estava na sua lembrança do dia. Eu fazia diferente. Quando eu chegava em casa, pegava uma folha de papel, fazia uns traços na vertical e na horizontal, botava algumas palavras e transformava aquelas coisas do dia numa matéria de jornal ou numa crônica. Então, lá pelos dez anos, eu já brincava de jornalista e escritor. Tive a preocupação de não publicar cedo e de ler, reler e rasgar. Porque rasguei e coloquei no lixo muito mais do que publiquei. Fiquei em Biguaçu até os meus 19 anos, já tinha alguma coisa manuscrita, mas nada daquilo foi publicado. Foi só chegar em Florianópolis e, aquilo que me faltava de leitura, li na Biblioteca Pública do Estado, que tem um acervo enorme. Foi em 1943 que nós mudamos para Florianópolis. Veio a família toda.

 

Quais os motivos para a mudança?

Em Biguaçu, durante a guerra, nem a vendola do meu pai estava dando para as despesas da casa. Vendia-se muito fiado e recebia-se pouco retorno. Também as pessoas de Biguaçu, São Miguel, Tijuquinhas, Ganchos, de Alto Biguaçu, daquela região toda que frequentava a venda do meu pai e as outras, também estavam tendo dificuldades financeiras. Então ele resolveu se aventurar em Florianópolis, onde nunca passou de um dono de venda. Quando faleceu, aos 60 anos de Brasil ou mais, a única coisa que deixou foi uma casa hipotecada na Caixa Econômica Federal. A primeira lembrança que tenho, e a mais exata, é a de que nós chegamos em maio de 1943 e no começo de 44 começamos a nos reunir e conversar, eu estava com exatos 20 anos. Desse primeiro grupo, três acabariam no Grupo Sul: Ody Fraga, Antônio Paladino, Cláudio Bousfield Vieira. Ody Fraga fez uma trajetória no teatro e depois no cinema. Antônio Paladino faleceu de tuberculose aos 23, 24 anos. E Cláudio Bousfield Vieira nunca mais quis saber de literatura depois da Revista Sul. Aí sim nós começamos, primeiro trocando originais com aquela velha história: leia o meu que eu leio o teu. Depois começamos a furar os espaços dos jornais. Tem colaboração nossa, não só minha, mas do Ody, do Paladino, depois da Eglê Malheiros, do Aníbal Nunes Pires, a quem nós devemos muito, em todos os jornais de Santa Catarina, que na época, nos anos cinquenta, eram quatro: O Estado, Diário da Tarde, A Gazeta, Diário da Manhã. Tem colaboração nossa em todos os jornais. Então começamos a publicar ou crônicas ou poemas. E como a minha praia não era a poesia, então comecei a publicar crônicas e anotações sobre livros.

 

E é o que vai te perseguir pela vida inteira, porque muitos dos teus livros são sobre livros. Com este que está saindo agora, “Minhas Memórias de Escritores”, são sete livros onde faço anotações sobre aquilo que estou lendo. Interessante observar que muitos dos teus romances também tratam de livros. “As Confissões Prematuras”, por exemplo, é a angústia de um escritor. “A Vida Breve de Sezefredo das Neves, poeta” também. Então muitos dos teus livros têm como tema o livro.

Sim, têm como tema o livro. Mas de repente, em 1946, nós colaboramos com o jornal Folha da Juventude. Em 1947 o Antônio Paladino, o Cláudio Bousfield Vieira, o Aldo Sagaz e eu criamos um jornalzinho datilografado chamado Cicuta. A tiragem era de quatro exemplares e tinha uma frase que caracterizava o jornal: “leitor, por favor, não faça com este jornal o que faz com os demais”. Tudo isso não bastava. Então nós resolvemos partir para uma coisa maior, que era a Revista Sul. Naquela época, dos fins dos anos 40 aos fins dos anos 50, eram cerca de quarenta publicações de jovens em todos os estados brasileiros. Não tinha estado que não tivesse a sua revista de literatura. Só que não queríamos nenhum contato com órgãos oficiais, com poderes estabelecidos. Queríamos inteira independência. Também não tínhamos como fazer a revista porque não tínhamos recursos. Todos nós éramos classe média ou classe média baixa. Então o Ody disse assim: “por que nós não fazemos um espetáculo de teatro para angariar recursos?” As duas ou três primeiras revistas foram bancadas por dois espetáculos de teatro; a primeira com três peças de um ato. No segundo espetáculo nós lotamos a casa. Florianópolis sempre gostou de teatro. A população pediu um segundo espetáculo, nós pedimos um tempo, e em lugar da peça do Ody, “Um homem sem paisagem”, nós adaptamos um conto do Sartre, ao qual demos o nome de “Estátuas Volantes”, embora o conto não se chamasse assim. O conto era do livro “O Muro”, mas não me lembro do título original. E muita gente em Florianópolis, depois, achava que nós tínhamos inventado o tal de Sartre.

 

Qual era o ambiente intelectual da Ilha neste contexto em que vocês estavam montando o Grupo Sul?

Havia um grupo intelectualizado, só que eles haviam estacionado no tempo. Eu me lembro de, talvez, uma das figuras mais proeminentes do estado de Santa Catarina dizer assim: “vejam só, ‘tem uma pedra no meio do caminho’.  Isso é poesia? E esse Drummond hoje está sendo considerado um poeta! Na minha época ele não serviria nem para varrer o chão de um poeta!” Então era esse o ambiente na época. Tanto que quando surgiu a Revista Sul, nós tínhamos publicado um caderno chamado “Os Velhos e os Novos” e, ou intencionalmente, ou por esquecimento, não convidamos essa figura para participar desse caderno. Então ele ficou indignado porque se considerava a maior autoridade em Goethe, não só em Santa Catarina. A esta altura nós já estávamos com uma página, chamada “Página do Círculo de Arte Moderna”, no jornal O Estado. Então nós tivemos a mais duradoura polêmica sobre literatura e cultura em Santa Catarina, que durou um ano no jornal O Estado. Nós tínhamos espaço uma vez por semana e ele diariamente, quando quisesse tinha espaço para nos atacar. No fim – ele tinha sido dono do jornal O Estado, que depois foi vendido para o Aderbal Ramos da Silva – ele disse que não era concebível, como ex-dono do jornal, que ele, uma autoridade intelectual respeitada, fosse atacado por um grupo de jovens que nem sabiam começar uma frase por um pronome oblíquo. Assim nós perdemos a página. Mas este debate durou um ano!

