Urda Alice Klueger
nasceu em Blumenau, cidade onde construiu sua carreira literária. Historiadora
fotograduada e pós-graduada na Universidade Regional de Blumenau, é autora de
quase vinte livros entre romances, crônicas, relatos de viagens e literatura
infanto-juvenil, dos quais se destacam: “Verde Vale” (1979), “No Tempo das
Tangerinas” (1983), “Cruzeiros do Sul” (1992), “Entre Condores e Lhamas”
(1999), “No Tempo da Bolacha Maria” (2002) e “Sambaqui” (2008). Militante dos
movimentos sociais, Urda atua também como editora e pesquisa a arqueologia do
litoral de Santa Catarina. Nesta entrevista, concedida ao Sarau Eletrônico em
novembro de 2008, a escritora fala, entre outros assuntos, sobre sua infância,
sua obra, sua história de vida e sobre sua passagem por grandes veículos da imprensa
escrita catarinense.
“Meu sonho de consumo
era ser sócia da Biblioteca”
(Entrevista: Viegas
Fernandes da Costa / Fotos: Gabriel Severo Venco Teixeira da Cunha)
Gostamos de começar nossas entrevistas perguntando a
respeito da história de vida dos nossos entrevistados. Onde a Urda nasceu e se
criou?
Sou blumenauense.
Nasci na Rua XV, no tempo em que meus pais moravam lá. Eles eram muito de se
mudar, ir para a praia, voltar da praia, então morei muito cá e lá. Mas toda a
minha base é de Blumenau. Tanto meu pai quanto minha mãe eram egressos da
agricultura. Ambos saíram da agricultura por causa da 2ª Guerra Mundial: meu
pai, blumenauense, porque foi ser soldado, e minha mãe porque veio de Tijucas
ocupar o espaço que a guerra abriu nas fábricas porque os rapazes foram para o
exército. Aquele tempo era o tempo em que as mulheres obedeciam aos homens, e
meu pai se criou e trouxe para nós todo um pensamento de direita, vamos dizer
assim. Nesses cinco anos em que ficou no exército por conta da guerra – ele deu
baixa quando começa a guerra e é chamado de volta quando o Brasil entra na
guerra – , passou a admirar profundamente o exército. Em 1964 ele apóia o golpe
militar, e não só ele, mas meus vizinhos, os parentes e todo mundo. Então sou
criada dentro da direita, e só bem mais tarde vou fazer a caminhada para o
outro lado. Sou da geração do medo, porque as pessoas sumiam, os nossos
professores e amigos sumiam. Alguns voltavam, alguns não voltavam. Tive um
professor muito querido, o Ewaldo Trierweiler, que foi levado pela ditadura,
preso e torturado no porão de um navio em Itajaí. Então a gente tinha muito
medo de falar as coisas. A partir dos 16 ou 17 anos morei na casa de uma prima,
que era um pouco mais nova do que eu, e nós íamos juntas para a escola, ficávamos
juntas durante o recreio, voltávamos no mesmo ônibus, com a mesma turma,
fazíamos os deveres juntas, fazíamos as tarefas domésticas, íamos fumar um
cigarrinho escondidas, e tudo isso fazíamos juntas e com medo. Desde a hora em
que acordávamos, até a hora em que íamos dormir, não tínhamos coragem de falar
sobre nossos pensamentos políticos. Em 1964, quando se dá o golpe, eu tinha 12
anos e era muito criança. Mas a gente foi crescendo e, a partir de certo
momento, começamos a sentir o peso da pressão do medo. As novidades políticas,
as mudanças de pensamento, o que estava acontecendo lá fora, não chegavam
através dos jornais, das rádios ou das revistas, mas através da música: Chico
Buarque, Caetano Veloso e outros. Mas era uma resistência muito difícil. O disco
saía e logo era apreendido, porém todo mundo já o tinha decorado ou comprado.
As músicas eram de uma crítica muito velada, mas para nós elas diziam tudo.
Hoje algumas dessas músicas são tidas como músicas de amor. Tem uma música do
Chico Buarque que diz “Hoje você é quem manda/ Falou ta falado/ Não tem
discussão/ Não” e que as novas gerações pensam que é uma música de amor, de
namorados brigando, mas é o Chico falando com o Presidente da República. A
gente tinha essa consciência.
Em várias entrevistas que concedeste, falas dessa geração
do medo, de como subias os morros...
Era um poço! Na casa da minha prima tinha um gramado onde
tínhamos visão para todos os lados, e no meio desse gramado tinha um poço
desativado. Sentávamos sobre este poço para conversarmos sobre nossas idéias
políticas. Porque ali podíamos observar em todas as direções e não havia
ninguém que nos pudesse ouvir. Quando os pais da minha prima nos ouviam
conversando, enquanto lavávamos a louça ou alguma coisa assim, vinham-nos dizer
“fiquem quietas! Pode ter alguém do lado de fora escutando”. A Marlene de
Fáveri fez um levantamento sobre o medo na 2ª Guerra Mundial e conta muitos
exemplos destes. Era um outro tempo, outro momento, mas equivalente. Tinha
coisas que a gente jamais diria em um ponto de ônibus, por exemplo, porque
havia gente escutando e que poderia nos denunciar, e assim como tinha gente
sumindo, nós também poderíamos sumir.
Quando conversamos com as pessoas sobre este período em
Blumenau, o que muitas vezes ouvimos é que a ditadura não teria chegado aqui.
Ao te ouvir falar, tenho a impressão que este medo veio principalmente pela
fala dos teus pais e também pela música. Mas para teres consciência daquilo que
a música dizia, tu já tinhas consciência de que alguma coisa estava instalada.
Como surge esta consciência?
