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Quando Amyr Klink
colocou o Paraty, barco construído por ele mesmo, no mar da Namíbia, em 1984,
muita gente imaginou que aquele brasileiro maluco voltaria ao porto em poucas
horas. Afinal, ele queria atravessar o Atlântico Sul remando. Pois a aventura,
a primeira de sua vida e jamais repetida por outro velejador, acaba de
completar 30 anos.
Paixão pelo mar
Nesse tempo todo,
este paulistano navegou com sucesso por todas as latitudes possíveis – embora
ainda se considere amador e veja sua paixão pelo mar como um hobby. Para
comemorar a data, Klink estará, amanhã, na Livraria da Vila do Shopping
Higienópolis, onde dará palestra sobre a travessia que o tornou conhecido e
reverenciado em todo o planeta.
O capitão, que está
sendo entrevistado para um documentário chamado Mar À Vista, falou sobre a
fazenda em Paraty que quer transformar em centro cultural, a falácia da solidão
no oceano e o quanto uma política inteligente de turismo náutico poderia render
ao País.
Por que você decidiu, em 1984, iniciar a travessia na
costa da Namíbia?
Enquanto tentava
viabilizar a viagem, pesquisei bastante a respeito do trajeto, sobre as
correntes. E percebi que o lugar certo para me lançar ao mar era Lüderitz, na
Namíbia.
As pessoas achavam que era uma maluquice?
Talvez. Mas a verdade
é que, naquela época, eu tinha uma coleção enorme de literatura sobre
sobrevivência no mar, uns mil volumes. E só consegui fazer a viagem sob essa
justificativa. Tanto que, em uma praça de Lüderitz, próximo a Shark Island, de
onde eu parti, há uma placa em minha homenagem, ao remador brasileiro. E o mais
interessante é que está no lugar de uma estátua dedicada ao alemão Adolf
Lüderitz, fundador da cidade, que sumiu.
Você está com moral na Namíbia, então.
A coisa toda é muito
estranha, porque pouca gente sabe da viagem de 1984. E eu descobri, há cerca de
um ano, que a tal Shark Island abrigou o primeiro campo de extermínio alemão do
século 20, onde desenvolveram a tecnologia que seria usada na Segunda Guerra.
Como Lüderitz se tornou um ponto de turismo importante na África, eles querem
apagar esse fato da história.
Os alemães, pelo jeito, te perseguem, né? Lá em Paraty
você andou às voltas com herdeiros do Thomas Mann. (risos).
Mas agora acabou.
Ganhei o último recurso no começo deste ano. Finalmente consegui comprar a
fazenda Engenho da Boa Vista, que eu tinha em sistema de comodato com o governo
havia vinte anos. A vida inteira eu quis restaurar aquela casa. E há cerca de
dez anos surgiu um cidadão chamado Frido Mann, que é neto do escritor, para
atrapalhar. Um negócio sem sentido, porque a mãe do Thomas Mann viveu só até os
7 anos no lugar, não há nada que ligue a família à fazenda. O Thomas Mann não
tem uma única linha escrita sobre a cidade de Paraty.
O que pretende fazer agora?
Restaurar o
alambique, porque aquele engenho tem mais de 300 anos, foi o mais importante de
Paraty, e transformá-lo em um “alambique de charme”, com uma espécie de oficina
gastronômica. Além disso, o lugar tem quatro salões enormes, que podem se
tornar adendos dos eventos culturais da cidade, uma extensão da Flip, por
exemplo. Também terá um espaço para exposições permanentes e um auditório.
Como foi passar da carreira de economista para navegador?
Não gostei de
trabalhar na minha área, embora tenha sido um aprendizado importante, e sempre
fui apaixonado pelo universo dos barcos. O que me levou a me aventurar foi uma
série de livros franceses chamada Mer Aventure. A coleção tinha textos
excelentes. E um deles era do Gerard D’Aboville, que havia remado o Atlântico
Norte.
E você achou o máximo?
Não, a primeira
reação que eu tive foi: “Que ideia imbecil!”. E até hoje ainda acho que foi.
Porque não é uma experiência útil. Os problemas é que são interessantes. O
texto do Gerard é tão seco, tão destituído de descrições, sentimentos,
interjeições, que acaba sendo muito emocionante. Ele mostra a inutilidade e a
beleza da viagem. Fiquei impressionado com as dificuldades enfrentadas por ele.
O mais incrível é que ele não usou um assento deslizante para remar…
Foi só com a força dos braços?
Pois é. Essa experiência
eu tinha, porque remei muito na USP, durante seis anos. No Paraty (barco que
Klink usou para fazer a travessia do Atlântico Sul), eu remo de costas para a
proa, com os pés apoiados e sentado sobre um assento que se movimenta. Isso
significa que 60% do esforço da remada vêm das pernas.
Você conheceu o D’Aboville?
Conheci. E a primeira
coisa que perguntei a ele foi: “Por que você não usou um assento com
rodinhas?”. E ele respondeu: “Por que você não me ligou antes, seu imbecil?”
(risos). Ele é muito sarcástico.
Quanto o Paraty tem do barco do D’Aboville?
Muito. Ele descobriu
uma coisa que é fundamental para esse tipo de travessia, algo que você não
encontra na maioria dos barcos modernos, que são ultra eficientes. Os
projetistas se esquecem de que um barco a remo é como um barco de trabalho, não
é desenhado só para navegar, mas também para não navegar, para os momentos em
que se fica à deriva. E a atitude de deriva é passiva, ninguém quer projetar um
barco com essa característica.
Em algum momento da viagem você achou que não ia dar
certo?