 

E qual era o nome dele Salim?

Professor Altino Flores.

 

Quando começas a atuar como jornalista?

Comecei trabalhando aqui, primeiro como free-lance, depois como correspondente de jornais do Rio Grande do Sul e de revistas do Rio de Janeiro e colaborando, eventualmente, nos principais órgãos de imprensa do país. Tem colaboração minha no Estadão, no Diário de Notícias, no Correio da Manhã, no Correio do Povo. Costumo dizer que tenho contos e textos, não de crítica, mas de anotações sobre livros, do Oiapoque ao Chuí. A minha primeira carteira de jornalista profissional foi assinada pelofoto Diário da Manhã de Florianópolis em 1951. Trabalhei dois anos nesse jornal, depois comecei a trabalhar como correspondente de jornais e revistas. Mais adiante uma revista, que durou dois números, mas que levou dois anos para tirar dois números, chamada BN, que naquela época era Bossa Nova, e que me assinou a carteira. Depois um jornal chamado Opinião Pública. E depois do Golpe, quando fui preso e fui obrigado a sair de Santa Catarina, no Rio trabalhei por 13 anos na Bloch Editores. Comecei como copidesque, depois redator, repórter especial e por fim chefe de redação de uma revista chamada Tendência.

 

Salim, sabemos que a Eglê é a grande companheira da tua vida. Em vários dos teus livros vemos dedicatórias a ela. Como vocês se conheceram?

Em 1947, quando estávamos montando as peças de teatro. A Eglê eventualmente tinha colaborado no jornal Folha da Juventude. Quando estávamos montando o espetáculo, precisávamos de atrizes, e a Eglê foi uma dessas atrizes. Depois ela trabalhou em uma outra peça chamada “Cândida”, uma peça em três atos do Bernard Shaw.  Na verdade, desde o primeiro momento, a gente sentiu que tinha uma coisa muito próxima, tínhamos interesses comuns, uma visão de mundo mais ou menos parecida. Começamos a namorar em 1947. Um amigo nosso diz que foi em um jantar que nós fizemos depois dos dois espetáculos com as três peças, porque ainda sobrou um trocadinho para a gente fazer um jantar porque ninguém é de ferro. Ele disse que naquele momento percebeu que nós estávamos de namoro, a Eglê e eu. Como naquela época a gente não namorava hoje e amanhã estava junto, nós levamos até 1952 entre namoro, noivado e casamento. Mas eu costumo dizer que nós estamos juntos há exatos 61 anos! Desde 1947! Na verdade eu não seria quem sou sem a Eglê.

 

Teus primeiros livros são de contos, e depois vem o romance “Rede”...

Sim, meus dois primeiros livros são de contos: “Velhice e outros contos”, de 1951, e “Alguma Gente”, de 1953. “Rede”é de 1955. Todos eles pela Sul. Meu projeto era um livro a cada dois anos. Quando publiquei “Rede”, sentei para refletir e cheguei à conclusão que o mais importante não é publicar; o importante é o que e como se publica. Porque na verdade o escritor, desde o início dos tempos, trabalha com alguns poucos temas. A maneira dele trabalhar esses temas, a maneira dele resolvê-los, é que diferencia e identifica um escritor do outro. Então passei exatos 18 anos sem publicar livros. Eventualmente publicava um conto, mas passei a me dedicar mais ao jornalismo e às anotações de leituras, escrevendo sobre livros. Só em 1973, já residindo no Rio de Janeiro, e graças ao Carlos Jorge Appel, um amigo meu de Brusque que hoje é uma figura da intelligentsia gaúcha, acabei reunindo alguns dos contos publicados em jornais e revistas num livro chamado “O Primeiro Gosto”. O título do livro era “Os nossos iguais”, mas o Appel achou que este título não traria muito interesse para os leitores. Então uma das epígrafes era de um poema de Camões, que fala do primeiro gosto, foi quando sugeri “O Primeiro Gosto” e ele achou que estava bom. Este livro ainda não me satisfez, embora eu hoje ache que pelo menos três contos do livro tenham alguma validade. Parei outros seis anos e disse para a Eglê: “Eglê, vou fazer mais uma tentativa, se não der certo vou ficar como jornalista, talvez passe para o cinema, mas vou parar com literatura porque não estou fazendo nada que me satisfaça”. Em 1979 publiquei um livro chamado “A Morte do Tenente e Outras Mortes” que foi considerado o melhor livro de contos daquele ano. E este, na verdade, me satisfez. E tem uma introdução do Fausto Cunha onde, em alguns pontos, ele diz assim: “tem um conto chamado ‘Aranha’ que, além de ser um dos melhores contos da literatura brasileira, marca um novo momento na literatura de Salim Miguel”; e ele cita mais três ou quatro contos desse livro. Aí eu disse para a Eglê: “acho que agora tenho o meu caminho na literatura. Se vou fazer coisa melhor do que esse não sei, mas agora sei que vou continuar”. Em 1984 publiquei “A Voz Submersa”, que teve uma boa aceitação e uma boa vendagem, e não parei mais.

