sábado, 13 de junho de 2020

ENTREVISTA COM A ESCRITORA CLARICE LISPECTOR

Uma rara entrevista de Clarice Lispector, concedida em 1977, ao repórter Júlio Lerner, da TV Cultura. Depois de gravada, Clarice pediu que a entrevista só fosse divulgada após sua morte. Foi ao ar dez meses depois. Clarice morreu em dezembro de 1977, aos 57 anos

De minha sala até o saguão dos estúdios tenho que percorrer cerca de 150 metros. Estou tão aturdido com a possibilidade de entrevistá-la que mal consigo me organizar naquela curta caminhada. Talvez falar sobre “A Paixão Segundo G.H”… Ou quem sabe sobre “A Maçã no Escuro” e “Perto do Coração Selvagem”… Vou recordando o que Clarice escreveu. Será que li tudo? Em apenas cinco minutos consegui um estúdio para entrevistá-la.

São quatro e quinze da tarde e disponho de apenas meia hora. Às cinco entra ao vivo o programa infantil e quinze minutos antes terei de desocupar o estúdio. Estou correndo e antes mesmo de vê-la a pressão do tempo começa a me massacrar. Não terei condições de preparar nada antes, nem mesmo conversar um pouco. Não poderei sequer tentar criar um clima adequado para a entrevista. Eu odeio a TV brasileira! Só meia hora para ouvir Clarice. O pessoal da técnica foi novamente generoso e se empenhou para conseguir essa brecha. Olho o relógio, não consigo me organizar, estou correndo, olho novamente o relógio. Estou desconcertado, atinjo o saguão dos estúdios e a vejo ali, dez metros adiante, Clarice de pé ao lado de uma amiga, perdida no meio do vaivém dos cenários desmontados, de diversos equipamentos e de técnicos que falam alto, no meio de um grande alvoroço.

Paro diante dela, estou um pouco ofegante, estendo-lhe a mão e sou atravessado pelo olhar mais desprotegido que um ser humano pode lançar a semelhante. Ela é frágil, ela é tímida, e eu não tenho condições para explicar que o problema do tempo elevou meus níveis de ansiedade. Clarice me apresenta Olga Borelli, entramos e a conduzo ao centro do pequeno estúdio. Peço para que ela sente numa poltrona de couro de tonalidade café-com-leite. Clarice segura apenas um maço de Hollywood e uma caixa de fósforos, providencio um cinzeiro, os refletores malditos são ligados. Clarice me olha. O olhar de Clarice me interroga, só disponho de uma única câmera, o olhar de Clarice suplica, Olga se ajeita numa lateral escurecida, chega Miriam, a estagiária do programa e fica encolhida e calada, o calor está ficando insuportável e o ar-condicionado não está ajustado, são apenas quatro e vinte, Clarice tenta me dizer alguma coisa mas não falo com ela, preocupado em ajustar uma questão de iluminação, o hálito da fornalha já nos atinge a todos, devemos ter agora no estúdio uns 50 ou 60 graus, maldita TV, bendita TV do terceiro mundo que me possibilita estar agora frente a frente com ela, Clarice me olha melindrosa, assustada e seu olhar me pede para que a tranquilize.

“OK, Júlio, tudo pronto”, a voz metálica vem da caixa dos alto-falantes. Peço a toda equipe para sair, cabo man, iluminador, assistente de estúdio, agradeço. Clarice percebe que caiu numa arapuca e já não há como voltar atrás. Peço silêncio e depois de uns dez segundos ecoa um “gravando”.

Não conversamos antes e disponho apenas de 23 minutos. Estou completamente desconcertado, fico um minuto em silêncio fitando Clarice. Estou oco, vazio, não sei o que dizer. Clarice me olha curiosa, mas vigilante, defendida. Sou o senhor do castelo e — prepotente — guardo comigo a chave desta prisão. Ninguém pode entrar ou sair sem meu expresso consentimento. Todos devem se submeter à minha autoritária vontade.

A fornalha arde, meu coração dispara, minha boca está seca e debaixo destes tirânicos mil sóis sou o maior dos tiranos. Começa a entrevista. A entrevista avança. Seus olhos azuis-oceânicos revelam solidão e tristeza. Clarice está nua, não há perdão, Clarice agora está encapotada, ela se deixa agarrar, mas logo escapa, e volta, e me pega, e me sugere o longe, o não dizível, depois se cala. E quando nada mais espero, ela volta a falar. Faço uma antientrevista, pausas, silêncios, Clarice agora está fugindo para uma galáxia inabitada e inatingível, mas volta em seguida e, tolerante, suporta toda a minha limitação.

Acho que ela vai se levantar a qualquer instante e me dizer: “Chega!”. Clarice pressente que por trás de meu sorriso aparentemente compreensivo e de minha fala suave esconde-se um ser diabólico autodenominado “repórter” e que quer possuir sua intimidade. Seu corpo exprime receios, ela me afasta, mas de novo me atrai, suas pernas se cruzam e se descruzam sem parar e telegrafam que de repente ela poderá se levantar e partir.

 

Clarice Lispector, de onde veio esse Lispector?

É um nome latino, não é? Eu perguntei a meu pai desde quando havia Lispector na Ucrânia. Ele disse que há gerações e gerações anteriores. Eu suponho que o nome foi rolando, rolando, rolando, perdendo algumas sílabas e foi formando outra coisa que parece “Lis” e “peito”, em latim. É um nome que quando escrevi meu primeiro livro, Sérgio Milliet (eu era completamente desconhecida, é claro) diz assim: “Essa escritora de nome desagradável, certamente um pseudônimo…”. Não era, era meu nome mesmo.


Você chegou a conhecer o Sérgio Milliet pessoalmente?

Nunca. Porque eu publiquei o meu livro e fui embora do Brasil, porque eu me casei com um diplomata brasileiro, de modo que não conheci as pessoas que escreveram sobre mim.


Clarice, seu pai fazia o que profissionalmente?

Representações de firmas, coisas assim. Quando ele, na verdade, dava era para coisas do espírito.


Há alguém na família Lispector que chegou a escrever alguma coisa?

Eu soube ultimamente, para minha enorme surpresa, que minha mãe escrevia. Não publicava, mas escrevia. Eu tenho uma irmã, Elisa Lispector, que escreve romances. E tenho outra irmã, chamada Tânia Kaufman, que escreve livros técnicos.


Você chegou a ler as coisas que sua mãe escreveu?

Não, eu soube há poucos meses. Soube através de uma tia: “Sabe que sua mãe fazia um diário e escrevia poesias?” Eu fiquei boba…


Nas raras entrevistas que você tem concedido surge, quase que necessariamente, a pergunta de como você começou a escrever e quando?

Antes de sete anos eu já fabulava, já inventava histórias, por exemplo, inventei uma história que não acabava nunca. Quando comecei a ler comecei a escrever também. Pequenas histórias.


Quando a jovem, praticamente adolescente Clarice Lispector, descobre que realmente é a literatura aquele campo de criação humana que mais a atrai, a jovem Clarice tem algum objetivo específico ou apenas escrever, sem determinar um tipo de público?

Apenas escrever.


Você poderia nos dar uma ideia do que era a produção da adolescente Clarice Lispector?

Caótica. Intensa. Inteiramente fora da realidade da vida.


Desse período você se lembra do nome de alguma produção?

Bem, escrevi várias coisas antes de publicar meu primeiro livro. Eu escrevia para revistas — contos, jornais. Eu ia com uma timidez enorme, mas uma timidez ousada. Eu sou tímida e ousada ao mesmo tempo. Chegava lá nas revistas e dizia: “Eu tenho um conto, você não quer publicar?” Aí me lembro que uma vez foi o Raimundo Magalhães Jr. que olhou, leu um pedaço, olhou para mim e disse: “Você copiou isso de quem?” Eu disse: “De ninguém, é meu”. Ele disse: Você traduziu?” Eu disse: “Não”. Ele disse: “Então eu vou publicar”. Era sim, era meu trabalho.


Você publicava onde?

Ah, não me lembro… Jornais, revistas.