É aos poucos. O
general mandava e a gente obedecia. Meu pai tinha aquela concepção de soldado:
obedece e pronto! Mas nesse período vivi muito tempo fora de casa, então acho
que a influência veio da escola, da concepção dos nossos professores. Hoje sei
que determinados soldados que andaram se matriculando no ginásio, no
científico, do Colégio Pedro II, onde eu estudava, estavam lá não como alunos
regulares, mas como espiões. Então os professores calavam a boca, e aqueles que
não a calavam e diziam o que pensavam... Como foi o caso do professor Ewaldo
Trierweiler, que clamava por justiça social – ele era muito religioso,
católico, e clamava por uma justiça social quase que bíblica – , o que o levou
para a prisão. Então esse medo vai se criando conforme a gente vai crescendo e
aprendendo que não podemos falar. E até hoje acho que não superei este medo.
Quando o Décio Neri de Lima foi eleito pela primeira vez prefeito de Blumenau,
nós fizemos campanha para ele, e na hora da apuração dos votos saímos
festejando em carreata. Foi juntando carro e, atrás da caminhonete onde eu
estava, chegou uma Kombi cheia de auto-falantes tocando músicas ditas cívicas,
como o Hino Nacional. Em cima dessa caminhonete estava um amigo meu, o
Ferretti, e éramos da mesma idade. Os outros que estavam ali eram mais jovens,
e para eles toda aquela festa era normal. Conforme a carreata entrava pelo
Garcia, este amigo e eu fomos dizendo “meu deus, nós vamos passar na frente do
Batalhão! Nós vamos passar no Batalhão! E o que vai acontecer? Estão tocando o
Hino Nacional em uma carreata!” Nós entramos em pânico. Passamos pelo Batalhão,
criei-me lá perto, sei onde é a casa do comandante, ele estava no jardim
assistindo a passagem da carreata, foto e nós passamos com aquela Kombi cheia de
gente, tocando o Hino Nacional, e não aconteceu nada! Até hoje tem coisas que
me causam medo. Botaram isso na gente! Fico pensando nessa coisa da gente ter
medo do Batalhão. Tinha aqui em Blumenau um coronel que era tido como o
bicho-papão de Blumenau. O nome dele era Coronel Brandão, já publiquei até em
livro essa história. Nas sextas-feiras e nos sábados à noite ele pegava um
grupo de soldados e saía pelas ruas de Blumenau. Se tu estavas em uma festa, na
época tinha as boates familiares que eram mais frequentadas pelos jovens do
Centro, ao saíres tinhas que retornar diretamente para casa. Se estavas em
três, já podias ser acusado de estar formando o “grupo dos onze”. Então esse
coronel saía pelas ruas e, quando encontrava um grupo com mais de três pessoas,
levava todos presos, principalmente se estivessem conversando. Levava preso
como subversivo ou como maconheiro, mesmo que a pessoa jamais tivesse consumido
maconha. Ele mesmo levava para o Batalhão e ele mesmo se encarregava de
torturá-los, enfiando a cabeça do preso no bacio do banheiro, por exemplo.
Tenho uma amiga que passou por isso, e ela estava só dando uma voltinha depois
da festa.
Ao lermos teus textos, principalmente tuas crônicas,
percebemos que a tua mãe teve uma presença muito forte dentro de casa,
exercendo quase que a função de uma matriarca. Como era a relação com a tua
mãe? A impressão que se tem é que ela exercia certo domínio e até mesmo um
aprisionamento. Como consegues te desvencilhar disso, inclusive saindo de casa
bastante cedo?
Minha mãe era forte,
tanto é que quando vem para Blumenau será discriminada principalmente por três
coisas: ser brasileira, católica e não saber falar alemão. Já o meu pai era o
cara “certo” no lugar “certo”: brasileiro também, mas dito alemão porque era da
segunda geração dos nascidos no Brasil, luterano e sabia falar alemão. Então
minha mãe era rejeitada pela família de meu pai e pela sociedade em geral, e
acho que isso vai gerar nela essa coisa de ter que ser muito forte e fazer
exigências. Ela era uma católica muito fervorosa, e só se casaria com meu pai
se fosse na Igreja Católica e se os filhos fossem criados no catolicismo. Mas a
minha saída de casa foi diferente do habitual. Não fui eu quem saí, mas meus
pais. Eles foram morar na praia quando eu já estava na idade de ficar estudando
aqui em Blumenau, e me deixaram aqui aos quatorze anos. Nessa altura eu tinha
que ficar para estudar. Para mim foi uma maravilha! Como minha mãe era muito
durona, eu teria levado mais uns três ou quatro anos para sair à noite, ir ao
cinema, coisa e tal. Fiquei morando em um colégio de freiras muito legais.
Desde que a gente fosse em duas ou três, ou com alguém de maior, elas nos
autorizavam a sair. Então eu ia ao cinema duas ou três vezes por semana – ainda
não tínhamos televisão –, a festinhas e a bailes.
E quando teu pai adoece, vais para Armação?
Não, nunca mais
voltei para casa. Eu só voltava nas férias e nos finais de semana. Quando eu
tinha 16 anos meu pai cai mesmo doente. Ele tinha tuberculose, o que na época
era estigmatizante, e foi escondendo a doença até o dia em que, de tão fraco,
desmaiou. Ficou quatorze meses internado em um sanatório muito rigoroso, o
Santa Beatriz, lá em Itajaí, e acabei assumindo o lugar dele. Então acabaram
meus finais de semana, meus bailes e cinema, porque eu saía correndo das aulas,
aos sábados pela manhã, para pegar o ônibus na rodoviária. Sábados e domingos
eram os dias de maior movimento no restaurante – ele tinha restaurante e sempre
lidou com este ramo. Nas férias eu trabalhava no restaurante todos os dias,
fazendo o que ele fazia: controle de estoque, atendimento ao cliente, caixa,
providenciando tudo que se tem que providenciar em um restaurante. Minha mãe
fazia a parte da cozinha, e durante a semana ela fazia as duas coisas. Eu tinha
uma irmã pequena. Então lutei bastante desde muito cedo.
Depois que terminas os estudos, com o que vais trabalhar?
Minha primeira
profissão, além do trabalho no restaurante, foi telefonista da Telesc. Blumenau
era a única cidade de Santa Catarina que tinha DDD. Tem algumas coisas que acho
que vale a pena registrar. Se você quisesse falar com Tubarão, por exemplo, era
um inferno! Tinha uma linha para Tubarão via Florianópolis. Na década de 1970
nenhuma pessoa física tentaria ligar para Tubarão; pegaria um ônibus e iria até
lá. Mas havia as firmas que precisavam falar com Tubarão, e para isso um
funcionário tinha que chegar mais cedo pela manhã para pedir ligação para lá.