 

Uma das grandes dificuldades para o escritor radicado em Santa Catarina é chegar a uma grande editora. Normalmente ele consegue publicações mais localizadas, mas poucos são os autores que conseguem dar este salto para uma editora maior. No teu caso, desde a década de 1980 já publicas por editoras de âmbito nacional. Como conseguiste chegar a estas editoras?

Vou dizer uma coisa, não sou melhor nem pior que outros escritores de Santa Catarina. Hoje podemos dizer que temos em Santa Catarina escritores, em todas as áreas e não só na ficção, que não deixam nada a desejar a escritores de outros estados. Só que eu tive a “sorte” de ser preso e por isso tive que sair de Santa Catarina. No Rio, embora eu tivesse feito na imprensa tudo o que se possa imaginar, trabalhei mais na área de cultura, e com a Laura Sandroni, o Cícero Sandroni, o Fausto Cunha e a Eglê Malheiros fizemos uma revista chamada “Ficção”, que durante quatro anos fez um mapeamento do conto no Brasil, do passado e do presente.  Com isso nós cinco nos tornamos uma referência, e isso me ajudou. Ou seja, morando no Rio, já tendo feito essa revista, tornou-se mais fácil, para mim, conseguir espaço nas editoras do Rio, de São Paulo, de Brasília e de Porto Alegre. Se examinares meus livros, verás que a maioria deles foram publicados por editoras destas regiões. Mas repito aqui que não sou melhor, também não sou pior do que outros escritores de Santa Catarina, não vou bancar o falso modesto.

 

Como surgiu a idéia de filmar o longa-metragem “O Preço da Ilusão”?

Nós criamos o primeiro clube de cinema de Santa Catarina, que tinha como presidente o Armando Carreirão. Aí nós passamos a trazer não só filmes importantes, como também a comprar livros, não só a Eglê e eu, mas vários do grupo. Tenho uma razoável biblioteca sobre cinema, não só de história do cinema, mas sobre argumento, roteiro e tudo o que diz respeito ao cinema. Em 1956 nós pensamos: “já estamos encharcados de ver filmes e ler sobre cinema, por que não partimos para o nosso próprio filme?” Todo mundo achou isso uma loucura. E era uma loucura! Mas é boa essa loucura dos jovens, e dos velhos também! Então fizemos contato com todo o pessoal do grupo para que apresentassem sinopses para um argumento de filme. E o mais viável, por vários aspectos, era o da Eglê e meu. Foi aprovado. Começamos a preparar o roteiro. No roteiro tivemos a ajuda de um amigo chamado E. M. Santos. Estava tudo pronto, sim, mas precisávamos de recursos. Fizemos então outra coisa inimaginável em termos de Florianópolis dos anos de 1950: saímos vendendo cotas deste filme. E através das cotas conseguimos tornar viável este filme. Nenhum de nós tinha coragem de dirigir o filme, por isso pegamos um diretor do Rio Grande do Sul que tinha trabalhado como diretor assistente em um longa-metragem de lá e tinha feito alguns curtas. Trouxemos de São Paulo, para fazer a fotografia do filme, um jovem que tinha trabalhado com Alberto Cavalcanti, importamos os equipamentos e começamos o filme. O filme tem duas linhas. A primeira é uma crônica de uma cidade pequena, que era Florianópolis. a segunda veio porque nós éramos muito marcados pelo expressionismo alemão e pelo neo-realismo italiano, e o filme procura fundir estas duas tendências. Quando o filme ficou pronto – a gente sempre acha que está fazendo uma obra-prima – nós vimos que não era uma obra-prima e que ele tinha vários problemas que nós não tínhamos conseguido solucionar. Então o filme foi apresentado em Santa Catarina, em duas ou três cidades fora e desapareceu durante uns dois anos. Depois uma atriz de São Paulo disse que tentaria recuperar o filme, desde que fossem feitas algumas modificações e ela entrasse no filme. Mas antes pediu que fosse feita uma cópia de 16 milímetros. Nós estávamos morando no Rio de Janeiro quando, certa noite, telefonou Ricardo Ramos, grande amigo nosso, filho do Graciliano Ramos, dizendo: “Ô Salim, você disse que o filme de vocês não vale nada, não vou dizer que é uma obra-prima, mas não é tão ruim. Está na média do que se fazia no Brasil naquela época.” “Mas como é que você está me dizendo uma coisa dessa?” “É que ontem à noite, na TV Gazeta, tinha um programa de cinema brasileiro e passou “O Preço da Ilusão”, a cópia de 16 milímetros.” “Não brinca Ricardo!” “Passou, eu vi, minha mulher viu e estou te telefonando para dizer isso!” Isso foi lá pela metade da década de 1970. Nós saímos atrás dessa cópia de 16 milímetros, jamais conseguimos a cópia, e o que existe para provar que o filme foi feito são os oito minutos finais. Quem projetava os filmes na TV Gazeta era um grego. Consegui o telefone dele e liguei para ele. Nós ficamos sabendo que ele tinha brigado com a TV Gazeta e tinha levado filmes que eram do acervo da emissora, e um deles era “O Preço da Ilusão”. Ele me disse: “isso é uma mentira deslavada, querem me prejudicar, nunca tive esse filme na mão!” Depois o diretor do filme também telefonou para ele, o nome do diretor era Nilton Nascimento: “me ligou um tal de Salim Miguel, e o que eu disse para ele vou te dizer: não tenho nada a ver com esse filme, nunca projetei nada na TV Gazeta!”

 

E o filme continua perdido...