Clarice, a partir de qual momento você efetivamente decidiu assumir a carreira de escritora?

Eu nunca assumi.


Por quê?

Eu não sou uma profissional, eu só escrevo quando eu quero. Eu sou uma amadora e faço questão de continuar sendo amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever. Ou então com o outro, em relação ao outro. Agora eu faço questão de não ser uma profissional para manter minha liberdade.


A sua produção ocorre com frequência ou você tem períodos?

Tenho períodos de produzir intensamente e tenho períodos-hiatos em que a vida fica intolerável.


E esses hiatos são longos?

Depende. Podem ser longos e eu vegeto nesse período ou então, para me salvar, me lanço logo noutra coisa, por exemplo, eu acabei uma novela, estou meio oca, então estou fazendo histórias para crianças.


Como você explica a Clarice Lispector voltada para a literatura infantil?

Começou com meu filho quando ele tinha seis anos, seis ou cinco anos, me ordenando que escrevesse uma história para ele. E eu escrevi. Depois guardei e nunca mais liguei. Até que me pediram um livro infantil. Eu disse que não tinha. Eu tinha inteiramente esquecido daquilo. Era tão pouco literatura para mim, eu não queria usar isso para publicar. Era para o meu filho. Aí lembrei: “Bom, tenho, sim”. Então foi publicado. Foram publicados três livros de literatura infantil e estou fazendo o quarto agora.


É mais difícil você se comunicar com o adulto ou com a criança?

Quando me comunico com criança é fácil porque sou muito maternal. Quando me comunico com o adulto, na verdade, estou me comunicando com o mais secreto de mim mesma.


O adulto é sempre solitário?

O adulto é triste e solitário.


E a criança?

A criança tem a fantasia solta.


A partir de que momento, de acordo com a escritora, o ser humano vai se transformando em triste e solitário?

Ah, isso é segredo. Desculpe, não vou responder. A qualquer momento da vida, basta um choque um pouco inesperado e isso acontece. Mas eu não sou solitária. Tenho muitos amigos. E só estou triste hoje porque estou cansada. No geral sou alegre.


Normalmente o contato do jovem estudante com você revela que tipo de preocupação?

Revela coisas surpreendentes, que eles estão na minha.


O que significa “estar na sua”?

É que eu penso às vezes que eu estou isolada e quando eu vejo estou tendo universitários, gente muito jovem, que está completamente ao meu lado e é gratificante, não é?


Nós ouvimos com frequência que as novas gerações pouco leem no Brasil. Você confirma isso?

Bem, os universitários são obrigados a ler porque impõem a eles a obra. Agora não estou a par dos outros.


De seus trabalhos qual aquele que você acredita que mais atinja o público jovem?

Depende. Por exemplo, o meu livro “A Paixão Segundo G.H”, um professor de português do Pedro II veio até minha casa e disse que leu quatro vezes e ainda não sabe do que se trata. No dia seguinte uma jovem de 17 anos, universitária, disse que este é o livro de cabeceira dela. Quer dizer, não dá para entender.


E isso acontece em relação a outros trabalhos seus?

Também em relação ao outros trabalhos, ou toca ou não toca. Suponho que não entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato. Tanto que o professor de português e literatura, que deveria ser o mais apto a me entender, não me entendia. E a moça de 17 anos lia e relia o livro, não é? O que é um alívio.


Antes de nos encontrarmos aqui no estúdio você me dizia que está começando um novo trabalho agora, uma novela…

Não, eu acabei a novela.


Que novela é essa, Clarice?

É a história de uma moça que só comia cachorro-quente. A história é de uma inocência pisada, de uma miséria anônima…


O cenário dessa novela é…

É o Rio de Janeiro… Mas o personagem é nordestino, é de Alagoas…


Onde você foi buscar a inspiração, dentro de si mesma?

Eu morei no Recife, me criei no Nordeste. E depois, no Rio de Janeiro tem uma feira de nordestinos no Campo de São Cristóvão e uma vez eu fui lá. E peguei o ar meio perdido do nordestino no Rio de Janeiro. Daí começou a nascer a ideia. Depois eu fui a uma cartomante e ela disse várias coisas boas que iam acontecer e imaginei, quando tomei o táxi de volta, que seria muito engraçado se um táxi me atropelasse e eu morresse depois de ter ouvido todas aquelas coisas boas. Então a partir daí foi nascendo também a trama da história.


Qual o nome da heroína da novela?

Não quero dizer. É segredo.


E o nome da novela, você poderia revelar?

Treze nomes, treze títulos.


Rilke, em seu livro “Cartas a um Jovem Poeta”, respondendo a uma das missivas, pergunta a um jovem que pretendia se tornar escritor: se você não pudesse mais escrever, você morreria? A mesma pergunta eu transfiro a você.

Eu acho que, quando não escrevo estou morta.


Esse período?

É muito duro, esse período entre um trabalho e outro, e ao mesmo tempo é necessário para haver uma espécie de esvaziamento para poder nascer alguma outra coisa, se nascer. É tudo tão incerto…


Clarice, mas como é que você escreve? Existe algum horário específico?

Em geral de manhã cedo. As minhas horas preferidas são as da manhã.


Você acorda a que horas?

Quatro e meia, cinco horas. Fico fumando, tomando café, sozinha sem nenhuma interferência. Quando estou escrevendo alguma coisa eu anoto a qualquer hora do dia ou da noite, coisas que me vêm. O que se chama inspiração, não é? Agora quando estou no ato de concatenar as inspirações, aí sou obrigada a trabalhar diariamente.


Você se considera uma escritora popular?

Não.


Por qual razão?

Me chamam de hermética. Como é que eu posso ser popular sendo hermética?


E como você vê esta observação “hermética”?

Eu me compreendo. De modo que não sou hermética para mim. Bom, tem um conto meu que não compreendo muito bem…


Que conto?

“O ovo e a galinha”.


Entre seus diversos trabalhos existe um filho predileto. Qual aquele que você vê com maior carinho até hoje?

“O ovo e a galinha”, que é um mistério para mim. Uma coisa que eu escrevi sobre um bandido, um criminoso chamado Mineirinho, que morreu com três balas quando uma só bastava. E que era devoto de São Jorge e que tinha uma namorada.


Sobre esse seu trabalho em torno de Mineirinho, qual o enfoque você deu?

Eu não me lembro muito bem, já faz bastante tempo. Há qualquer coisa assim como “o primeiro tiro me espanta, o segundo tiro não sei o que, o terceiro tiro…” Eu me transformei no Mineirinho, massacrado pela polícia. Qualquer que tivesse sido o crime dele uma bala bastava, o resto era vontade de matar. Era prepotência.


Em que medida o trabalho de Clarice Lispector no caso específico de Mineirinho pode alterar a ordem das coisas?

Não altera em nada. Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa.


No seu entender, qual é o papel do escritor brasileiro hoje?

De falar o menos possível


Você tem mantido contato como outros escritores?

Eventualmente.


Quais aqueles que você acredita serem os mais significativos?

Eu prefiro não citar nomes porque eu vou esquecer alguns e vai ofender, vai ferir. Assim, eu não cito ninguém.


Você discute muito com a Clarice Lispector escritora?

Não. Eu me deixo ser…


E convivem em paz?

Ás vezes não em paz, mas…


Normalmente, que tipo de problema a Clarice Lispector escritora traz a você?

Às vezes o fato de me considerar escritora me isola.


Por qual razão?

Me põe um rótulo.


E você acredita que as pessoas olham para você através desse rótulo?

Às vezes através desse rótulo. Tudo o que eu digo, a maior bobagem, é considerada como uma coisa linda ou uma coisa boba. É por isso que não ligo muito para essa coisa de ser escritora e dar entrevistas e tudo.


Você acredita que uma pessoa vá a uma livraria comprar especificamente um livro de Clarice Lispector?

Parece que isso acontece. Eu sei porque às vezes me telefonam e me perguntam em que livraria encontram meu livro. Então eu sei que tem pessoas que vão procurar exatamente o meu livro. É que no fundo eu escrevo muito simples, sabe?


Será que as coisas simples hoje são recebidas de maneira complicada?

