Por Tadeu Breda, na Editora Elefante
A Amazon entrou em minha pauta de discussões e preocupações em abril de 2019, quando eu soube que a empresa comercializava os livros da Elefante por um preço que nem nós conseguíamos praticar, mesmo nas vendas diretas em nosso site, sem intermediários. O fato me motivou a publicar um textinho no blogue da editora e em nossos perfis no Instagram e no Facebook, informando os leitores sobre essa que, para nós, foi uma surpreendente — e desagradável — descoberta.
Na época, a postagem foi compartilhada algumas dezenas ou centenas de vezes, provocou discussões no espaço dos comentários nas redes sociais e inspirou outras postagens sobre o assunto, em perfis de pessoas interessadas em livros e no mercado editorial — um universo muito restrito. Mais de um ano depois, em julho de 2020, o texto voltou a ser compartilhado, agora por círculos mais amplos, porém ainda muito reduzidos — porque minúsculo é o público leitor brasileiro e microscópica a parcela da população que se dispõe a discutir o mundo dos livros, ainda mais a partir de um artigo assinado por uma pequena editora.
Acredito que o texto em questão, intitulado “Amazon destrói”, ressuscitou devido à notícia de que a fortuna pessoal de Jeff Bezos, CEO da empresa, cresceu treze bilhões de dólares em apenas 24 horas no dia 20 de julho — fato muito revoltante para as poucas almas que não foram seduzidas pelo neoliberalismo selvagem e ainda se indignam com a concentração de renda neste país e mundo, sobretudo em tempos de pandemia, quarentena e crise.
Esse salto vertiginoso no patrimônio do dono do maior site de venda de livros do planeta (é só por isso que estou dedicando meu tempo ao assunto: porque edito livros no Brasil e a Amazon os vende aqui) me motivou a escrever outra carta aos leitores da Elefante, a qual não “viralizou” sequer entre os recantos livrescos do bairro onde eu moro, mas provocou alguns comentários sobre “democratização do acesso ao livro” e “você reclama, mas queria ser rico igual a ele”, os quais, no meu juízo, demonstraram a necessidade (que talvez seja apenas minha) de voltar ao tema com mais empenho.
Faz algumas semanas saiu uma pesquisa sobre as marcas que vêm à cabeça dos brasileiros quando pensam em comprar livros on-line. A Amazon, isolada na dianteira desse ranking chamado “top of mind”, é a resposta de 51,2% dos entrevistados. Acredito que essa liderança absoluta se deve principalmente à imagem construída pela empresa de que os preços dos livros que vende são imbatíveis (e também de que é muito “eficiente”; falarei disso mais adiante).
A Amazon alardeia seus famosos “preços mais baixos” em letras garrafais, mas, em caracteres menorzinhos, sem estardalhaço, informa a taxa do frete. Nossos olhos de consumidores treinados para pagar sempre mais barato (porque fomos ensinados que pagar mais caro, em qualquer situação, é coisa de otário) veem apenas a cifra de maior destaque, desviando a atenção do valor do envio. Quando finalizamos a compra, porém, ele é cobrado, claro. Não precisamos dizer aqui que, em compras on-line, o preço final do produto para o consumidor não é o que se anuncia com maior destaque, mas a composição deste com os custos do frete.
Por isso, no site da Elefante, passamos oito anos oferecendo frete grátis — sem exigir que, para ter direito ao envio sem cobrança adicional, os leitores pagassem mensalidade para ter acesso a uma espécie de “Elefante Prime”. Apenas em 2020 é que implementamos o sistema de frete compartilhado, em que a pessoa contribui com os custos de envio — por pedido, não por livro — com um valor de cinco reais. Por quê? Sabemos que o frete no Brasil é caro e não achamos justo jogá-lo totalmente no bolso do leitor que já está sendo muito gente fina comprando livros diretamente conosco.
Vamos fazer umas contas, pois.
Em agosto, quando fiz essa pesquisa, a Amazon vendia nossa edição de Contra Amazon, de Jorge Carrión — alguém dirá que isso comprova o amor da empresa pela liberdade de expressão —, por R$ 39,41, mais R$ 7,70 de frete, totalizando R$ 47,11; em nossa lojinha virtual, o mesmo livro, com frete, sai por R$ 54,90, uma diferença de R$ 7,79. (Se você for até uma livraria, onde se pode dar e receber “bom-dia”, pagará R$ 50). Calibã e a bruxa, de Silvia Federici, pela Amazon, custava R$ 44,01, mais R$ 8,49 de frete, totalizando R$ 52,50; em nosso site, o mesmo livro, com frete, sai por R$ 64,90, ou seja, R$ 7,40 mais caro. (Na livraria, fica R$ 60 e você leva na hora.)
São diferenças importantes — que, sabemos, pesam no orçamento cada vez mais apertado do trabalhador brasileiro, cada vez mais precarizado —, porém não tão expressivas como quer fazer crer o marketing da Amazon e o clichê dos comentários que defendem as práticas de mercado de Jeff Bezos por “facilitarem o acesso da população à leitura”. Para quem não dispõe de algoritmos de última geração nem de robôs que empacotam livros nem de contas correntes com bilhões de dólares e nem fará fortuna com a mineração dos dados pessoais da clientela, até que estamos bem. Esse “detalhe” é importante: os usos que uma pequena livraria on-line, o site de uma pequena editora e a Amazon fazem das informações que você fornece no momento da compra são completamente diferentes. Posso falar pela Editora Elefante, e o que fazemos é mandar newsletters com nossas promoções e novidades. Já as gigantes companhias de comércio eletrônico…
Mas voltemos ao preço, esse grande chamariz sobre o qual se constroem impérios do “pague menos, nos enriqueça mais”: a diferença entre os preços praticados pela Amazon e pela Elefante, apesar de relevante — como citei acima, com todas as ressalvas tecnológicas e econômicas —, é menor do que o custo de duas passagens de ônibus, trem ou metrô em São Paulo (e aqui fica nosso veemente protesto pelo valor absurdo do transporte público, que é um direito do cidadão). Entretanto, há diferenças ainda menores que as apontadas.