Existia uma cópia em 35 milímetros, das três que foram feitas, com o sujeito que projetava os filmes em Florianópolis. Ele era o responsável por todos os cinemas, embora não fosse o dono. O Carreirão deixou sob a guarda dele uma cópia de 35 milímetros. Um dia um dos participantes do filme, que tinha feito uma ponta, disse para o Carreirão: “me empresta este teu filme, eu vou levar e percorrer Santa Catarina dizendo venham conhecer Florianópolis e o primeiro filme feito em Florianópolis”. Carreirão, que já estava em outra e já não queria mais saber de cinema e nem de literatura, emprestou e nunca mais cobrou a devolução do filme. E até hoje não se sabe onde foi parar esta cópia. Que o cara andou projetando pelo interior, andou. Fez em São José, Lages, Criciúma, Itajaí, isso em fins dos anos sessenta quando eu já estava no Rio.

 

Sobre o Regime Militar. Sabemos que foste preso e que tiveste que ir para o Rio de Janeiro. Depois a Eglê também foi presa. O que desencadeou a tua prisão? Qual foi o argumento utilizado pelas forças de segurança para te prender?

Bem, a minha prisão foi uma coisa fantástica! Eu era chefe do escritório da Agência Nacional em Santa Catarina. A Agência Nacional era o órgão de comunicação do Governo Federal. Ao mesmo tempo eu era assessor de imprensa do governador Celso Ramos. Eu estava saindo do gabinete de relações públicas do governo, onde eu trabalhava, e estava indo para os Correios para passar uma mensagem para o Rio de Janeiro. Isto no dia 2 de abril. Mas disse: “vou tomar um cafezinho no ‘Ponto Chic’ antes de passar a mensagem.” Chego lá, peço um cafezinho, está lá um amigo, lembro-me até hoje, eu estava pronto para tomar o cafezinho quando vejo a rua cheia de policiais, civis e uma ambulância. Naquela época a rua era aberta, não como hoje, fechada para veículos. Chega um comissário perto de mim e disse: “estás preso!” “Pô, deixa de brincadeira e me deixa tomar um café em paz!” Resumo. “Estás vendo a ambulância ali? Vamos levá-lo ao 5º Distrito Naval.” “Que brincadeira é essa?” “Não é brincadeira! Nós temos uma autorização do 14º Batalhão de Caçadores para prendê-lo.” E aí fiz uma coisa que hoje eu não faria de maneira alguma; recusei-me a ir para o 5º Distrito Naval e a entrar na ambulância. Isso durou quase uma hora, e haja gente circulando em torno daquilo! Até que de repente, acho que esse comissário mandou alguém se informar e voltou dizendo assim: “tudo bem, quartel da polícia militar!” “Está certo.” “Entra na ambulância!” “Não. Já disse que não estou doente e não vou entrar na ambulância! Vamos fazer o seguinte. Sei muito bem onde é o quartel. Vou pegar um táxi e vocês podem ir de ambulância!” “Vai de táxi, mas dois soldados vão junto.” Os dois soldados chegaram para mim: “podemos ir no seu táxi? Porque se nós formos em outro, vai sair do nosso bolso e nós não ganhamos pra isso!” (RISOS) “Tudo bem, não tenho nada contra vocês.” Fui de táxi, desci lá na Praça Getúlio Vargas, na entrada do quartel militar. O comissário já estava lá e me entregou ao sub-comandante da polícia, que tinha sido oficial de gabinete do Celso Ramos, e nós dois trabalhamos juntos e várias vezes viajamos juntos. Ele me olhou e disse assim: “poxa Salim, é isso! Tu falavas demais, dizias o que querias dizer e não devias e agora estás aqui preso!” “Vou te dizer uma coisa. Isto comigo não é nada. Eu quero ver, amanhã ou depois, teu chefe Juscelino Kubitschek estar pior do que eu.” E não deu outra! Pouco depois cassaram o Juscelino. Fiquei 48 dias preso, e as alegações eram duas: primeiro a de que eu era chefe do núcleo do Partido Comunista de Santa Catarina. Eu nunca participei de partido político nenhum! Não acredito em partidos políticos, e estamos vendo hoje o que eles são. Sempre fui um homem de esquerda, embora hoje isto nem se deva mais dizer, mas continuo sendo um homem de esquerda. Mas diziam que eu era chefe do Partido Comunista e que tinha feito a Eglê entrar no partido porque eu não queria aparecer. Ela era filiada, mas isso nada tinha a ver com nosso relacionamento de marido e mulher e de pessoas que se gostam e até hoje continuam. Além disso, eu era sócio da Livraria Anita Garibaldi. Foi a primeira livraria a trabalhar com livros estrangeiros, de todas as tendências, inclusive livros de esquerda e comunistas. Mas era um ponto de referência em Santa Catarina. Foi a única livraria em todo o Brasil, na pacata Florianópolis, que foi queimada. Isso cinco dias depois de eu ter sido preso. Como o Brasil é um país surrealista, devo a minha soltura não só, mas principalmente, a um dos escritores mais importantes de Santa Catarina chamado Adonias Filho. Adonias Filho era um homem ligado aos militares. Quando o diretor geral da Agência Nacional foi obrigado a fugir, Josué Guimarães, um excelente jornalista e romancista, o Adonias assumiu a direção da Agência Nacional. Eu o conheci no Rio de Janeiro através do Jorge Lacerda, governador de Santa Catarina que morreu em um acidente de aviação. E o Adonias ficou muito espantado em ver um jovem provinciano conhecer toda a obra dele e discuti-la de igual para igual. Eu dizia: “ó Adonias, isso aqui você fez muito bem, mas eu não faria desse jeito” Quando ele assumiu a direção da Agência Nacional, a primeira coisa que fez foifoto procurar me soltar. Conseguiu depois de 48 dias. Fiquei preso no quartel da polícia militar. Os primeiros 30 dias de prisão fechada, sem poder me comunicar com ninguém. Os outros 18 dias meus filhos pequenos, minha família, já podiam me visitar. A Eglê não porque já estava presa. A minha soltura foi uma coisa fantástica! Eu estava no restaurante, porque os presos políticos, ao contrário dos coitados dos soldados, comiam no restaurante dos oficiais. Eu estava no restaurante dos oficiais com o prato e os talheres na mão quando ouço uma voz dizer “Salim Miguel!” Em um momento destes a primeira coisa que se pensa é: “o que virá de pior para mim?” E ele repetiu: “Salim Miguel!” “O que é que há?” “Vem comigo, estás solto!” “Pô, me deixa jantar em paz!” “Chegou um comunicado do 14º Batalhão de Caçadores, do General Sarmento, mandando te soltar.” Aí todos começaram a gritar: “janta! janta!” “Vou jantar? E vem outra mensagem me mandando ficar? Vou-me embora! Só que vou levar a faca e o garfo!” Como o oficial não disse nem sim e nem não, se vocês olharem na minha estante verão a faca e o garfo. Imediatamente telefonei para o Adonias, para saber o que tinha acontecido, e ele disse: “o seu processo foi arquivado e você continue dirigindo o escritório da Agência Nacional em Santa Catarina.” Mas já não havia mais condições. Amigos meus, dos tempos de infância, viravam rua para não me encontrar, enquanto pessoas que eu mal conhecia vinham me abraçar e me convidavam para tomar um cafezinho. É quando a gente fica conhecendo melhor o bicho homem, o ser humano.