Talvez, talvez… Eu escrevo simples. Eu não enfeito.


Na sua formação como escritora quais aqueles autores que você sente que realmente lhe influenciaram, que marcaram?

Eu não sei realmente porque misturei tudo. Eu lia romance para mocinhas, livro cor-de-rosa, misturado com Dostoiévski. Eu escolhia os livros pelos títulos e não pelos autores. Misturei tudo. Fui ler, aos treze anos, Hermann Hesse, [o romance] “O Lobo da Estepe”, e foi um choque. Aí comecei a escrever um conto que não acabava nunca mais. Terminei rasgando e jogando fora.


Isso ainda acontece de você produzir alguma coisa e rasgar?

Eu deixo de lado… Não, eu rasgo sim.


É produto de reflexão ou de uma emoção?

Raiva, um pouco de raiva.


De quem?

De mim mesma.


Por que, Clarice?

Sei lá, estou meio cansada.


Do quê?

De mim mesma.


Mas você não renasce e se renova a cada trabalho novo?

Bom, agora eu morri. Mas vamos ver se eu renasço de novo. Por enquanto eu estou morta. Estou falando do meu túmulo.

 




Entrevista concedida ao jornalista Júlio Lerner, em 1 de fevereiro de 1977, para o programa “Panorama”, da TV Cultura, de São Paulo.

ENTREVISTA COM A ESCRITORA CATARINENSE URDA ALICE KLUEGER

Urda Alice Klueger nasceu em Blumenau, cidade onde construiu sua carreira literária. Historiadora fotograduada e pós-graduada na Universidade Regional de Blumenau, é autora de quase vinte livros entre romances, crônicas, relatos de viagens e literatura infanto-juvenil, dos quais se destacam: “Verde Vale” (1979), “No Tempo das Tangerinas” (1983), “Cruzeiros do Sul” (1992), “Entre Condores e Lhamas” (1999), “No Tempo da Bolacha Maria” (2002) e “Sambaqui” (2008). Militante dos movimentos sociais, Urda atua também como editora e pesquisa a arqueologia do litoral de Santa Catarina. Nesta entrevista, concedida ao Sarau Eletrônico em novembro de 2008, a escritora fala, entre outros assuntos, sobre sua infância, sua obra, sua história de vida e sobre sua passagem por grandes veículos da imprensa escrita catarinense.




“Meu sonho de consumo era ser sócia da Biblioteca”

(Entrevista: Viegas Fernandes da Costa / Fotos: Gabriel Severo Venco Teixeira da Cunha)


Gostamos de começar nossas entrevistas perguntando a respeito da história de vida dos nossos entrevistados. Onde a Urda nasceu e se criou?

Sou blumenauense. Nasci na Rua XV, no tempo em que meus pais moravam lá. Eles eram muito de se mudar, ir para a praia, voltar da praia, então morei muito cá e lá. Mas toda a minha base é de Blumenau. Tanto meu pai quanto minha mãe eram egressos da agricultura. Ambos saíram da agricultura por causa da 2ª Guerra Mundial: meu pai, blumenauense, porque foi ser soldado, e minha mãe porque veio de Tijucas ocupar o espaço que a guerra abriu nas fábricas porque os rapazes foram para o exército. Aquele tempo era o tempo em que as mulheres obedeciam aos homens, e meu pai se criou e trouxe para nós todo um pensamento de direita, vamos dizer assim. Nesses cinco anos em que ficou no exército por conta da guerra – ele deu baixa quando começa a guerra e é chamado de volta quando o Brasil entra na guerra – , passou a admirar profundamente o exército. Em 1964 ele apóia o golpe militar, e não só ele, mas meus vizinhos, os parentes e todo mundo. Então sou criada dentro da direita, e só bem mais tarde vou fazer a caminhada para o outro lado. Sou da geração do medo, porque as pessoas sumiam, os nossos professores e amigos sumiam. Alguns voltavam, alguns não voltavam. Tive um professor muito querido, o Ewaldo Trierweiler, que foi levado pela ditadura, preso e torturado no porão de um navio em Itajaí. Então a gente tinha muito medo de falar as coisas. A partir dos 16 ou 17 anos morei na casa de uma prima, que era um pouco mais nova do que eu, e nós íamos juntas para a escola, ficávamos juntas durante o recreio, voltávamos no mesmo ônibus, com a mesma turma, fazíamos os deveres juntas, fazíamos as tarefas domésticas, íamos fumar um cigarrinho escondidas, e tudo isso fazíamos juntas e com medo. Desde a hora em que acordávamos, até a hora em que íamos dormir, não tínhamos coragem de falar sobre nossos pensamentos políticos. Em 1964, quando se dá o golpe, eu tinha 12 anos e era muito criança. Mas a gente foi crescendo e, a partir de certo momento, começamos a sentir o peso da pressão do medo. As novidades políticas, as mudanças de pensamento, o que estava acontecendo lá fora, não chegavam através dos jornais, das rádios ou das revistas, mas através da música: Chico Buarque, Caetano Veloso e outros. Mas era uma resistência muito difícil. O disco saía e logo era apreendido, porém todo mundo já o tinha decorado ou comprado. As músicas eram de uma crítica muito velada, mas para nós elas diziam tudo. Hoje algumas dessas músicas são tidas como músicas de amor. Tem uma música do Chico Buarque que diz “Hoje você é quem manda/ Falou ta falado/ Não tem discussão/ Não” e que as novas gerações pensam que é uma música de amor, de namorados brigando, mas é o Chico falando com o Presidente da República. A gente tinha essa consciência.

 

Em várias entrevistas que concedeste, falas dessa geração do medo, de como subias os morros...

Era um poço!  Na casa da minha prima tinha um gramado onde tínhamos visão para todos os lados, e no meio desse gramado tinha um poço desativado. Sentávamos sobre este poço para conversarmos sobre nossas idéias políticas. Porque ali podíamos observar em todas as direções e não havia ninguém que nos pudesse ouvir. Quando os pais da minha prima nos ouviam conversando, enquanto lavávamos a louça ou alguma coisa assim, vinham-nos dizer “fiquem quietas! Pode ter alguém do lado de fora escutando”. A Marlene de Fáveri fez um levantamento sobre o medo na 2ª Guerra Mundial e conta muitos exemplos destes. Era um outro tempo, outro momento, mas equivalente. Tinha coisas que a gente jamais diria em um ponto de ônibus, por exemplo, porque havia gente escutando e que poderia nos denunciar, e assim como tinha gente sumindo, nós também poderíamos sumir.


Quando conversamos com as pessoas sobre este período em Blumenau, o que muitas vezes ouvimos é que a ditadura não teria chegado aqui. Ao te ouvir falar, tenho a impressão que este medo veio principalmente pela fala dos teus pais e também pela música. Mas para teres consciência daquilo que a música dizia, tu já tinhas consciência de que alguma coisa estava instalada. Como surge esta consciência?