Nós passávamos para Florianópolis, e lá levava seis horas para passar a
ligação, e essas seis horas levavam 24, 48. Isso é só um exemplo. Poucas
pessoas tinham telefone em casa, e quando nascia ou morria alguém, ou quando se
tinha o namorado em outro estado e havia a necessidade de se telefonar,
tinha-se que ir a um lugar chamado PS, um posto de serviço em que havia cabines
onde eram feitas as ligações. Então nós, telefonistas, tínhamos condições de
ouvir as conversas, embora a pessoa que estivesse na cabine não soubesse disso.
Lembro-me de um caso, para ilustrar, de um casal. O moço era daqui e a moça lá
de João Pessoa, na Paraíba. Eles tinham se casado, mas não havia dado certo e
se separaram. Porém, amavam-se profundamente, e todas as manhãs de sábado ele
ia para o posto, o mesmo fazia ela lá em João Pessoa, para conversar por
telefone. E eram lindas conversas de amor! Todas as telefonistas entravam na
linha deles para ficar escutando, e nós nos desdobrávamos para fazer a ligação
deles. Não podíamos pedir para Recife,
Brasília ou outros lugares para fazer essa ponte com João Pessoa; tínhamos que
pedir para São Paulo. Se não pedíssemos para São Paulo, podíamos receber uma
punição, mas fazíamos todas as pontes possíveis e imagináveis para colocar os
dois a falar. Eu gostaria de saber um dia o que aconteceu com eles. Depois
trabalhei em um laboratório de bioquímica de um professor meu, o professor
Lothar Krieck , que hoje é nome de escola. Depois andei fazendo um curso de
informática, quando o computador ainda era à manivela, isso lá por 1971. Fiz o
curso inteiro e não cheguei a ver um computador! Era um curso de programação.
Foi quando percebi que estava enjoada de Blumenau. Eu queria ir embora! O mundo
estava acontecendo, o movimento hippie estava acontecendo, tudo estava
acontecendo e eu aqui nesta cidade tapada e colona que era – e ainda é, não
mudou muito – Blumenau. Então tinha umas coisas acontecendo, acreditava-se no
“milagre econômico”, e tinha a SUDENE, a SUDAM e outros órgãos do governo sobre
os quais saíam revistas maravilhosas contando as coisas que eles estavam
fazendo. Com esse diploma nas mãos, escrevi cartas para a SUDENE, SUDAM etc, à
mão, pedindo emprego. Tenho as respostas guardadas até hoje. Depois pensei que
poderia achar um emprego aqui em Santa Catarina. Peguei a lista telefônica do
estado, fui olhando cidade por cidade e vendo quais as firmas que tinham nome
em letras grandes. Eu não sabia que firmas eram essas, mas deviam ser firmas
grandes, e mandava uma carta padrão. Comecei a receber respostas. Lembro que a
primeira resposta que recebi foi da SUDENE. Eu desejava muito ir para o
Nordeste, e aquilo foi uma coisa mágica! E de repente uma firma de Correia
Pinto, que fica perto de Lages, chamou-me para fazer um teste. Fiz, passei e
fui trabalhar lá. O interessante é que essa firma, que se chamava Papel e
Celulose Catarinense, pertencia à família Klabin, e empregava uma barbaridade
de gente. Só naquele local onde eu trabalhava havia mais de mil trabalhadores,
fora os reflorestamentos, que naquela altura eu não tina consciência do mal que
faziam para a nossa natureza. Tanto é que nós nos orgulhávamos muito: “os
nossos reflorestamentos vão até a divisa com a Argentina!” Hoje tudo isso está
nas mãos de uma multinacional, cuja maior fazenda ajudei o Movimento dos Sem
Terra a ocupar. Então veja as voltas que a vida dá.
Considerando diversos textos teus, e assistindo ao filme
“Por Causa do Papai Noel”, de Mara Salla, concluímos que começas a ler em
função de um acidente de bicicleta que tiveste na infância, onde tiveste que
ficar imobilizada por conta de um tornozelo quebrado.
Na verdade, esta
imobilidade me deu mais tempo para ler, porque começo a ler muito desde o
momento em que sou alfabetizada. Morávamos em Balneário Camboriu, e meu pai
veio para Blumenau para que eu pudesse entrar na escola. Estava passando o
período de eu entrar na escola, e lá em Balneário não tinha nada, só uma
escolinha muito longe. Era uma escola reunida, e para chegar lá eu teria que
caminhar pelo mato. Então eles acharam melhor voltar. Quando minha mãe foi à
escola para me matricular, as matrículas já tinham passado e não havia mais
vagas. A diretora disse a minha mãe: “a senhora a leva para casa, ensina um
pouco, e ela entra junto com o primeiro ano de repetentes”. Então foi muito
engraçado essa coisa de eu ser alfabetizada, porque minha mãe usou o método em
que ela foi alfabetizada: b + a = ba, b + e = be, b + i = bi. Aprendi as
sílabas, conheci-as todas, mas não juntava sílaba com sílaba. Houve um domingo
de manhã, tínhamos chegado da missa, e minha mãe tirou um tempo antes do almoço
para me fazer estudar mais um pouco. E eu lá: b + a = ba, t + a= a, t + a = ta.
E ela: “o que é que dá?” E eu nada. Íamos de novo, e de novo, e de novo, e eu
nunca que chegava na batata. De repente ela ficou furiosa, deu-me uma “porrada”
na cabeça e eu disse “batata”. Daquele momento em diante eu estava
alfabetizada. Começaram as aulas. Como era uma turma de repetentes, alguns
daqueles alunos já tinham completado 14 anos e saíam para trabalhar nas
fábricas, considerava-se que era gente já alfabetizada e por isso não tinha
cartilha para aprender a ler e escrever. Porém havia o primeiro livro de leitura,
e no primeiro dia em que o recebi – ele tinha as lições, com letras grandes,
mas textos em letra pequena, como a apresentação –, levei para casa e li tudo
no primeiro dia, e teve alunos na minha sala que nunca o leram até a metade.