 

Muito desta tua experiência já contaste no livro “Primeiro de Abril”, mas sofreste algum tipo de violência além da psicológica?

Nenhum dos sessenta que estavam presos comigo sofreu qualquer violência física. Sofreram violência psicológica. Narro uma no “Primeiro de Abril” que aconteceu comigo. Agora, uma coisa impressionante é a maneira como as pessoas se diferenciam numa prisão. A maneira como cada um encara aquilo. Tinha um que durante toda a prisão ficava numa posição fetal, todo encolhido, e nunca mais se recuperou. Não falava com ninguém. Tinha outros que contavam anedotas, jogavam, brincavam, numa maneira de tentar fugir daquela situação opressiva. No meu caso a Eglê, antes de ser presa, mandou-me um caderno e um lápis, porque não podia entrar caneta, e eu fui fazendo as anotações que resultaram no “Primeiro de Abril”. E no final do livro coloquei uma relação com o nome e a profissão de todos que estiveram presos comigo.

 

Inclusive, escreves o livro em 2ª pessoa.

O que é uma coisa rara no Brasil. Este livro acabou de sair na França, só que eles mudaram o título. Eles acharam que “Primeiro de Abril: Narrativas da Cadeia” funcionaria para o Brasil, mas não lá. Então eles me consultaram e eu concordei, e ficou assim: “Brasil, 1964: a ditadura se instala”.

 

E como se deu a prisão da Eglê?

A Eglê ficou mais tempo do que eu, só que ela foi presa em casa, numa manhã. Não chegaram a entrar na casa, não destruíram a nossa biblioteca, mas ela foi chamada, foi presa, e deixaram, sem ninguém em casa, quatro crianças, o mais velho com 10 anos e o mais moço com 4 anos. E foi preciso uma vizinha ligar para a minha irmã, para ela ir lá e pegar as crianças. A Eglê foi levada para o hospital da polícia militar, onde ficou uma semana. O Golpe, na verdade, não foi um golpe de militares, mas de civis e militares. A cidade se movimentou, começaram a falar tanto, que acabaram tirando a Eglê do hospital e a levaram para casa. Então ela ficou em prisão domiciliar. Quando fui libertado, ela ainda estava em prisão domiciliar. Então ela ficou mais tempo presa do que eu.

 

E por que a decisão de ir para o Rio de Janeiro?

Aqui eu volto a dizer que o Brasil é um país surrealista! Eu estava pensando o que iria fazer, porque não tinha mais condições de continuar na Agência Nacional. Seis dias depois de ser preso – fui demitido do meu cargo no serviço de imprensa do estado – recebo um telefonema do Adonias Filho dizendo o seguinte: “Salim, estou te mandando uma passagem, venha ao Rio porque nós precisamos conversar.” Cheguei lá, sentei no escritório dele e perguntei: “Qual é a necessidade da minha vinda ao Rio? Vamos falar de literatura?” “Quero trazer você para vir trabalhar na direção geral da Agência Nacional comigo.” “Adonias, isso é uma loucura! Eu vou sair de Florianópolis para vir cair na boca do lobo?” Aí ele falou uma frase que nunca esqueci: “Você tem as suas idéias e eu tenho as minhas; o que seria de um país sem idéias? Agora, você também não vai sair por aí berrando nas ruas que és de esquerda! Mas em Florianópolis não há condições de você continuar por dois motivos: primeiro porque há a possibilidade de que você volte para a prisão; segundo, tem uma amigo seu, jornalista, que veio ao Rio e pediu o seu lugar.” Não é um negócio fantástico? Um amigo jornalista foi ao Rio pedir o meu lugar! Fui para o Rio em fevereiro de 1965, ainda consegui me segurar aqui durante uns meses. Eu costumo dizer que foi uma pena o Golpe não ter acontecido antes, porque eu teria ido antes para o Rio. (RISOS)

 

Por que então a decisão de voltar para Santa Catarina?