É aos poucos. O general mandava e a gente obedecia. Meu pai tinha aquela concepção de soldado: obedece e pronto! Mas nesse período vivi muito tempo fora de casa, então acho que a influência veio da escola, da concepção dos nossos professores. Hoje sei que determinados soldados que andaram se matriculando no ginásio, no científico, do Colégio Pedro II, onde eu estudava, estavam lá não como alunos regulares, mas como espiões. Então os professores calavam a boca, e aqueles que não a calavam e diziam o que pensavam... Como foi o caso do professor Ewaldo Trierweiler, que clamava por justiça social – ele era muito religioso, católico, e clamava por uma justiça social quase que bíblica – , o que o levou para a prisão. Então esse medo vai se criando conforme a gente vai crescendo e aprendendo que não podemos falar. E até hoje acho que não superei este medo. Quando o Décio Neri de Lima foi eleito pela primeira vez prefeito de Blumenau, nós fizemos campanha para ele, e na hora da apuração dos votos saímos festejando em carreata. Foi juntando carro e, atrás da caminhonete onde eu estava, chegou uma Kombi cheia de auto-falantes tocando músicas ditas cívicas, como o Hino Nacional. Em cima dessa caminhonete estava um amigo meu, o Ferretti, e éramos da mesma idade. Os outros que estavam ali eram mais jovens, e para eles toda aquela festa era normal. Conforme a carreata entrava pelo Garcia, este amigo e eu fomos dizendo “meu deus, nós vamos passar na frente do Batalhão! Nós vamos passar no Batalhão! E o que vai acontecer? Estão tocando o Hino Nacional em uma carreata!” Nós entramos em pânico. Passamos pelo Batalhão, criei-me lá perto, sei onde é a casa do comandante, ele estava no jardim assistindo a passagem da carreata, foto e nós passamos com aquela Kombi cheia de gente, tocando o Hino Nacional, e não aconteceu nada! Até hoje tem coisas que me causam medo. Botaram isso na gente! Fico pensando nessa coisa da gente ter medo do Batalhão. Tinha aqui em Blumenau um coronel que era tido como o bicho-papão de Blumenau. O nome dele era Coronel Brandão, já publiquei até em livro essa história. Nas sextas-feiras e nos sábados à noite ele pegava um grupo de soldados e saía pelas ruas de Blumenau. Se tu estavas em uma festa, na época tinha as boates familiares que eram mais frequentadas pelos jovens do Centro, ao saíres tinhas que retornar diretamente para casa. Se estavas em três, já podias ser acusado de estar formando o “grupo dos onze”. Então esse coronel saía pelas ruas e, quando encontrava um grupo com mais de três pessoas, levava todos presos, principalmente se estivessem conversando. Levava preso como subversivo ou como maconheiro, mesmo que a pessoa jamais tivesse consumido maconha. Ele mesmo levava para o Batalhão e ele mesmo se encarregava de torturá-los, enfiando a cabeça do preso no bacio do banheiro, por exemplo. Tenho uma amiga que passou por isso, e ela estava só dando uma voltinha depois da festa.


Ao lermos teus textos, principalmente tuas crônicas, percebemos que a tua mãe teve uma presença muito forte dentro de casa, exercendo quase que a função de uma matriarca. Como era a relação com a tua mãe? A impressão que se tem é que ela exercia certo domínio e até mesmo um aprisionamento. Como consegues te desvencilhar disso, inclusive saindo de casa bastante cedo?

Minha mãe era forte, tanto é que quando vem para Blumenau será discriminada principalmente por três coisas: ser brasileira, católica e não saber falar alemão. Já o meu pai era o cara “certo” no lugar “certo”: brasileiro também, mas dito alemão porque era da segunda geração dos nascidos no Brasil, luterano e sabia falar alemão. Então minha mãe era rejeitada pela família de meu pai e pela sociedade em geral, e acho que isso vai gerar nela essa coisa de ter que ser muito forte e fazer exigências. Ela era uma católica muito fervorosa, e só se casaria com meu pai se fosse na Igreja Católica e se os filhos fossem criados no catolicismo. Mas a minha saída de casa foi diferente do habitual. Não fui eu quem saí, mas meus pais. Eles foram morar na praia quando eu já estava na idade de ficar estudando aqui em Blumenau, e me deixaram aqui aos quatorze anos. Nessa altura eu tinha que ficar para estudar. Para mim foi uma maravilha! Como minha mãe era muito durona, eu teria levado mais uns três ou quatro anos para sair à noite, ir ao cinema, coisa e tal. Fiquei morando em um colégio de freiras muito legais. Desde que a gente fosse em duas ou três, ou com alguém de maior, elas nos autorizavam a sair. Então eu ia ao cinema duas ou três vezes por semana – ainda não tínhamos televisão –, a festinhas e a bailes.


E quando teu pai adoece, vais para Armação?

Não, nunca mais voltei para casa. Eu só voltava nas férias e nos finais de semana. Quando eu tinha 16 anos meu pai cai mesmo doente. Ele tinha tuberculose, o que na época era estigmatizante, e foi escondendo a doença até o dia em que, de tão fraco, desmaiou. Ficou quatorze meses internado em um sanatório muito rigoroso, o Santa Beatriz, lá em Itajaí, e acabei assumindo o lugar dele. Então acabaram meus finais de semana, meus bailes e cinema, porque eu saía correndo das aulas, aos sábados pela manhã, para pegar o ônibus na rodoviária. Sábados e domingos eram os dias de maior movimento no restaurante – ele tinha restaurante e sempre lidou com este ramo. Nas férias eu trabalhava no restaurante todos os dias, fazendo o que ele fazia: controle de estoque, atendimento ao cliente, caixa, providenciando tudo que se tem que providenciar em um restaurante. Minha mãe fazia a parte da cozinha, e durante a semana ela fazia as duas coisas. Eu tinha uma irmã pequena. Então lutei bastante desde muito cedo.


Depois que terminas os estudos, com o que vais trabalhar?

Minha primeira profissão, além do trabalho no restaurante, foi telefonista da Telesc. Blumenau era a única cidade de Santa Catarina que tinha DDD. Tem algumas coisas que acho que vale a pena registrar. Se você quisesse falar com Tubarão, por exemplo, era um inferno! Tinha uma linha para Tubarão via Florianópolis. Na década de 1970 nenhuma pessoa física tentaria ligar para Tubarão; pegaria um ônibus e iria até lá. Mas havia as firmas que precisavam falar com Tubarão, e para isso um funcionário tinha que chegar mais cedo pela manhã para pedir ligação para lá. Nós passávamos para Florianópolis, e lá levava seis horas para passar a ligação, e essas seis horas levavam 24, 48. Isso é só um exemplo. Poucas pessoas tinham telefone em casa, e quando nascia ou morria alguém, ou quando se tinha o namorado em outro estado e havia a necessidade de se telefonar, tinha-se que ir a um lugar chamado PS, um posto de serviço em que havia cabines onde eram feitas as ligações. Então nós, telefonistas, tínhamos condições de ouvir as conversas, embora a pessoa que estivesse na cabine não soubesse disso. Lembro-me de um caso, para ilustrar, de um casal. O moço era daqui e a moça lá de João Pessoa, na Paraíba. Eles tinham se casado, mas não havia dado certo e se separaram. Porém, amavam-se profundamente, e todas as manhãs de sábado ele ia para o posto, o mesmo fazia ela lá em João Pessoa, para conversar por telefone. E eram lindas conversas de amor! Todas as telefonistas entravam na linha deles para ficar escutando, e nós nos desdobrávamos para fazer a ligação deles.  Não podíamos pedir para Recife, Brasília ou outros lugares para fazer essa ponte com João Pessoa; tínhamos que pedir para São Paulo. Se não pedíssemos para São Paulo, podíamos receber uma punição, mas fazíamos todas as pontes possíveis e imagináveis para colocar os dois a falar. Eu gostaria de saber um dia o que aconteceu com eles. Depois trabalhei em um laboratório de bioquímica de um professor meu, o professor Lothar Krieck , que hoje é nome de escola. Depois andei fazendo um curso de informática, quando o computador ainda era à manivela, isso lá por 1971. Fiz o curso inteiro e não cheguei a ver um computador! Era um curso de programação. Foi quando percebi que estava enjoada de Blumenau. Eu queria ir embora! O mundo estava acontecendo, o movimento hippie estava acontecendo, tudo estava acontecendo e eu aqui nesta cidade tapada e colona que era – e ainda é, não mudou muito – Blumenau. Então tinha umas coisas acontecendo, acreditava-se no “milagre econômico”, e tinha a SUDENE, a SUDAM e outros órgãos do governo sobre os quais saíam revistas maravilhosas contando as coisas que eles estavam fazendo. Com esse diploma nas mãos, escrevi cartas para a SUDENE, SUDAM etc, à mão, pedindo emprego. Tenho as respostas guardadas até hoje. Depois pensei que poderia achar um emprego aqui em Santa Catarina. Peguei a lista telefônica do estado, fui olhando cidade por cidade e vendo quais as firmas que tinham nome em letras grandes. Eu não sabia que firmas eram essas, mas deviam ser firmas grandes, e mandava uma carta padrão. Comecei a receber respostas. Lembro que a primeira resposta que recebi foi da SUDENE. Eu desejava muito ir para o Nordeste, e aquilo foi uma coisa mágica! E de repente uma firma de Correia Pinto, que fica perto de Lages, chamou-me para fazer um teste. Fiz, passei e fui trabalhar lá. O interessante é que essa firma, que se chamava Papel e Celulose Catarinense, pertencia à família Klabin, e empregava uma barbaridade de gente. Só naquele local onde eu trabalhava havia mais de mil trabalhadores, fora os reflorestamentos, que naquela altura eu não tina consciência do mal que faziam para a nossa natureza. Tanto é que nós nos orgulhávamos muito: “os nossos reflorestamentos vão até a divisa com a Argentina!” Hoje tudo isso está nas mãos de uma multinacional, cuja maior fazenda ajudei o Movimento dos Sem Terra a ocupar. Então veja as voltas que a vida dá.


