41 anotações de Mario Quintana
por Fraga | Publicada em 12/10/2017 às 16h23| Atualizada em 13/10/2017 às 22h40
Mario Quintana pode ser resumido numa linha – em qualquer linha escrita por ele. Fora os poemas, versos soltos e sonetos, Quintana adorava escrever anotações em poucas palavras, verbetes que iam do humor ao poético (geralmente juntos). Com essas linhas, preenchia sua participação no Caderno de Sábado, suplemento cultural do Correio do Povo. A seção Caderno H fez manteve leitores cativos por décadas. E essa seleção tem o melhor dos motivos: amenizar as saudades do maior poeta que já tivemos – o inesquecível Mario Quintana.
A Arte de LerO leitor que mais admiro é aquele que não chegou até a presente linha. Neste momento já interrompeu a leitura e está continuando a viagem por conta própria.
A CartaQuando completei quinze anos, meu compenetrado padrinho me escreveu uma carta muito, muito séria: tinha até ponto-e-vírgula! Nunca fiquei tão impressionado na minha vida.A CoisaA gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa... e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita.
As IndagaçõesA resposta certa, não importa nada: o essencial é que as perguntas estejam certas.A VozSer poeta não é dizer grandes coisas, mas ter uma voz reconhecível dentre todas as outras.Ars LongaUm poema só termina por acidente de publicação ou de morte do autor.Arte PoéticaEsquece todos os poemas que fizeste. Que cada poema seja o número 1.BiografiaEra um grande nome — ora que dúvida! Uma verdadeira glória. Um dia adoeceu, morreu, virou rua... E continuaram a pisar em cima dele.Cartaz para uma feira do livroOs verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem.CitaçãoDe um autor inglês do saudoso século XIX: "O verdadeiro gentleman compra sempre três exemplares de cada livro: um para ler, outro para guardar na estante e o último para dar de presente."Citação 2E melhor se poderia dizer dos poetas o que disse dos ventos Machado de Assis: "A dispersão não lhes tira a unidade, nem a inquietude a constância."Contradições... mas o que eles não sabem levar em conta é que o poeta é uma criatura essencialmente dramática, isto é, contraditória, isto é, verdadeira. E por isso, é que o bom de escrever teatro é que se pode dizer, como toda a sinceridade, as coisas mais opostas. Sim, um autor que nunca se contradiz deve estar mentindo.CuidadoA poesia não se entrega a quem a define.Das EscolasPertencer a uma escola poética é o mesmo que ser condenado à prisão perpétua.Destino AtrozUm poeta sofre três vezes: primeiro quando ele os sente, depois quando ele os escreve e, por último, quando declamam os seus versos.Do EstiloO estilo é uma dificuldade de expressão.Dos LeitoresHá leitores que acham bom o que a gente escreve. Há outros que sempre acham que poderia ser melhor. Mas, na verdade, até hoje não pude saber qual das duas espécies irrita mais.Dos LivrosHá duas espécies de livros: uns que os leitores esgotam, outros que esgotam os leitores.Dupla DelíciaO livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.EducaçãoO mais difícil, mesmo, é a arte de desler.FatalidadeO que mais enfurece o vento são esses poetas invertebrados que o fazem rimar com lamento.Feira de LivroO que os poetas escrevem agrada ao espírito, embeleza a cútis e prolonga a existência.LeituraSe é proibido escrever nos monumentos, também deveria haver uma lei que proibisse escrever sobre Shakespeare e Camões.Leitura 2Livro bom, mesmo, é aquele de que às vezes interrompemos a leitura para seguir — até onde? — uma entrelinha... Leitura interrompida? Não. Esta é a verdadeira leitura continuada.Leituras— Você ainda não leu O Significado do Significado? Não? Assim você nunca fica em dia.— Mas eu estou só esperando que apareça: O Significado do Significado do Significado.Leituras 2Não, não te recomendo a leitura de Joaquim Manuel de Macedo ou de José de Alencar . Que idéia foi essa do teu professor? Para que havias tu de os ler, se tua avozinha já os leu? E todas as lágrimas que ela chorou, quando era moça como tu, pelos amores de Ceci e da Moreninha, ficaram fazendo parte do teu ser, para sempre. Como vês, minha filha, a hereditariedade nos poupa muito trabalho.
Lógica & Linguagem
Alguém já se lembrou de fazer um estudo sobre a estatística dos provérbios? Este, por exemplo: "Quem cospe para o céu, na cara lhe cai". Tal desarranjo sintático faria a antiga análise lógica perder de súbito a razão.O AssuntoE nunca me perguntes o assunto de um poema: um poema sempre fala de outra coisa.O PoemaO poema, essa estranha máscara mais verdadeira do que a própria face.O Trágico DilemaQuando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro.
Palavra EscritaPor vezes, quando estou escrevendo este cadernos, tenho um medo idiota de que saiam póstumos. Mas haverá coisa escrita que não seja póstuma? Tudo que sai impresso é epitáfio.PoemaMas por que datar um poema? Os poetas que põem datas nos seus poemas me lembram essas galinhas que carimbam os ovos...Poesia & LençoE essa que enxugam as lágrimas em nossos poemas com defluxos em lenços... Oh! tenham paciência, velhinhas... A poesia não é uma coisa idiota: a poesia é uma coisa louca!Poesia & PeitoQual Ioga, qual nada! A melhor ginástica respiratória que existe é a leitura, em voz alta, dos Lusíadas.RefinamentosEscrever o palavrão pelo palavrão é a modalidade atual da antiga arte pela arte.RessalvaPoesia não é a gente tentar em vão trepar pelas paredes, como se vê em tanto louco aí: poesia é trepar mesmo pelas paredes.SinônimosEsses que pensam que existem sinônimos, desconfio que não sabem distinguir as diferentes nuanças de uma cor.SonhoUm poema que ao lê-lo, nem sentirias que ele já estivesse escrito, mas que fosse brotando, no mesmo instante, de teu próprio coração.TempoCoisa que acaba de deixar a querida leitora um pouco mais velha ao chegar ao fim desta linha.VeneraçãoAh, esses livros que nos vêm às mãos, na Biblioteca Pública, e que nos enchem os dedos de poeira. Não reclames, não. A poeira das bibliotecas é a verdadeira poeira dos séculos.VidaSó a poesia possui as coisas vivas. O resto é necropsia.
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