O meu chão é Santa Catarina! Eu trabalhava em dois empregos com a carteira assinada, e trabalhava como free-lance em mais um jornal e fazia mais colaborações. Além disso, a Eglê cuidando de cinco filhos, fazia traduções, já que ela conhece muito bem vários idiomas, fazia revisão de livros, e não dava para a gente continuar no Rio de Janeiro. Em 1979 fui falar com o diretor da Agência Nacional, que já não era mais o Adonias há muito tempo, que disse assim: “tudo bem, você volta para Santa Catarina para dirigir a Agência Nacional.” “Não faça isso, por favor!” “Ou você aceita, ou não libero você daqui!” Vim, fiquei uns meses, mas não havia mais condições para eu ficar na Agência. Então fui colocado à disposição da Universidade Federal de Santa Catarina, o que foi bom. Aí sim, trabalhando bastante, mas não mais trabalhando em tempo integral, pude me dedicar mais à literatura e ao jornalismo. Acredito em três coisas, não acredito em inspiração, ou muito pouco, mas acredito em vocação, em talento e em persistência. Vocação todos nós temos, e alguns têm a sorte de ter vocação para mais de uma coisa. Por exemplo, tinha aqui um excelente médico, o Holdemar Menezes, que era um excelente ficcionista. No meu caso foi o jornalismo e a criação literária. Porque jornalismo também é literatura, embora muitos não aceitem. Talento; é preciso a gente regar o talento como quem rega uma flor muito preciosa e muito frágil. E a maneira de regar o talento é a persistência. “Eu quero ser isso, posso não ser um gênio nisso, mas devo chegar aonde quero chegar!” Então isso é a persistência que faz, e isso eu consegui em Florianópolis.

 

Uma pergunta clássica, que fazemos a todos os escritores. Quais são as tuas referências literárias? Claro, durante a tua carreira escreveste a respeito de uma infinidade de autores, e as epígrafes dos teus livros também nos permitem perceber um pouco das tuas referências. Mas o teu estilo estaria dentro daquilo que hoje chamamos de pós-moderno. Muitos dos teus livros têm uma trama bastante diferenciada daquilo que se praticava e daquilo que ainda se pratica ainda hoje. Já nas tuas críticas literárias vemos que tu tens uma formação literária bastante clássica, como Fernando Pessoa, por exemplo.

Isso é uma das coisas mais difíceis para mim, porque sempre fui um devorador de livros, e não satisfeito em ler, reli muito. Por exemplo, não sei quantas vezes reli Machado de Assis e Graciliano Ramos. São só dois exemplos. Mas se eu tivesse que ser obrigado a dizer quais os livros que mais me marcaram, eu teria dois: “Dom Quixote” e “As Mil e Uma Noites”. Acho que “Dom Quixote” deveria ser um livro obrigatório. Este foi o livro que talvez mais me marcou, embora eu já conhecesse anteriormente “As Mil e Uma Noites”. Primeiro pelo que minha mãe e meu pai contavam, que eram e não eram as “Mil e Uma Noites” que vim conhecer depois. Quando cheguei a Florianópolis, procurei logo “As Mil e Uma Noites” e encontrei uma edição resumida para o público juvenil, mas aquilo não me satisfez. Em 1956, eu já escrevia sobre livros e recebia praticamente tudo o que as editoras publicavam. Recebi da Saraiva uma edição em oito volumes de “As Mil e Uma Noites”, a única edição completa, com ilustrações de Aldemir Martins. Estão todas elas ali, traduzidas do francês. Depois disso comprei o que foi saindo, e só não comprei esta de agora, que é a primeira que está sendo traduzida diretamente do árabe, porque não vou conseguir ler já que estou praticamente cego. E outro fato. Cervantes esteve preso durante muito tempo. E na prisão e no contato com aquelas pessoas, ele deve ter sabido e ouvido muito d’“As Mil e Uma Noites”. Há no “Dom Quixote” uma influência que nunca foi devidamente examinada, ou se foi não tomei conhecimento, d’“As Mil e Uma Noites”. Mas tem outros livros que me marcaram. Um livro que é muito contestado e que algumas pessoas põem debaixo do braço para dizer que leram, mas que nunca leram, o “Ulisses” de James Joyce. Li “Ulisses” em 1948,foto aos 24 anos, em edição espanhola. Tinha saído na Argentina uma tradução na qual o tradutor trabalhou por sete anos. Depois li a tradução de Antônio Houaiss, que foi a primeira tradução brasileira e na qual ele levou um ano inteiro para aprontar. Ele tinha sido demitido do Itamarati e foi contratado pelo diretor da Civilização Brasileira para traduzir o “Ulisses”. Quando eu estava no Rio, colaborei com a Enciclopédia Delta Larousse, que era coordenada pelo Antônio Houaiss e pelo Otto Maria Carpeaux. Então conversei com o Houaiss sobre a tradução que ele fez. “Vou te dizer uma coisa, em alguns aspectos, embora não conheça o original, gostei mais da tradução argentina.” E ele disse que a conhecia. Ele fez a tradução dele consultando não só a edição inglesa, mas a italiana, a francesa, a alemã e esta espanhola. Na Rússia tem três ou quatro que não canso de ler e reler: Dostoievski, Tolstoi, Gogol e Tchekhov, que para mim, é um dos mais importantes contistas de toda a história do conto, desde os tempos mais antigos.

 

Gostaria que falasses sobre o teu processo criativo. Como surgem as idéias? Onde buscas as histórias? Vemos que muito é autobiográfico...