No primeiro dia deu
tudo errado, foi um caos. Mas o projeto estava tão bem esmiuçado que eu tinha
solução para tudo. E levei um cardápio variado, porque gosto de comer bem.
Nada de enlatados?
Tenho manias
ocasionais. Atualmente, estou na fase da polenta com lula e camarão. Ano
passado, tive a crise do caranguejo norueguês. Perseguia os estoques nos
supermercados com uma planilha, com o código do produto no iPad e um mapa da
cidade, para achar os melhores preços.
Metódico em tudo!
Não sou metódico, só
tenho pequenas obsessões (risos).
Qual a sensação de estar totalmente sozinho no mar? Tem
gente que não aguenta…
Todo mundo aguenta.
Isso é uma falácia. Porque, quando você está sozinho, a demanda física para
construir uma vida confortável é tão grande que, no final do dia, você está
exausto. Não há tempo para filosofar.
Sentiu medo?
O tempo todo, mas era
um medo divertido. Ruim foi a burocracia antes de conseguir colocar o barco na
água, os carimbos, as assinaturas das autoridades… No mar havia só tubarões
(risos), e nada é pessoal para os tubarões, você dá uma espetada e eles vão
embora.
Você ainda hoje trata a navegação como um hobby. Por quê?
Não me considero
profissional, porque o Brasil tem uma legislação defeituosa, que elimina uma
riqueza muito grande que nós temos. Somos o único país do mundo que alega ser o
turismo uma parte essencial do PIB, mas que não investe na atividade de
charter, que é bilionária. Minha propriedade em Paraty, se tivesse licença para
transformar em marina (e pudesse fazer uma concessão para operadores privados),
geraria faturamento de mais de R$ 10 bilhões por ano. Um único porto em Palma
de Mallorca, nas Ilhas Baleares, gera, por ano, cerca de R$ 14 bilhões. Todos
os hotéis e restaurantes do Brasil, somados, não geram esse dinheiro todo.
Por que isso?
Legislação
equivocada. Na minha carteira para pilotar barcos está escrito ‘capitão
amador’. Não posso exercer atividade remunerada, não posso alugar meu barco.
Mas Paraty está cheia de barcos fazendo turismo.
São quase dois mil.
No rigor da lei, nenhum deles poderia operar. Resultado: a indústria de
charter, que é virtuosa, não existe no País. O Brasil ainda tem muito a crescer
na atividade náutica. Só no Rio de Janeiro era para termos um faturamento de
cerca de R$ 20 bilhões por ano.
Você já disse que o Brasil virou as costas para o mar.
Como resolver isso?
É preciso investir em
infraestrutura e acabar com essa visão de que a atividade náutica é coisa de
rico, elitista. Na Europa, não é ‘feio’ ter um barco de luxo. Mas por quê?
Porque é um ativo econômico, que gera muito turismo e emprego para um número
grande de pessoas. Parece que o Brasil não gosta de fazer dinheiro.
Você prefere o conhecimento informal, de quem trabalha
com barcos, ao dos engenheiros navais. Por quê?
Por exemplo, nós
fizemos o primeiro veleiro do mundo sem lastro, adorei a ideia. Por que um
veleiro tem de carregar 30% de seu peso em chumbo? Para dar estabilidade. Por
que um catamarã é mais eficiente? Porque não tem investimento em estabilidade,
a estabilidade dele é a sua forma. Estava pensando nisso quando descobri um
escritório francês que queria investir em um modelo sem lastro – só que os
clientes não tinham coragem. O Paraty 2 foi o primeiro barco monocasco do mundo
sem chumbo. Veja o conceito da jangada de piúba, que é um barco genial, não usa
leme. Ou da biana do Maranhão. Uma universidade inglesa ficou chocada com a
eficiência primitiva das bianas maranhenses, que usam uma vela vagabunda, de
algodão todo furadinho. Se o pescador quer mais velocidade, joga água na vela,
com uma cuia, para ela ficar mais impermeável. É ultrassofisticado. Esse tipo
de tecnologia usamos nos barcos que fabricamos. Quer outro exemplo? Não
trabalhamos com motores marinizados.
Diminui a durabilidade?
Exato, a gente queria
acabar com esse contato do motor com o sal do mar. Eu detesto sal. O ideal
mesmo seria que o mar não tivesse sal (risos). Ele acaba com tudo, enferruja,
encarece. Nosso motor é uma adaptação de uma tecnologia criada por barqueiros
de Santa Catarina.
Você não gosta dos engenheiros navais brasileiros?
Nosso ensino é
altamente precário, em todos os sentidos. E também não temos escolas técnicas.
A USP é a única universidade do mundo que ensina Engenharia Naval e nunca
construiu um barco. Eu não deixo minhas filhas navegarem em um barco que teve
como consultor um engenheiro da USP. Ali está tudo errado: imagina uma
universidade em que o reitor é escolhido pelos funcionários, quer dizer, é um
castelo de empreguismo. Não tem como funcionar, está fadado a implodir.
É verdade que você está trazendo um modelo de barco
anfíbio para o Brasil?
Estou. Descobri um
fabricante em um desses Boat Shows de Miami na minha última viagem. O cara
construiu uma lancha inflável, mas semirrígida, de alta performance, para
resgate. Tem um trem de pouso que abaixa, muito legal. Sabe a primeira coisa
que me passou pela cabeça? O potencial que esse barco tem de aumentar o valor
do metro quadrado de casas de praia que ficam perto da água, mas não à
beira-mar. Já importamos três. E testamos em Santos. Saímos do mar, entramos na
cidade e paramos em um posto de gasolina para abastecer e calibrar os pneus
(risos).
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