Considerando diversos textos teus, e assistindo ao filme “Por Causa do Papai Noel”, de Mara Salla, concluímos que começas a ler em função de um acidente de bicicleta que tiveste na infância, onde tiveste que ficar imobilizada por conta de um tornozelo quebrado.

Na verdade, esta imobilidade me deu mais tempo para ler, porque começo a ler muito desde o momento em que sou alfabetizada. Morávamos em Balneário Camboriu, e meu pai veio para Blumenau para que eu pudesse entrar na escola. Estava passando o período de eu entrar na escola, e lá em Balneário não tinha nada, só uma escolinha muito longe. Era uma escola reunida, e para chegar lá eu teria que caminhar pelo mato. Então eles acharam melhor voltar. Quando minha mãe foi à escola para me matricular, as matrículas já tinham passado e não havia mais vagas. A diretora disse a minha mãe: “a senhora a leva para casa, ensina um pouco, e ela entra junto com o primeiro ano de repetentes”. Então foi muito engraçado essa coisa de eu ser alfabetizada, porque minha mãe usou o método em que ela foi alfabetizada: b + a = ba, b + e = be, b + i = bi. Aprendi as sílabas, conheci-as todas, mas não juntava sílaba com sílaba. Houve um domingo de manhã, tínhamos chegado da missa, e minha mãe tirou um tempo antes do almoço para me fazer estudar mais um pouco. E eu lá: b + a = ba, t + a= a, t + a = ta. E ela: “o que é que dá?” E eu nada. Íamos de novo, e de novo, e de novo, e eu nunca que chegava na batata. De repente ela ficou furiosa, deu-me uma “porrada” na cabeça e eu disse “batata”. Daquele momento em diante eu estava alfabetizada. Começaram as aulas. Como era uma turma de repetentes, alguns daqueles alunos já tinham completado 14 anos e saíam para trabalhar nas fábricas, considerava-se que era gente já alfabetizada e por isso não tinha cartilha para aprender a ler e escrever. Porém havia o primeiro livro de leitura, e no primeiro dia em que o recebi – ele tinha as lições, com letras grandes, mas textos em letra pequena, como a apresentação –, levei para casa e li tudo no primeiro dia, e teve alunos na minha sala que nunca o leram até a metade. Depois comecei a ler compulsivamente. Tanto é que meu sonho de consumo de infância era fazer doze anos para poder ser sócia da Biblioteca Pública Municipal Doutor Fritz Müller. Até os doze anos eu havia lido tudo que tinha na minha casa, nos meus vizinhos e na minha escola. Isso engloba livro, revista, jornal e tudo o que estivesse ao meu alcance, inclusive as enciclopédias Barsa e Delta Larousse. E quebrar o tornozelo nessa altura foi uma coisa magnífica, porque nos primeiros meses eu ainda não era sócia da biblioteca, tinha apenas onze anos, mas depois sim. Eu não podia andar, meu pé perdia a firmeza, mas andar de bicicleta podia. Então ia de bicicleta à biblioteca, e não conseguia dormir enquanto não acabasse o livro. Eu fazia de conta que estava dormindo para minha mãe ir dormir, e quando estava tudo em silêncio, acendia a luz e acabava o livro.


Para os padrões brasileiros, começas a publicar tarde...

Eu tinha uns 26 anos. Eu não levava a sério! Escrevia direto, mas... Teve um período, quando eu tinha 13, 14 anos, em que persegui outras linguagens. Tentei pintar, tentei fazer histórias em quadrinhos, tentei fazer projetos de plantas baixas, mas aquilo não me preenchia. O meu negócio era mesmo escrever, mas ninguém escrevia! Escrever era uma anormalidade. Eu até tinha visto um escritor, uma vez. Era o professor José Ferreira da Silva. Certa vez, quando eu estava na biblioteca pegando um livro, alguém me disse: “aquele lá é um escritor”. Fiquei atrás da porta, olhando por uma fresta. Ele estava sentado do lado de fora, no jardim dos fundos da Fundação Cultural, em uma mesa e com uns papéis. Fiquei espiando: “aquilo era um escritor!” Porque eu achava que os escritores ou já tinham morrido, ou moravam em algum lugar distante, mas que não existiria um escritor aqui. Aos 14 anos, lá em Armação, vou conhecer um escritor de verdade, o Marcos Konder Reis, que foi meu amigo até a morte. Trocamos 35 anos de correspondência. As cartas que o Marcos me mandou, recentemente doei para o museu histórico de Itajaí, e muitas das que escrevi para ele tenho as cópias em carbono. Estas ainda não doei porque as quero reler. Uma parte da minha vida está ali. Bem, tinha um tema que me apaixonava mais, que era o tema da imigração e vou ler sobre todas as imigrações possíveis e imagináveis.


Alguma influência da tua avó, que era lituana?

Minha avó era imigrante, isso pode ter tido influência. Mas também o gosto pela história que desperta muito cedo em mim. Os meus livros preferidos eram os romances históricos. Alguns deles li várias vezes. Cito aqui “Os Frutos da Terra”, do Knut Hamsun, e “E o Vento Levou”, da Margaret Mitchell, entre outros. Então eu tinha aquela fascinação pelo romance histórico, mas não achava que o que fazia tinha alguma importância, algum valor, algum significado. Eu tinha vergonha, e escrevia escondida no mato, num bananal ou dentro de um grande galinheiro que havia lá em casa. Escrevia tudo em cadernos, e os guardava dentro do galinheiro, em um quartinho de guardar ração onde meus pais não iriam achar. Todo mundo nesse tempo escrevia cartas, porque não havia a facilidade do telefone e da internet, mas ninguém escrevia nada além de cartas. Sentia-me fazendo alguma coisa errada. E quando pensei em escrever uma coisa do início ao fim, perguntei-me do que gostava mais. Imigração. E a que eu mais entendo é daquela em que estou dentro, a imigração do Vale do Itajaí. Foi aí que escrevi o “Verde Vale”. A primeira pessoa para quem mostrei o texto foi o Marcos Konder Reis.


E o livro foi logo publicado?

Escrevi e datilografei em algumas vias. Mandei uma para o Marcos, outra para o "seu" José Gonçalves, aqui de Blumenau, e outra para o "seu" José Escalabrino Finardi , que escreveu a história de Ascurra. Todos os três se entusiasmaram e foram falar com seus editores, dizendo que tinha aparecido um livro que era diferente e era bom. Recebi então recados de duas editoras, a Lunardelli e outra de Porto Alegre. Quando me perguntam se é difícil publicar um livro, é difícil, todo mundo se queixa, mas para mim não foi difícil publicar. Fiz essa opção por Florianópolis porque ir a Porto Alegre era uma coisa muito distante, muito difícil. Acho que naquela altura eu não saberia ir a Porto Alegre resolver alguma coisa, enquanto Florianópolis era logo ali.

 

Qual foi a repercussão do “Verde Vale” no tempo do seu lançamento, e qual era a posição do Odilon Lunardelli a respeito desse livro?