Eu disse, no começo desta nossa conversa, que os temas com que o escritor trabalha são relativamente os mesmos desde o início dos tempos. Agora, no meu caso, não tenho personagens nem temas. Temas ou personagens é que me procuram. Para alguns digo: “tudo bem, vamos trabalhar”; para outros: “procure outro escritor porque não consigo chegar aonde tu queres”. Posso dar dois exemplos. Quando vou para um livro, um conto, uma novela, não sei como ele vai caminhar ou até onde ele vai chegar. Não sou como Érico Veríssimo ou como é aqui o Adolfo Boos Júnior. Eles fazem uma planta baixa, estruturam tudo o que vão narrar, o local, a situação, o perfil dos personagens. Eu não, não sei nada disso. Então vou contar esses dois casos. Primeiro, eu estava na minha casa de praia e, de noitinha a minha filha, que estava passando as férias conosco, atendeu ao telefone e me chamou. “Quem é?” “Não sei, é uma mulher.” Peguei o telefone: “É Salim Miguel? Estou chegando do Rio e preciso encontrá-lo.” “Por quê?” “Só posso explicar quando nos encontrarmos. Vamos nos encontrar em um bar?” “Desculpe, mas não vou sair. Por que não vens na minha casa de praia?” “A sua casa é muito longe, mas tenho que vê-lo! Vim do Rio especialmente para isso!” “Então amanhã pela manhã procure-me na editora da universidade, onde trabalho.” No outro dia eu estava passando uns originais para a secretária quando ouço uma voz dizer “que pena! Parece mas não é! Me desculpe!” Olho para a dona da voz. “O que é?” “Desculpe, parece mas não é.” “Mas parece e não é o quê?” “Vi uma fotografia sua num jornal do Rio falando do lançamento do seu livro e disse ‘é ele! É o homem que ando procurando desde 1964!’.” “Mas que história maluca é essa?” “Desculpe!” “Não, você me criou um problema em casa. Minha mulher agora está pensando que eu tive um caso com alguém. E agora diz ‘que pena’, ‘desculpe’, ‘não é ele’ e vai embora? Você vai sentar aqui e me explicar esta história!” Ela me contou um verdadeiro tema que não daria só um conto, como acabei fazendo, mas uma novela ou um romance. Só que nunca consegui dar o clima que ele merecia. Mas ainda assim fui obrigado a publicá-lo porque nunca consegui me livrar daquilo. O conto se chama “Um Verão Louco”. O outro é muito mais fantástico ainda! Eu estava em Chapecó com Gervásio Batista, fazendo uma reportagem sobre o extremo oeste de Santa Catarina para a revista Manchete. Nós estávamos sentados em um restaurante, tínhamos pedido um jantar e uma cerveja. Eu estava resumindo para o Gilmar Batista o romance “São Miguel” do Guido Wilmar Sassi, que se passa naquela região. De repente vejo alguém se levantar e dizer: “posso sentar?” Antes que a gente pudesse dizer “pode”, ele sentou. “Estava naquela mesa ao lado, ouvia o que estavas contando e me interessei muito. Sou balseiro, minha vocação é ser balseiro, poderia ser outra coisa, mas eu gosto muito de ler e fiquei interessado neste romance porque se passa por aqui.” “Eu não tenho o romance aqui e ele está esgotado, talvez encontres nos sebos.” “Só para provar que gosto de ler, vou dizer que li a pouco ‘E Rilo Oscuro’ do Alfredo Varela.” “Conheço, é um bom romance.” “Mas este outro tu não conheces: “Anaconda”, do Horácio Quiroga.” “Também conheço!” “Ma tu conheces tudo?” “Não, não conheço tudo. Por exemplo, não sei o que é esse teu trabalho de balseiro. Sei o que é uma balsa porque já andei em uma, mas balseiro, como tu, não sei o que é.” “Mas para eu contar o que é ser balseiro, preciso tomar outra coisa que não seja essa cerveja. Preciso de um conhaque ou de uma cachaça da brava. Posso pedir?” “Mas por que estás me pedindo?” “Por que sei que vais anotar na cachola tudo que estou te dizendo, depois vais escrever tudo isso e vais me transformar em personagem. E os meus direitos autorais?” (RISOS).  Este sim acho que é um dos meus contos que mais me agrada. Chama-se “Ponto de Balsa”. As florestas naquela região estão praticamente devastadas porque os madeireiros cortavam a madeira, transformavam-na em tábuas e toras, faziam balsas e esperavam a enchente para levar para a Argentina. Isso era corriqueiro naquela região de Santa Catarina. A história dele era a de uma balsa que ele estava levando para a Argentina durante um temporal enorme, e eles acharam que o temporal tinha terminado, mas não. A balsa bate e afunda e os amigos dele, mais a mulher com quem ele vivia, desaparecem e ele nunca mais os encontra. Ele me contou e eu anotei tudo, e o conto é mais dele do que meu, mas dei tempero e esta é a minha maneira de escrever. No meu último livro de contos, publicado pela Editora Record, “O Sabor da Fome”, tem três contos cujo início é igual. Eu estou em uma sala escura, de uma clínica oftalmológica, e pessoas que estão ali me contam pedaços das suas vidas, que transformo em contos.

 

Apesar da crítica ainda não ter discutindo com o cuidado que merece, teu livro “As Confissões Prematuras” é uma novela diferente, tem uma trama diferenciada, não linear, apresentando só três personagens (o gordo, o magro e a mulher). Como se deu a idéia e a construção deste livro?