Depois comecei a ler compulsivamente. Tanto é que meu sonho de consumo de
infância era fazer doze anos para poder ser sócia da Biblioteca Pública
Municipal Doutor Fritz Müller. Até os doze anos eu havia lido tudo que tinha na
minha casa, nos meus vizinhos e na minha escola. Isso engloba livro, revista,
jornal e tudo o que estivesse ao meu alcance, inclusive as enciclopédias Barsa
e Delta Larousse. E quebrar o tornozelo nessa altura foi uma coisa magnífica,
porque nos primeiros meses eu ainda não era sócia da biblioteca, tinha apenas
onze anos, mas depois sim. Eu não podia andar, meu pé perdia a firmeza, mas
andar de bicicleta podia. Então ia de bicicleta à biblioteca, e não conseguia
dormir enquanto não acabasse o livro. Eu fazia de conta que estava dormindo
para minha mãe ir dormir, e quando estava tudo em silêncio, acendia a luz e
acabava o livro.
Para os padrões brasileiros, começas a publicar tarde...
Eu tinha uns 26 anos.
Eu não levava a sério! Escrevia direto, mas... Teve um período, quando eu tinha
13, 14 anos, em que persegui outras linguagens. Tentei pintar, tentei fazer
histórias em quadrinhos, tentei fazer projetos de plantas baixas, mas aquilo
não me preenchia. O meu negócio era mesmo escrever, mas ninguém escrevia!
Escrever era uma anormalidade. Eu até tinha visto um escritor, uma vez. Era o
professor José Ferreira da Silva. Certa vez, quando eu estava na biblioteca
pegando um livro, alguém me disse: “aquele lá é um escritor”. Fiquei atrás da
porta, olhando por uma fresta. Ele estava sentado do lado de fora, no jardim
dos fundos da Fundação Cultural, em uma mesa e com uns papéis. Fiquei espiando:
“aquilo era um escritor!” Porque eu achava que os escritores ou já tinham
morrido, ou moravam em algum lugar distante, mas que não existiria um escritor
aqui. Aos 14 anos, lá em Armação, vou conhecer um escritor de verdade, o Marcos
Konder Reis, que foi meu amigo até a morte. Trocamos 35 anos de
correspondência. As cartas que o Marcos me mandou, recentemente doei para o
museu histórico de Itajaí, e muitas das que escrevi para ele tenho as cópias em
carbono. Estas ainda não doei porque as quero reler. Uma parte da minha vida
está ali. Bem, tinha um tema que me apaixonava mais, que era o tema da
imigração e vou ler sobre todas as imigrações possíveis e imagináveis.
Alguma influência da tua avó, que era lituana?
Minha avó era
imigrante, isso pode ter tido influência. Mas também o gosto pela história que
desperta muito cedo em mim. Os meus livros preferidos eram os romances
históricos. Alguns deles li várias vezes. Cito aqui “Os Frutos da Terra”, do
Knut Hamsun, e “E o Vento Levou”, da Margaret Mitchell, entre outros. Então eu
tinha aquela fascinação pelo romance histórico, mas não achava que o que fazia
tinha alguma importância, algum valor, algum significado. Eu tinha vergonha, e
escrevia escondida no mato, num bananal ou dentro de um grande galinheiro que
havia lá em casa. Escrevia tudo em cadernos, e os guardava dentro do
galinheiro, em um quartinho de guardar ração onde meus pais não iriam achar.
Todo mundo nesse tempo escrevia cartas, porque não havia a facilidade do
telefone e da internet, mas ninguém escrevia nada além de cartas. Sentia-me
fazendo alguma coisa errada. E quando pensei em escrever uma coisa do início ao
fim, perguntei-me do que gostava mais. Imigração. E a que eu mais entendo é
daquela em que estou dentro, a imigração do Vale do Itajaí. Foi aí que escrevi
o “Verde Vale”. A primeira pessoa para quem mostrei o texto foi o Marcos Konder
Reis.
E o livro foi logo publicado?
Escrevi e
datilografei em algumas vias. Mandei uma para o Marcos, outra para o
"seu" José Gonçalves, aqui de Blumenau, e outra para o
"seu" José Escalabrino Finardi , que escreveu a história de Ascurra.
Todos os três se entusiasmaram e foram falar com seus editores, dizendo que
tinha aparecido um livro que era diferente e era bom. Recebi então recados de
duas editoras, a Lunardelli e outra de Porto Alegre. Quando me perguntam se é
difícil publicar um livro, é difícil, todo mundo se queixa, mas para mim não foi
difícil publicar. Fiz essa opção por Florianópolis porque ir a Porto Alegre era
uma coisa muito distante, muito difícil. Acho que naquela altura eu não saberia
ir a Porto Alegre resolver alguma coisa, enquanto Florianópolis era logo ali.
Qual foi a repercussão do “Verde Vale” no tempo do seu
lançamento, e qual era a posição do Odilon Lunardelli a respeito desse livro?
O "seu"
Odilon Lunardelli não leu o “Verde Vale”! Quem leu foi o Marcos Konder Reis e o
"seu" José Gonçalves. Quem me levou lá foi o "seu" José
Gonçalves, e pelo caminho, no carro, ele foi me explicando o que eu tinha que
dizer e como negociar. Quando cheguei lá não aconteceu nada disso. O
"seu" Odilon olhou para mim e perguntou: “essa é a Urda?” “É.”
“Trouxeste o original do livro?” “Trouxe, está aqui.” Ele pegou, colocou na
gaveta e disse: “sai lá pelo mês de junho.” Depois houve revisões, porque isso
foi antes do tempo do computador e a edição empastelava. Essa era uma revisão
que só o escritor podia fazer, porque só ele sentiria quando estivesse faltando
uma linha, uma palavra ou até um capítulo. A revisão que hoje se faz é outra, e
visa principalmente os erros de português. No “Verde Vale” faltou uma linha, e
as primeiras nove edições saíram sem aquela linha. A cada nova edição eu dizia:
“saiu de novo sem aquela linha.” E o "seu" Odilon: “mas por que não
me avisaste que faltou uma linha?” Então a edição completa é a décima.