O "seu" Odilon Lunardelli não leu o “Verde Vale”! Quem leu foi o Marcos Konder Reis e o "seu" José Gonçalves. Quem me levou lá foi o "seu" José Gonçalves, e pelo caminho, no carro, ele foi me explicando o que eu tinha que dizer e como negociar. Quando cheguei lá não aconteceu nada disso. O "seu" Odilon olhou para mim e perguntou: “essa é a Urda?” “É.” “Trouxeste o original do livro?” “Trouxe, está aqui.” Ele pegou, colocou na gaveta e disse: “sai lá pelo mês de junho.” Depois houve revisões, porque isso foi antes do tempo do computador e a edição empastelava. Essa era uma revisão que só o escritor podia fazer, porque só ele sentiria quando estivesse faltando uma linha, uma palavra ou até um capítulo. A revisão que hoje se faz é outra, e visa principalmente os erros de português. No “Verde Vale” faltou uma linha, e as primeiras nove edições saíram sem aquela linha. A cada nova edição eu dizia: “saiu de novo sem aquela linha.” E o "seu" Odilon: “mas por que não me avisaste que faltou uma linha?” Então a edição completa é a décima.


Teus romances, até o “Cruzeiros do Sul”, sempre foram identificados em relação à imigração germânica. Porém eles apresentam um diferencial em relação a obras anteriores de autores que trabalharam com a imigração, porque tu não trabalhas o germânico como algo puro, mas o germânico como aquele que comete a ousadia da miscigenação. É o descendente de alemães que se relaciona com o negro, com o índio, com o italiano ou com o brasileiro; um pouco da visão do Gilberto Freyre e sua “democracia racial”. Por que esta opção de trabalhar a temática germânica desta forma um pouco mais ousada, de uma germanidade miscigenada? Tiveste um contato anterior com a obra do Gilberto Freyre?

Tive contato com a obra do Gilberto Freyre depois que escrevi “Verde Vale” e “No Tempo das Tangerinas”. Parece que ganhei um rótulo: a escritora que escreve sobre Blumenau e sobre o alemão. As pessoas esquecem dos meus livros que são totalmente diferentes. Acho que o que pegou foi a miscigenação que havia dentro da minha casa. Nós éramos híbridos em tudo: culturalmente, etnicamente e religiosamente. E as rejeições que minha mãe sofreu refletiam muito na gente. Não era só ela que sofria, eu sofria também. Tenho lembrança de aniversários, casamentos, dessas festas que reúnem toda a família. Nós éramos três meninas muito bonitinhas, e pessoas da família me pegavam no colo e diziam: “estás vendo essa aqui, como é bonitinha? É do Rolando!” – que era meu pai. E aquilo tinha toda uma carga de preconceito. Ela era do Rolando, mas era também filha da brasileira. Isso reflete profundamente em mim, tanto é que nunca me senti alemã, mas sempre uma brasileira de muitas origens. E a partir de um certo momento, além de brasileira, passo a me sentir americana. Hoje, se me perguntarem, não diria cidadã do mundo, mas cidadã da América.


Costumo dizer que a tua obra é composta por duas fases. A primeira delas vai até o “Cruzeiros do Sul”, e neste livro, a partir da segunda parte, há uma ruptura. Porém mesmo na tua primeira fase há um livro, chamado “Te Levanta e Voa”, que vai abordar o movimento hippie. Como é que este movimento chega até ti? Houve uma Blumenau hippie?

Houve! Quando Blumenau fez 150 anos, foram gravados programas de 30 segundos com diversas pessoas que falavam sobre a Blumenau do passado. Cada qual escolhia sobre o que falar, e falar do “Opa” e da “Oma” era quase que unânime. Mas o que me marcou mesmo não foi a “Oma” e o “Opa”, mas o movimento hippie, e falei sobre o que tinha acontecido. Quando o movimento chega a Blumenau, os hippies vão se alojar num hotelzinho que tinha na rua Ângelo Dias. A partir de certo momento Blumenau entra nas rotas hippies. Nessa altura nós já estávamos totalmente fascinados pelos Beatles e por algumas coisas que estavam acontecendo no mundo, e quando os hippies começaram a chegar, para mim, aquilo foi o máximo! E eles passaram a ter um lugar de trabalho, que foi a escadaria da igreja matriz, hoje catedral. Eles passavam os dias, ali, fazendo sandálias e diversos artesanatos. O X-salada era uma coisa recente em Blumenau; acho que chegou junto com os hippies. Foi uma coisa tão incrível que nós só queríamos comer X-salada. E eles ficavam conversando sobre poesia, sobre filosofia, tocando música. Aquele espírito que vai nortear o modo de vida hippie de alguma forma estava ali junto, dentro da parte artística, porque muito do que se queria dizer era proibido. Se bem que este proibido tinha certo tamanho, porque nós podíamos, por exemplo, ir contra a guerra do Vietnã. Fizemos uma passeata contra a guerra do Vietnã no dia em que terminei o terceiro ano do científico. Então aquilo, para mim, era um fascínio! A todo momento eu estava enfiada lá no meio dos hippies. Meu pai não me deixaria ir embora com eles, mas meu sonho era ir embora com eles! Isso foi muito forte em minha vida, tanto é que não passou, ficaram as heranças daquela escadaria lá da igreja. E quando digo isso na televisão, nos 150 anos de Blumenau, várias pessoas me abordaram. Senhoras de blazer e salto alto me diziam: “você me fez viajar no tempo! Eu estava lá, fui junto com eles, andei descalça daqui até a Bahia, ou Bolívia, tocando flauta doce, e hoje não posso me referir a isso dentro da minha casa porque meus filhos e meus netos vão dizer que sou louca, que isso é uma vergonha, e você vai lá na televisão e fala!” Ou quem me dizia: “eu passava do outro lado da rua porque meu pai dizia ‘não chega perto, é tudo maconheiro, é perigoso’.”


Parece-me que “Cruzeiros do Sul” fechou um círculo na tua obra, e talvez seja o teu livro mais complexo e completo. Na sua estrutura, lembra um pouco “Cem Anos de Solidão”, do Gabriel García Márquez. O livro começa com uma estrutura muito parecida com a do “Verde Vale” e “No Tempo das Tangerinas”, depois vai tomando um fôlego maior, os personagens começam a se multiplicar e em um determinado momento a história, que começa lá na formação de Santa Catarina, chega ao tempo presente, na crise econômica do governo Sarney, crise que vivenciaste porque trabalhavas na Caixa Econômica Federal. Como nasceu o projeto do “Cruzeiros do Sul”? O que te motivou a escrever este livro? É aqui que começa a mudança do teu olhar, que até então dizias de direita? Porque neste livro a crítica social e a crítica à política econômica são muito fortes.

O “Cruzeiros do Sul” demorou quatro anos e meio para ser escrito, entre pesquisas, leituras e escritas. Fiz também algumas viagens durante esse tempo. Fui a Paris para ficar um mês, e lá fiquei muitas tardes, naquelas mesinhas na rua, tomando um cuba-libre e imaginando como iria continuar o “Cruzeiros do Sul”. Ele andou comigo por quatro anos e meio! Surgiu do Plano Cruzado, onde o povo tomou a frente fechando os supermercados e onde houve o congelamento dos preços. O lema era: “Tem que dar certo!” Como muita gente, num primeiro momento também acreditei piamente. Naquela semana em que o plano entrou em vigor, onde a moeda perdeu três zeros, o Brizola apareceu na televisão durante o horário político do PDT. Como produto da direita, eu tinha uma certa bronca do Brizola, e fiquei escutando para criticar. E o Brizola criticou o Plano Cruzado dizendo que inflação não se tira por decreto, entre outras coisas. Seis meses depois, quando o plano veio por água abaixo, eu disse: “esse cara realmente tinha razão!” Esses quatro anos e meio em que estou escrevendo o livro também vão coincidir com minha vivência sindical. Era bancária e vou me aproximando cada vez mais do sindicato dos bancários, principalmente a partir de 1985, quando houve uma grande greve da categoria em Blumenau. Foi uma sequência de greves. Nós íamos para as assembleias, e quando aparecia o fotógrafo do Jornal de Santa Catarina, escondíamos a cara para não aparecermos na foto. Tínhamos medo do Serviço Nacional de Informação. Então vai se dando uma nova visão de mundo, para mim, dentro dessa minha vivência sindical e de luta por conquistas, e aí acontece o Plano Cruzado e o pronunciamento do Brizola logo no começo foi uma coisa muito forte, porque vi que ele estava certo. E o Plano Cruzado aconteceu dentro de onde eu trabalhava, no banco, onde vou atender as pessoas que ficaram na miséria por causa dele, as pessoas que venderam suas terras e colocaram o dinheiro na poupança para viver de juros. Então pensei: “tenho que escrever sobre essas pessoas”. Essa foi a idéia original. E quem vai ser meu herói? Teria que ter um personagem principal, e quem vai ser? Um descendente de alemão? De italiano? Um luso? Teria que ser alguém que representasse todo mundo. Vou ler sobre a história do estado e retroagir a 1650, e começar a história com o índio. Para isso as pesquisas de Sálvio Alexandre Müller e de Sílvio Coelho dos Santos me ajudaram bastante.