Foi quando eu estava na quarta para a quinta versão do “Nur na Escuridão” e não consegui mais ir adiante. Eu precisava terminar o romance, mas não conseguia mais ir adiante. Foi quando disse para a Eglê: “vou ver se pego alguma coisa que seja inteiramente fora do meu mundo ficcional, que é Biguaçu e Florianópolis.” “Tenta!” “Se eu conseguir isto, talvez possa retomar o ‘Nur’.” Então pensei em três personagens sem nome, numa cidade em que nada pudesse ser identificado e onde as únicas referências seriam o gordo, o magro, a mulher e uma janela iluminada em um prédio, à noite, e onde na se via mais nada. E incidentalmente tem uma passagem num hospital. Fiz uma primeira versão, e nesta já senti a necessidade de incluir mais um personagem secundário, que pode ser o autor mas não o é, é um outro autor que se intromete ali dentro, e de repente até o leitor. Fiz uma coisa, que também não é nova, onde o livro é narrado, ao mesmo tempo, na primeira, na segunda e na terceira pessoa. Isto eu devo em parte ao Miguel de Unamuno, que tem um romance chamado “Niebla”, um livro muito bom onde um personagem se rebela contra o que está sendo escrito. E na verdade são dois personagens. Primeiro a mulher, que na máquina de escrever do leitor ou do autor, escreve uma carta que é publicada na íntegra; e no fim do livro tem a carta do gordo. Só que enquanto que a carta da mulher é publicada na íntegra, a do gordo é recheada de observações de um pseudo-autor, onde este concorda ou não concorda com o que o gordo está dizendo. Agora tem uma coisa curiosa. Passei este livro para o Fábio Brüggemann e o Péricles Prade, da editora Letras Contemporâneas. Não tentei uma editora de fora porque eles iam dizer: “puxa, isso não tem nada a ver com a tua literatura.” Tem e não tem! O livro saiu e em menos de dez meses e esgotou a primeira edição. Muitas pessoas me contataram dizendo que neste livro era um outro Salim Miguel. Não, é o mesmo, porque não consigo ser, como outros escritores, 350, como diria Mário de Andrade. Mas foi uma experiência curiosa. Tem inclusive uma publicação da Universidade de Brasília com dois textos discutindo este livro. Ele está com a segunda edição esgotada, e quero ver se no próximo ano a Record tem interesse em lançá-lo junto com outro livro meu, “As Várias Faces”, que é uma novela em três atos. Tentei fazer uma peça de teatro, não consegui, mas também não consegui me desgrudar da estrutura do teatro, então resolvi fazer uma novela em três atos.

 

“Jornada com Rupert”. Poderias falar um pouco sobre este teu novo livro?

Penso que imigração e colonização são iguais e são diferentes. Imigração é aquela família que vem de fora, sozinha. A minha tia, por exemplo, em 1920 ou 21 se tocou sozinha para o Brasil, maluca que era! Isso é imigração. Colonização é um grupo que já vem com um espaço definido, já sabe para onde vai, embora não tenha a menor idéia de como é este lugar. O que é “Jornada com Rupert”? “Jornada com Rupert” é a colonização do Vale do Itajaí. Só que não faço um romance histórico, muito pelo contrário. Eu pego Rupert, que é o protagonista do livro, e três famílias, e em torno deles faço, durante um dia, um percurso que traz fragmentos da colonização alemã no Vale do Itajaí. Não tem ordem cronológica. O romance começa com o dia em que Rupert está saindo de Blumenau. De repente, no terceiro capítulo, nós estamos em 1870, quando os avós e tios-avós estão chegando a Blumenau. Em outro capítulo estamos no início do século passado, depois estamos nos anos de 1940, depois em 1946, onde Rupert está em um bar com os amigos. Então vou intercalando fragmentos com a colonização alemã. No final do livro temos Blumenau e temos Rio de Janeiro, porque uma das personagens, filha de um imigrante que chegou depois da guerra de 1914-18 e que vai abrir, em Blumenau, uma relojoaria além de ser um excelente fotógrafo. Ele vai se casar com uma blumenauense e da união nasce esta sua filha que, antes do Rupert, não consegue mais viver em Blumenau e se toca para o Rio de Janeiro. Então, na parte final do livro, nós temos intercaladas as cartas que ela manda para o pai e a situação de Blumenau. E o livro se fecha na véspera de Blumenau completar cem anos. Mas ali estão, como em outros livros meus, passagens da história do Brasil. 1930 e Getúlio; 36, Plínio Salgado em Blumenau; 37, a Espanha sendo invadida pelas forças do Franco, ajudado por Mussolini e por Hitler; 42, o Brasil entrando na Guerra. Então tudo isso vai pontilhar para dar um contexto da história do país neste período, o que já fiz no “Nur na Escuridão”. Então a editora está acreditando no livro e eu também. Costumo dizer que o melhor livro é aquele que se está escrevendo, senão não teria sentido continuar escrevendo.

 

Para terminarmos gostaria de abordar uma questão cujo debate vem se tornando cada vez mais acalorado, que é o da existência ou não da literatura catarinense. Existe uma literatura catarinense, ou podemos falar de uma literatura produzida em Santa Catarina?

Gosto muito mais da idéia de uma literatura feita em Santa Catarina. Em 50, quando trabalhava no Diário da Manhã, fiz um debate em cima desse tema: Literatura de Santa Catarina. Porque literatura catarinense é muito mais vago. Literatura de Santa Catarina pode ser feita aqui, mas não necessariamente em cima de temas de Santa Catarina. Acho que nós temos em Santa Catarina, e já tínhamos no passado também, nomes representativos que trabalham, ou não, em cima de temas fotonossos. Por exemplo, tem o livro do Othon D’Eça, que este ano está no vestibular, o “Homens e Algas”, que é um livro importantíssimo. Tem o Virgílio Várzea e, do Grupo Sul para cá, há muitos nomes representativos. Em Santa Catarina nós tivemos um movimento importantíssimo que foi o “Idéia Nova”, de Cruz e Sousa e Virgílio Várzea. Depois vem a geração da revista Terra, da Academia Catarinense de Letras, mas se tu pegares os membros que criaram a Academia, não tem nenhum que tenha deixado uma obra literária, não só na ficção, mas também no ensaio, na crítica e na historiografia. Tem, depois, alguns acadêmicos que vão surgir, como o Othon D’Eça, o Oswaldo Cabral, o Almiro Caldeira. A partir do Grupo Sul criou-se a consciência de que em Santa Catarina há um campo para todas as áreas de cultura, não só literatura, mas cinema, artes plásticas, música. Um dos nomes mais representativos da música clássica é o Edino Krieger, e o pai dele, o Aldo Krieger é outro nome importante. Na pintura nós não temos só Vitor Meireles, tem Martinho de Haro, tem Hassis entre outros.


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CASA DA LITERATURA CATARINENSE

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