Teus romances, até o “Cruzeiros do Sul”, sempre foram
identificados em relação à imigração germânica. Porém eles apresentam um
diferencial em relação a obras anteriores de autores que trabalharam com a
imigração, porque tu não trabalhas o germânico como algo puro, mas o germânico
como aquele que comete a ousadia da miscigenação. É o descendente de alemães
que se relaciona com o negro, com o índio, com o italiano ou com o brasileiro;
um pouco da visão do Gilberto Freyre e sua “democracia racial”. Por que esta
opção de trabalhar a temática germânica desta forma um pouco mais ousada, de
uma germanidade miscigenada? Tiveste um contato anterior com a obra do Gilberto
Freyre?
Tive contato com a
obra do Gilberto Freyre depois que escrevi “Verde Vale” e “No Tempo das
Tangerinas”. Parece que ganhei um rótulo: a escritora que escreve sobre
Blumenau e sobre o alemão. As pessoas esquecem dos meus livros que são
totalmente diferentes. Acho que o que pegou foi a miscigenação que havia dentro
da minha casa. Nós éramos híbridos em tudo: culturalmente, etnicamente e
religiosamente. E as rejeições que minha mãe sofreu refletiam muito na gente.
Não era só ela que sofria, eu sofria também. Tenho lembrança de aniversários,
casamentos, dessas festas que reúnem toda a família. Nós éramos três meninas
muito bonitinhas, e pessoas da família me pegavam no colo e diziam: “estás
vendo essa aqui, como é bonitinha? É do Rolando!” – que era meu pai. E aquilo
tinha toda uma carga de preconceito. Ela era do Rolando, mas era também filha
da brasileira. Isso reflete profundamente em mim, tanto é que nunca me senti
alemã, mas sempre uma brasileira de muitas origens. E a partir de um certo
momento, além de brasileira, passo a me sentir americana. Hoje, se me
perguntarem, não diria cidadã do mundo, mas cidadã da América.
Costumo dizer que a tua obra é composta por duas fases. A
primeira delas vai até o “Cruzeiros do Sul”, e neste livro, a partir da segunda
parte, há uma ruptura. Porém mesmo na tua primeira fase há um livro, chamado
“Te Levanta e Voa”, que vai abordar o movimento hippie. Como é que este
movimento chega até ti? Houve uma Blumenau hippie?
Houve! Quando
Blumenau fez 150 anos, foram gravados programas de 30 segundos com diversas
pessoas que falavam sobre a Blumenau do passado. Cada qual escolhia sobre o que
falar, e falar do “Opa” e da “Oma” era quase que unânime. Mas o que me marcou
mesmo não foi a “Oma” e o “Opa”, mas o movimento hippie, e falei sobre o que
tinha acontecido. Quando o movimento chega a Blumenau, os hippies vão se alojar
num hotelzinho que tinha na rua Ângelo Dias. A partir de certo momento Blumenau
entra nas rotas hippies. Nessa altura nós já estávamos totalmente fascinados
pelos Beatles e por algumas coisas que estavam acontecendo no mundo, e quando
os hippies começaram a chegar, para mim, aquilo foi o máximo! E eles passaram a
ter um lugar de trabalho, que foi a escadaria da igreja matriz, hoje catedral.
Eles passavam os dias, ali, fazendo sandálias e diversos artesanatos. O
X-salada era uma coisa recente em Blumenau; acho que chegou junto com os
hippies. Foi uma coisa tão incrível que nós só queríamos comer X-salada. E eles
ficavam conversando sobre poesia, sobre filosofia, tocando música. Aquele
espírito que vai nortear o modo de vida hippie de alguma forma estava ali
junto, dentro da parte artística, porque muito do que se queria dizer era
proibido. Se bem que este proibido tinha certo tamanho, porque nós podíamos,
por exemplo, ir contra a guerra do Vietnã. Fizemos uma passeata contra a guerra
do Vietnã no dia em que terminei o terceiro ano do científico. Então aquilo,
para mim, era um fascínio! A todo momento eu estava enfiada lá no meio dos
hippies. Meu pai não me deixaria ir embora com eles, mas meu sonho era ir
embora com eles! Isso foi muito forte em minha vida, tanto é que não passou,
ficaram as heranças daquela escadaria lá da igreja. E quando digo isso na televisão,
nos 150 anos de Blumenau, várias pessoas me abordaram. Senhoras de blazer e
salto alto me diziam: “você me fez viajar no tempo! Eu estava lá, fui junto com
eles, andei descalça daqui até a Bahia, ou Bolívia, tocando flauta doce, e hoje
não posso me referir a isso dentro da minha casa porque meus filhos e meus
netos vão dizer que sou louca, que isso é uma vergonha, e você vai lá na
televisão e fala!” Ou quem me dizia: “eu passava do outro lado da rua porque
meu pai dizia ‘não chega perto, é tudo maconheiro, é perigoso’.”
Parece-me que “Cruzeiros do Sul” fechou um círculo na tua
obra, e talvez seja o teu livro mais complexo e completo. Na sua estrutura,
lembra um pouco “Cem Anos de Solidão”, do Gabriel García Márquez. O livro
começa com uma estrutura muito parecida com a do “Verde Vale” e “No Tempo das
Tangerinas”, depois vai tomando um fôlego maior, os personagens começam a se
multiplicar e em um determinado momento a história, que começa lá na formação
de Santa Catarina, chega ao tempo presente, na crise econômica do governo
Sarney, crise que vivenciaste porque trabalhavas na Caixa Econômica Federal.
Como nasceu o projeto do “Cruzeiros do Sul”? O que te motivou a escrever este
livro? É aqui que começa a mudança do teu olhar, que até então dizias de direita?
Porque neste livro a crítica social e a crítica à política econômica são muito
fortes.