Urda, já citaste nessa entrevista a influência que recebeste do livro “Os Frutos da Terra”, do Knut Hamsun. Neste livro ele trabalha na perspectiva da construção da civilização, do homem que doma a natureza, e se olharmos para alguns dos teus livros, isto está lá também. No “Cruzeiros do Sul” temos a formação do território, do povo catarinense, a ação do ser humano sobre o meio físico. O mesmo pode ser observado em “As Brumas Dançam Sobre o Espelho do Rio”, no “Verde Vale” e também neste teu último romance, o “Sambaqui”, que trabalha o processo civilizatório do povo sambaquiano, porque este também ocupa um espaço, constrói uma cultura. Neste aspecto, há aqui uma influência do Knut Hamsun?

No começo certamente sim, e talvez até hoje. Li esse livro, pela primeira vez, por volta dos quinze anos, e nos dez anos seguintes devo tê-lo lido umas vintes vezes. Depois passei um longo tempo sem o ler, e há uns quatro anos eu o reli e saquei de onde veio a minha influência maior. Acho que teve um monte de gente que me influenciou, como Érico Veríssimo, Jorge Amado, José Mauro de Vasconcelos, isto para citar os brasileiros. Adoraria saber escrever como Machado de Assis, mas acho que não tenho competência para tanto. Muitos estrangeiros, li os clássicos, tanta coisa, mas o X da questão está lá no Knut Hamsun. Há também um outro escritor que me marcará e estabelecerá um “antes” e um “depois” na minha vida, que é o Franz Kafka. Li “O Castelo” e “O Processo” e não estava preparada para aquela porrada. Até hoje não sei definir como mexeu, o que mudou, o que aconteceu, mas sei que eu era uma pessoa antes e me tornei outra depois.


Começas escrevendo romances, e depois começas a te exercitar em outros gêneros, como a crônica, o ensaio, os relatos de viagens. Como surge a crônica na tua carreira?

Se alguém me dissesse que eu iria escrever crônica, eu diria que não, que sou uma romancista histórica. Porém um dia o jornal A Notícia me ligou dizendo que eles estavam montando um caderno cultural e queriam que eu escrevesse as crônicas. Eu disse: “mas eu não sei escrever crônicas!” “Tenta para a gente ver. Faz umas três crônicas e manda para a gente dar uma olhada.” Fui para casa pensando nos assuntos para escrever três crônicas. Datilografei, coloquei no malote e fiquei esperando que me telefonassem. De repente um amigo meu chega dizendo “Urda, que coisas legais andas escrevendo no A Notícia!” Liguei para eles perguntando se estavam me publicando. “Sim, já publicamos três e precisamos de material para esta semana.” Fiquei uns três anos publicando no A Notícia. Ter uma coluna fixa em jornal é uma coisa muito estressante porque a gente fica pensando no que vai escrever, já que no dia marcado o texto tem que estar lá. Hoje escrevo para diversos jornais, mas com compromisso sério foi o A Notícia e o Diário Catarinense, e neste último fiquei bem menos tempo.


O que houve no Diário Catarinense?

Pertenço a um comitê pró Palestina em Blumenau. Acho que está acontecendo um genocídio lá na Palestina, uma coisa tão horrorosa quanto a que fizeram com o povo judeu na 2ª Guerra Mundial. E assim como falo do judeu que foi injustiçado na 2ª Guerra Mundial, tenho que falar do palestino injustiçado pelo judeu. Quando o redator chefe do jornal me contratou, falei que não ia dar certo: “as minhas ideias e as de vocês não fecham”. “Mas nós vamos respeitar as suas ideias”, disseram-me. No período que estive lá, escrevi um total de quatro crônicas sobre a Palestina, três passaram, e a quarta virou um samba de crioulo doido. Fui demitida em altos brados. Os Sirotsky mesmo não me disseram “tu não podes escrever sobre a Palestina”, mas botaram lá uma professora da UFSC, partidária de Ariel Sharon, para brigar comigo no jornal e levantar essa questão de que eu estava errada. Tu sabes que a gente sempre acaba tendo uns leitores mais fiéis. Alguns destes não queriam que eu fosse demitida, e ficaram mandando e-mails para o jornal, eles responderam, eram mensagens escritas pelos Sirotsky, e os leitores me passaram estes e-mails. Para a minha carreira, isso foi ótimo! Essa briga acabou envolvendo pessoas, leitores, simpatizantes e antagônicos de doze países. Já há trabalhos acadêmicos feitos sobre esse material que recebi. Isso me deu também uma visibilidade que eu não tinha, o que faz com que hoje eu publique em três continentes e em muitos órgãos de imprensa. Com aquele exercício de escrever toda semana para o A Notícia, acabei criando o hábito de toda semana produzir uma crônica. E se tenho um tempo a mais, se vou acampar, escrevo duas ou três.


Como é o teu processo criativo? De onde vêm os temas?

Vêm daquilo que está acontecendo. Por exemplo, agora o Obama foi eleito e todo escritor do mundo falou sobre ele. Não sobrou texto para mim, então nem me meti a falar do Obama. Estou como expectadora do que vai acontecer e esperando que mude para melhor, se bem que sabemos que trocar republicanos e democratas nos Estados Unidos é quase trocar seis por meia-dúzia. Uns são mais agressivos, outros menos, mas ambos são capitalistas. Porém tenho fé que alguma coisa aconteça. Ontem Obama disse que vai fechar Guantánamo, o que já é um bom começo. Mas quando acontece algo que mexe intimamente comigo, então escrevo sobre aquilo. Por exemplo, outro dia morreu, nas montanhas da Colômbia, Manuel Marulanda Vélez, e todo mundo falou sobre ele. Porém houve um viés sobre o qual não vi ninguém falar: o ser humano Manuel Marulanda. Todos falaram do aspecto político, mas fui pesquisar como ele andava solitariamente pelas montanhas com seu cachorro e sua arma, andando por cada rincão da Colômbia sem nunca ter ido até a capital. Então fiz um texto sobre o ser humano. E quando não há um fato que mexa comigo, escrevo textos sobre o amor, a natureza, a pré-história, o meu cachorrinho – tenho uma série agora chamada “Meu cachorro Atahualpa”, que está sendo publicada em diversos lugares.


Do “Cruzeiros do Sul” ao “Sambaqui”, teu último romance, nós temos um intervalo de quase duas décadas onde publicaste livros de crônicas, relatos de viagens e artigos de história. Por que este período tão grande sem publicar um novo romance? E por que a pré-história?