O “Cruzeiros do Sul”
demorou quatro anos e meio para ser escrito, entre pesquisas, leituras e
escritas. Fiz também algumas viagens durante esse tempo. Fui a Paris para ficar
um mês, e lá fiquei muitas tardes, naquelas mesinhas na rua, tomando um
cuba-libre e imaginando como iria continuar o “Cruzeiros do Sul”. Ele andou
comigo por quatro anos e meio! Surgiu do Plano Cruzado, onde o povo tomou a
frente fechando os supermercados e onde houve o congelamento dos preços. O lema
era: “Tem que dar certo!” Como muita gente, num primeiro momento também
acreditei piamente. Naquela semana em que o plano entrou em vigor, onde a moeda
perdeu três zeros, o Brizola apareceu na televisão durante o horário político
do PDT. Como produto da direita, eu tinha uma certa bronca do Brizola, e fiquei
escutando para criticar. E o Brizola criticou o Plano Cruzado dizendo que
inflação não se tira por decreto, entre outras coisas. Seis meses depois,
quando o plano veio por água abaixo, eu disse: “esse cara realmente tinha
razão!” Esses quatro anos e meio em que estou escrevendo o livro também vão
coincidir com minha vivência sindical. Era bancária e vou me aproximando cada
vez mais do sindicato dos bancários, principalmente a partir de 1985, quando
houve uma grande greve da categoria em Blumenau. Foi uma sequência de greves.
Nós íamos para as assembleias, e quando aparecia o fotógrafo do Jornal de Santa
Catarina, escondíamos a cara para não aparecermos na foto. Tínhamos medo do
Serviço Nacional de Informação. Então vai se dando uma nova visão de mundo,
para mim, dentro dessa minha vivência sindical e de luta por conquistas, e aí
acontece o Plano Cruzado e o pronunciamento do Brizola logo no começo foi uma
coisa muito forte, porque vi que ele estava certo. E o Plano Cruzado aconteceu
dentro de onde eu trabalhava, no banco, onde vou atender as pessoas que ficaram
na miséria por causa dele, as pessoas que venderam suas terras e colocaram o
dinheiro na poupança para viver de juros. Então pensei: “tenho que escrever
sobre essas pessoas”. Essa foi a idéia original. E quem vai ser meu herói?
Teria que ter um personagem principal, e quem vai ser? Um descendente de
alemão? De italiano? Um luso? Teria que ser alguém que representasse todo
mundo. Vou ler sobre a história do estado e retroagir a 1650, e começar a
história com o índio. Para isso as pesquisas de Sálvio Alexandre Müller e de
Sílvio Coelho dos Santos me ajudaram bastante.
Urda, já citaste nessa entrevista a influência que
recebeste do livro “Os Frutos da Terra”, do Knut Hamsun. Neste livro ele
trabalha na perspectiva da construção da civilização, do homem que doma a
natureza, e se olharmos para alguns dos teus livros, isto está lá também. No
“Cruzeiros do Sul” temos a formação do território, do povo catarinense, a ação
do ser humano sobre o meio físico. O mesmo pode ser observado em “As Brumas
Dançam Sobre o Espelho do Rio”, no “Verde Vale” e também neste teu último
romance, o “Sambaqui”, que trabalha o processo civilizatório do povo
sambaquiano, porque este também ocupa um espaço, constrói uma cultura. Neste
aspecto, há aqui uma influência do Knut Hamsun?
No começo certamente
sim, e talvez até hoje. Li esse livro, pela primeira vez, por volta dos quinze
anos, e nos dez anos seguintes devo tê-lo lido umas vintes vezes. Depois passei
um longo tempo sem o ler, e há uns quatro anos eu o reli e saquei de onde veio
a minha influência maior. Acho que teve um monte de gente que me influenciou,
como Érico Veríssimo, Jorge Amado, José Mauro de Vasconcelos, isto para citar
os brasileiros. Adoraria saber escrever como Machado de Assis, mas acho que não
tenho competência para tanto. Muitos estrangeiros, li os clássicos, tanta
coisa, mas o X da questão está lá no Knut Hamsun. Há também um outro escritor
que me marcará e estabelecerá um “antes” e um “depois” na minha vida, que é o
Franz Kafka. Li “O Castelo” e “O Processo” e não estava preparada para aquela
porrada. Até hoje não sei definir como mexeu, o que mudou, o que aconteceu, mas
sei que eu era uma pessoa antes e me tornei outra depois.
Começas escrevendo romances, e depois começas a te
exercitar em outros gêneros, como a crônica, o ensaio, os relatos de viagens.
Como surge a crônica na tua carreira?
Se alguém me dissesse
que eu iria escrever crônica, eu diria que não, que sou uma romancista
histórica. Porém um dia o jornal A Notícia me ligou dizendo que eles estavam
montando um caderno cultural e queriam que eu escrevesse as crônicas. Eu disse:
“mas eu não sei escrever crônicas!” “Tenta para a gente ver. Faz umas três
crônicas e manda para a gente dar uma olhada.” Fui para casa pensando nos
assuntos para escrever três crônicas. Datilografei, coloquei no malote e fiquei
esperando que me telefonassem. De repente um amigo meu chega dizendo “Urda, que
coisas legais andas escrevendo no A Notícia!” Liguei para eles perguntando se
estavam me publicando. “Sim, já publicamos três e precisamos de material para
esta semana.” Fiquei uns três anos publicando no A Notícia. Ter uma coluna fixa
em jornal é uma coisa muito estressante porque a gente fica pensando no que vai
escrever, já que no dia marcado o texto tem que estar lá. Hoje escrevo para
diversos jornais, mas com compromisso sério foi o A Notícia e o Diário
Catarinense, e neste último fiquei bem menos tempo.
O que houve no Diário Catarinense?
Pertenço a um comitê
pró Palestina em Blumenau. Acho que está acontecendo um genocídio lá na
Palestina, uma coisa tão horrorosa quanto a que fizeram com o povo judeu na 2ª
Guerra Mundial. E assim como falo do judeu que foi injustiçado na 2ª Guerra
Mundial, tenho que falar do palestino injustiçado pelo judeu. Quando o redator
chefe do jornal me contratou, falei que não ia dar certo: “as minhas ideias e
as de vocês não fecham”. “Mas nós vamos respeitar as suas ideias”, disseram-me.
No período que estive lá, escrevi um total de quatro crônicas sobre a
Palestina, três passaram, e a quarta virou um samba de crioulo doido. Fui
demitida em altos brados. Os Sirotsky mesmo não me disseram “tu não podes
escrever sobre a Palestina”, mas botaram lá uma professora da UFSC, partidária
de Ariel Sharon, para brigar comigo no jornal e levantar essa questão de que eu
estava errada. Tu sabes que a gente sempre acaba tendo uns leitores mais fiéis.
Alguns destes não queriam que eu fosse demitida, e ficaram mandando e-mails
para o jornal, eles responderam, eram mensagens escritas pelos Sirotsky, e os
leitores me passaram estes e-mails. Para a minha carreira, isso foi ótimo! Essa
briga acabou envolvendo pessoas, leitores, simpatizantes e antagônicos de doze
países. Já há trabalhos acadêmicos feitos sobre esse material que recebi. Isso
me deu também uma visibilidade que eu não tinha, o que faz com que hoje eu
publique em três continentes e em muitos órgãos de imprensa. Com aquele
exercício de escrever toda semana para o A Notícia, acabei criando o hábito de
toda semana produzir uma crônica. E se tenho um tempo a mais, se vou acampar,
escrevo duas ou três.
Como é o teu processo criativo? De onde vêm os temas?
Vêm daquilo que está
acontecendo. Por exemplo, agora o Obama foi eleito e todo escritor do mundo
falou sobre ele. Não sobrou texto para mim, então nem me meti a falar do Obama.
Estou como expectadora do que vai acontecer e esperando que mude para melhor,
se bem que sabemos que trocar republicanos e democratas nos Estados Unidos é
quase trocar seis por meia-dúzia. Uns são mais agressivos, outros menos, mas
ambos são capitalistas. Porém tenho fé que alguma coisa aconteça. Ontem Obama
disse que vai fechar Guantánamo, o que já é um bom começo. Mas quando acontece
algo que mexe intimamente comigo, então escrevo sobre aquilo. Por exemplo,
outro dia morreu, nas montanhas da Colômbia, Manuel Marulanda Vélez, e todo
mundo falou sobre ele. Porém houve um viés sobre o qual não vi ninguém falar: o
ser humano Manuel Marulanda. Todos falaram do aspecto político, mas fui
pesquisar como ele andava solitariamente pelas montanhas com seu cachorro e sua
arma, andando por cada rincão da Colômbia sem nunca ter ido até a capital.
Então fiz um texto sobre o ser humano. E quando não há um fato que mexa comigo,
escrevo textos sobre o amor, a natureza, a pré-história, o meu cachorrinho –
tenho uma série agora chamada “Meu cachorro Atahualpa”, que está sendo
publicada em diversos lugares.
Do “Cruzeiros do Sul” ao “Sambaqui”, teu último romance,
nós temos um intervalo de quase duas décadas onde publicaste livros de
crônicas, relatos de viagens e artigos de história. Por que este período tão
grande sem publicar um novo romance? E por que a pré-história?
O fato de estar
escrevendo crônicas para o A Notícia me tirou o tempo para escrever romances. E
apareceu um monstro assustador na minha frente chamado aposentadoria. O que vou
fazer na aposentadoria? Depois de um primeiro momento de susto, pensei: “vou ser
feliz”. E ser feliz, para mim, era cursar História, curso que sempre sonhei
fazer. Nesse período em que me envolvi com o curso de História, escrevi quase
nada. Logo no primeiro semestre de História entrou na sala de aula uma
professora de arqueologia. Eu andava muito pelo mundo, via muita arqueologia, e
pensava: “por que é que no Brasil não tem nada?” E ela vai falar justamente da
arqueologia de Santa Catarina, do nosso litoral, de um período de 6 mil anos,
de coisas que conheci e não sabia o que eram. E a arqueologia era uma coisa que
estava dentro de mim há muito tempo! Desde os tempos de ginásio! Lembro de, aos
15 anos, o Padre Sílvio Tron, nosso vigário, me chamar na casa paroquial e
dizer: “senta aqui minha filha; o que tu queres ser quando cresceres?” – porque
todas as meninas que estavam estudando iam fazer o curso de Normal para serem
professoras, e eu queria fazer o Científico porque não queria ser professora.
Então respondi que queria ser arqueóloga. “Tu sabes que no Brasil não é
possível ser arqueólogo? Porque pra fazer arqueologia tem que ir pro Egito ou
Pompéia”. Isso era uma coisa inadmissível de se pensar naquela altura, que um
colono blumenauense e pobre, como eu era, poderia um dia ir para o Egito,
quanto mais estudar arqueologia! Então naquela oportunidade o Padre Sílvio
tirou isso da minha cabeça, mas tenho lembrança daquele momento como uma coisa
que era muito forte até ali. Então era uma ideia antiga. Quando, de repente,
surge a professora Elisabete Tamanini com a arqueologia de Santa Catarina.
Lembro que fiquei olhando os slides que ela mostrava nas aulas e vi uma baleia
de pedra que deve ter uns 5 mil anos, que está lá no Museu do Sambaqui de
Joinville, e pensei: “meu Deus, preciso ir mais fundo nisso, escrever a
respeito!” Entre o começo da pesquisa e o romance ir para a gráfica,
passaram-se de dez anos e dez meses.
Muitos autores utilizam o termo romance histórico, outros
o rejeitam, como é o caso do Salim Miguel, um dos nossos últimos entrevistados
aqui no Sarau Eletrônico. Apesar de ele fazer ficção estruturada sobre a
história, faz questão de dizer que não faz romance histórico. Tu já fazes
questão de dizer o contrário. Além de escritora, tu és historiadora, graduada e
pós-graduada em História. Como tu entendes o romance histórico? Onde termina o
romance e começa a história? Nos teus romances, o que é ficção e o que é
história?