O fato de estar escrevendo crônicas para o A Notícia me tirou o tempo para escrever romances. E apareceu um monstro assustador na minha frente chamado aposentadoria. O que vou fazer na aposentadoria? Depois de um primeiro momento de susto, pensei: “vou ser feliz”. E ser feliz, para mim, era cursar História, curso que sempre sonhei fazer. Nesse período em que me envolvi com o curso de História, escrevi quase nada. Logo no primeiro semestre de História entrou na sala de aula uma professora de arqueologia. Eu andava muito pelo mundo, via muita arqueologia, e pensava: “por que é que no Brasil não tem nada?” E ela vai falar justamente da arqueologia de Santa Catarina, do nosso litoral, de um período de 6 mil anos, de coisas que conheci e não sabia o que eram. E a arqueologia era uma coisa que estava dentro de mim há muito tempo! Desde os tempos de ginásio! Lembro de, aos 15 anos, o Padre Sílvio Tron, nosso vigário, me chamar na casa paroquial e dizer: “senta aqui minha filha; o que tu queres ser quando cresceres?” – porque todas as meninas que estavam estudando iam fazer o curso de Normal para serem professoras, e eu queria fazer o Científico porque não queria ser professora. Então respondi que queria ser arqueóloga. “Tu sabes que no Brasil não é possível ser arqueólogo? Porque pra fazer arqueologia tem que ir pro Egito ou Pompéia”. Isso era uma coisa inadmissível de se pensar naquela altura, que um colono blumenauense e pobre, como eu era, poderia um dia ir para o Egito, quanto mais estudar arqueologia! Então naquela oportunidade o Padre Sílvio tirou isso da minha cabeça, mas tenho lembrança daquele momento como uma coisa que era muito forte até ali. Então era uma ideia antiga. Quando, de repente, surge a professora Elisabete Tamanini com a arqueologia de Santa Catarina. Lembro que fiquei olhando os slides que ela mostrava nas aulas e vi uma baleia de pedra que deve ter uns 5 mil anos, que está lá no Museu do Sambaqui de Joinville, e pensei: “meu Deus, preciso ir mais fundo nisso, escrever a respeito!” Entre o começo da pesquisa e o romance ir para a gráfica, passaram-se de dez anos e dez meses.


Muitos autores utilizam o termo romance histórico, outros o rejeitam, como é o caso do Salim Miguel, um dos nossos últimos entrevistados aqui no Sarau Eletrônico. Apesar de ele fazer ficção estruturada sobre a história, faz questão de dizer que não faz romance histórico. Tu já fazes questão de dizer o contrário. Além de escritora, tu és historiadora, graduada e pós-graduada em História. Como tu entendes o romance histórico? Onde termina o romance e começa a história? Nos teus romances, o que é ficção e o que é história?

Nos meus isso é muito fácil de definir, porque a ficção são os meus personagens e os fatos são os fatos históricos, e às vezes misturo personagens da história com meus personagens imaginários. Hoje, porém, tenho uma visão um pouco mais refinada sobre o termo romance histórico, mas continuo me chamando de romancista histórica. Acho que o romance, que a literatura em geral, de alguma forma acaba refletindo o pensamento daquele escritor, que é um testemunho do seu momento na história. Dificilmente um romance não vai trazer a história. Neste momento estou lendo um romance histórico do Salim Miguel chamado “Nur na Escuridão”, e é só começar a ler para ver que é um romance histórico, apesar de ele dizer que não. Vejo na contracapa desse livro a primeira observação, feita pelo Sílvio Coelho dos Santos, dizendo: “Salim Miguel, neste romance, teve o poder de nos trazer toda a história de um tempo, etc.” E é! Acho que é muito difícil separar o romance da História. Pode-se separar a História do romance, agora o romance da História é difícil.


Além de escritora, és também proprietária e fundadora da Editora Hemisfério Sul. Como está sendo essa experiência de editora? Quais as dificuldades e a política editorial da Hemisfério Sul?

A Hemisfério Sul trabalha com literatura: romance, conto, crônica e alguma coisa de literatura infantil em prosa. Sempre visamos a excelência do texto. E é muito gratificante!


Mas qual é a realidade de uma editora em um município marginal, como é o caso de Blumenau?

Mas ela não se restringe a Blumenau. Ela está em praticamente todo o estado de Santa Catarina, e tem alguns pontos de venda fora do estado. A distribuição do livro é uma coisa complexa, mas a gente sempre vai lutando com muita dificuldade financeira e estamos há onze anos no mercado. Posso te dizer que há uma grande dificuldade em se conseguir bons textos. Textos ruins aparecem em grande quantidade, e se alguém que deseja ser escritor vier a ler esta entrevista, digo que o que faz com que um texto seja bom ou ruim é a quantidade de leitura que um escritor tem. Há escritores que não leem e não querem ler, escrevem qualquer coisa e acham que está bom, e não é assim. E não são doze livros, como às vezes escuto alguns escritores dizer que leram, mas dois mil pelo menos! Sempre dou esse conselho. Outro dia tive o prazer de encontrar um rapaz a quem dei este conselho, e agora vejo que ele anda escrevendo bem melhor. Ninguém está condenado a não escrever bem, mas precisa se preparar.


Sempre perguntamos, para quem é da região, a respeito da vida intelectual de Blumenau. És uma pessoa com uma longa história de vida e começas a carreira literária lá na década de 1970. No momento em que começas a publicar, estabelecias contatos com círculos de intelectuais de Blumenau? Havia a troca de ideias e uma formação intelectual? E hoje, como está isso?

Lá no começo eu tinha o Marcos Konder Reis, que foi meu interlocutor. Lembro que em algum momento o Lindolf Bell entrou na minha vida, mas de uma forma esparsa. Não chegamos a ser grandes amigos, mas houve momentos que me marcaram. Houve, por exemplo, um dia em que estive na Galeria Açu-Açu, no tempo em que ela ficava na Rua Namy Deeke, e ele me chamou para olhar por uma janela que ele tinha feito, e que era muito bonita, e me disse que quando sonhávamos ou desejávamos alguma coisa na vida, tínhamos que seguir. E quando vivíamos numa cidade pequena como a nossa, e seguíamos o próprio sonho, no primeiro momento seríamos condenados, mas se persistirmos no sonho, adquirimos o respeito da comunidade. E é bem isso! As pessoas passam a te respeitar, se bem que sempre tem aquelas pessoas que dizem te admirar e ver todos os quadros que tu pintas, quando não sou pintora. Mesmo tendo visto todos os quadros que não pintei, a pessoa cria um respeito. Naquele tempo, na escola, não se imaginava que um aluno pudesse vir a ser escritor, diferentemente de hoje, em que a escola estimula. E quando apareço com o “Verde Vale”, o livro fazendo sucesso e agradando, um grupo de escritores que periodicamente se reunia em almoços no antigo restaurante Moinho do Vale passou a me convidar para estar junto com eles. Neste momento também estava surgindo um movimento cultural em Blumenau, o primeiro que vejo surgir, que vai ser o dos Poetas Independentes. Esse pessoal ainda está vivo. Alguns sumiram e outros continuam em sua senda de arte. E havia uma crítica muito grande dos velhos sobre os novos, uma ciumeira até: “os caras vieram aqui para estragar a imagem da nossa cidade. Nós somos os intelectuais da cidade!” Passei a conviver também com os novos e cheguei a um acordo comigo mesma, porque não queria ser como aqueles velhos, queria estar sempre aberta ao que fosse novo. Às vezes você escorrega e faz alguma coisa em desacordo com esta premissa, mas tenho procurado prestar atenção ao que é novo. E o que acontece hoje em Blumenau é o que acontece em qualquer lugar do mundo, hoje e em qualquer tempo. Temos alguns bons escritores, mais alguns médios e uma quantidade incrível de péssimos escritores. Isso não é próprio de Blumenau, não é uma crítica que estou fazendo a esta cidade, e deixo uma pergunta: quando Shakespeare era vivo e escrevia, será que era só ele que escrevia? Não, ele era o melhor de todos; tanto é que tantos séculos depois nós ainda o estamos lendo. E isto é de âmbito geral e irrestrito, e Blumenau não foge à regra.


Na literatura, quais são teus projetos atuais?

Estou perseguindo um passando ainda mais antigo. Trabalhei com um período de mais de 6 mil anos, no caso dos sambaquis. Agora comecei a pesquisar aquelas pessoas que viveram entre 8 e 10 mil anos antes do presente no planalto de Santa Catarina. Isso está me levando a uma voragem do tempo e já estou há 650 milhões de anos antes do presente. Estou sonhando que vou escrever um romance que vai começar como um romance geológico para, muitos milhões de anos depois, chegar ao ser humano.

 

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CASA DA LITERATURA CATARINENSE

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