Nos meus isso é muito
fácil de definir, porque a ficção são os meus personagens e os fatos são os
fatos históricos, e às vezes misturo personagens da história com meus
personagens imaginários. Hoje, porém, tenho uma visão um pouco mais refinada
sobre o termo romance histórico, mas continuo me chamando de romancista
histórica. Acho que o romance, que a literatura em geral, de alguma forma acaba
refletindo o pensamento daquele escritor, que é um testemunho do seu momento na
história. Dificilmente um romance não vai trazer a história. Neste momento
estou lendo um romance histórico do Salim Miguel chamado “Nur na Escuridão”, e
é só começar a ler para ver que é um romance histórico, apesar de ele dizer que
não. Vejo na contracapa desse livro a primeira observação, feita pelo Sílvio
Coelho dos Santos, dizendo: “Salim Miguel, neste romance, teve o poder de nos
trazer toda a história de um tempo, etc.” E é! Acho que é muito difícil separar
o romance da História. Pode-se separar a História do romance, agora o romance
da História é difícil.
Além de escritora, és também proprietária e fundadora da
Editora Hemisfério Sul. Como está sendo essa experiência de editora? Quais as
dificuldades e a política editorial da Hemisfério Sul?
A Hemisfério Sul
trabalha com literatura: romance, conto, crônica e alguma coisa de literatura
infantil em prosa. Sempre visamos a excelência do texto. E é muito
gratificante!
Mas qual é a realidade de uma editora em um município
marginal, como é o caso de Blumenau?
Mas ela não se
restringe a Blumenau. Ela está em praticamente todo o estado de Santa Catarina,
e tem alguns pontos de venda fora do estado. A distribuição do livro é uma
coisa complexa, mas a gente sempre vai lutando com muita dificuldade financeira
e estamos há onze anos no mercado. Posso te dizer que há uma grande dificuldade
em se conseguir bons textos. Textos ruins aparecem em grande quantidade, e se
alguém que deseja ser escritor vier a ler esta entrevista, digo que o que faz
com que um texto seja bom ou ruim é a quantidade de leitura que um escritor
tem. Há escritores que não leem e não querem ler, escrevem qualquer coisa e
acham que está bom, e não é assim. E não são doze livros, como às vezes escuto
alguns escritores dizer que leram, mas dois mil pelo menos! Sempre dou esse
conselho. Outro dia tive o prazer de encontrar um rapaz a quem dei este
conselho, e agora vejo que ele anda escrevendo bem melhor. Ninguém está condenado
a não escrever bem, mas precisa se preparar.
Sempre perguntamos, para quem é da região, a respeito da
vida intelectual de Blumenau. És uma pessoa com uma longa história de vida e
começas a carreira literária lá na década de 1970. No momento em que começas a
publicar, estabelecias contatos com círculos de intelectuais de Blumenau? Havia
a troca de ideias e uma formação intelectual? E hoje, como está isso?
Lá no começo eu tinha
o Marcos Konder Reis, que foi meu interlocutor. Lembro que em algum momento o
Lindolf Bell entrou na minha vida, mas de uma forma esparsa. Não chegamos a ser
grandes amigos, mas houve momentos que me marcaram. Houve, por exemplo, um dia
em que estive na Galeria Açu-Açu, no tempo em que ela ficava na Rua Namy Deeke,
e ele me chamou para olhar por uma janela que ele tinha feito, e que era muito
bonita, e me disse que quando sonhávamos ou desejávamos alguma coisa na vida,
tínhamos que seguir. E quando vivíamos numa cidade pequena como a nossa, e
seguíamos o próprio sonho, no primeiro momento seríamos condenados, mas se
persistirmos no sonho, adquirimos o respeito da comunidade. E é bem isso! As
pessoas passam a te respeitar, se bem que sempre tem aquelas pessoas que dizem
te admirar e ver todos os quadros que tu pintas, quando não sou pintora. Mesmo
tendo visto todos os quadros que não pintei, a pessoa cria um respeito. Naquele
tempo, na escola, não se imaginava que um aluno pudesse vir a ser escritor,
diferentemente de hoje, em que a escola estimula. E quando apareço com o “Verde
Vale”, o livro fazendo sucesso e agradando, um grupo de escritores que
periodicamente se reunia em almoços no antigo restaurante Moinho do Vale passou
a me convidar para estar junto com eles. Neste momento também estava surgindo
um movimento cultural em Blumenau, o primeiro que vejo surgir, que vai ser o
dos Poetas Independentes. Esse pessoal ainda está vivo. Alguns sumiram e outros
continuam em sua senda de arte. E havia uma crítica muito grande dos velhos
sobre os novos, uma ciumeira até: “os caras vieram aqui para estragar a imagem
da nossa cidade. Nós somos os intelectuais da cidade!” Passei a conviver também
com os novos e cheguei a um acordo comigo mesma, porque não queria ser como
aqueles velhos, queria estar sempre aberta ao que fosse novo. Às vezes você
escorrega e faz alguma coisa em desacordo com esta premissa, mas tenho
procurado prestar atenção ao que é novo. E o que acontece hoje em Blumenau é o
que acontece em qualquer lugar do mundo, hoje e em qualquer tempo. Temos alguns
bons escritores, mais alguns médios e uma quantidade incrível de péssimos
escritores. Isso não é próprio de Blumenau, não é uma crítica que estou fazendo
a esta cidade, e deixo uma pergunta: quando Shakespeare era vivo e escrevia,
será que era só ele que escrevia? Não, ele era o melhor de todos; tanto é que
tantos séculos depois nós ainda o estamos lendo. E isto é de âmbito geral e
irrestrito, e Blumenau não foge à regra.
Na literatura, quais são teus projetos atuais?
Estou perseguindo um
passando ainda mais antigo. Trabalhei com um período de mais de 6 mil anos, no
caso dos sambaquis. Agora comecei a pesquisar aquelas pessoas que viveram entre
8 e 10 mil anos antes do presente no planalto de Santa Catarina. Isso está me
levando a uma voragem do tempo e já estou há 650 milhões de anos antes do
presente. Estou sonhando que vou escrever um romance que vai começar como um
romance geológico para, muitos milhões de anos depois, chegar ao ser humano.
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