Anseios, de bell hooks, era vendido pela Amazon em agosto por R$ 44,90, com frete de R$ 13,60, o que dá R$ 58,60; no site da Elefante, custa R$ 59,90, com R$ 5 de frete, um preço total de R$ 64,90. Aqui a diferença é de R$ 6,30. E, surpresa: No espelho do terror, de Gabriel Zacarias, era anunciado pela Amazon por R$ 29,10, com frete de R$ 9,99: total de R$ 39,99. No site da Elefante, o mesmo livro pode ser comprado, com frete, por R$ 34,90 — R$ 5,09 mais barato! Por essa, nem eu esperava.
Essas comparações são aleatórias e perdem toda a utilidade quando fazemos uma pré-venda. Nesse caso, os livros comercializados em nosso site sempre saem mais barato que na Amazon. Isso porque costumamos aplicar um desconto de 10% a 20% sobre o preço de capa — às vezes um pouco mais, dependendo das nossas intenções com o livro em questão —, além de oferecer frete grátis. Assim, o valor final para o leitor cai sensivelmente. Isso lança por terra, pelo menos quando falamos da Editora Elefante, a imagem de que a Amazon é imbatível nos preços.
Geralmente, abrimos a pré-venda de um título quando falta cerca de um ou dois meses para que ele seja impresso. É uma maneira de antecipar recursos financeiros para a remuneração de todo o trabalho necessário à produção do livro: desde adiantamento de direitos autorais e tradução (quando se trata de obras estrangeiras) até a gráfica, passando por preparação de texto, revisão, projeto gráfico, capa e diagramação.
A pré-venda é uma relação de confiança entre leitor e editora. O leitor paga adiantado, confiando que a editora entregará o livro na data prevista (mesmo que às vezes haja atrasos devido ao excesso de tarefas por aqui, desculpem). Em agradecimento pelos recursos que receberá antecipadamente — o que é uma bela ajuda econômica para quem nunca contou com investidores, como nós —, a editora oferece desconto e frete grátis. Mais do que uma simples ação de marketing ou fluxo de caixa, a pré-venda reduz o preço do livro — facilitando, pois, seu acesso — ao mesmo tempo que estreita os laços entre essas duas pontas do mercado editorial: leitor e editora.
A pré-venda também é importante para que a editora meça o interesse que um livro pode ter junto aos leitores e, assim, calcule de maneira mais acertada o tamanho da tiragem de um título. Publicar livros é assumir riscos. Quando não foram fundadas como passatempo cultural de milionários ou de seus herdeiros — o que costuma ocorrer com certa frequência no Brasil —, as editoras pequenas normalmente gozam de escassa autonomia financeira. Uma aposta errada pode ser fatal. A pré-venda ajuda a tomar a temperatura da receptividade do livro e, assim, reduzir as chances de que um lançamento encalhe olimpicamente, comprometendo a existência da empresa.
Um último argumento contra os preços supostamente imbatíveis de Jeff Bezos: quando reunimos títulos semelhantes de nosso catálogo em combos promocionais, e geralmente temos algum no site, nossos preços também são menores — muito menores — do que os praticados pela Amazon.
Mas, claro, o xis da questão não é o preço. Se, depois de ler este artigo, algum gerente da Amazon quiser reduzir ainda mais o valor de venda dos livros da Elefante (enquanto os possua em estoque, porque, como explicarei mais adiante, estamos trabalhando para que a empresa não consiga mais vendê-los), ele o fará tranquilamente, quebrando boa parte dos argumentos que desfiei acima, sem se preocupar em colocar em risco suas finanças: os sessenta e poucos títulos do catálogo de uma pequena editora brasileira são irrelevantes no balancete dessa gigante internacional, menos do que um fragmento do mais ínfimo grãozinho de areia na conta bancária do colosso varejista de Jeff Bezos.
Para os cidadãos com um orçamento pessoal que o permita, consumir — assim como todas as ações que tomamos na vida em sociedade — é um ato político. Trata-se de escolher a quem apoiamos com os poucos recursos financeiros de que dispomos. Mal comparando, não é isso que os governos fazem ao assumir o Estado? Uns destinam mais verbas a saúde e educação; outros tiram dinheiro de hospitais e escolas, e os alocam em presídios; outros preferem aumentar o orçamento das Forças Armadas e reduzir os programas sociais, enquanto jamais cogitam a possibilidade de interromper o pagamento dos juros da dívida aos bancos.
Uma vez que estamos presos no sistema capitalista, aparentemente sem saída no curto, médio ou longo prazo, nós, pessoas comuns, trabalhadoras e trabalhadores (em uma escala infinitamente menor e, claro, sem dispor dos instrumentos tributários e monetários ao alcance do poder público), podemos (sim, quem tiver condições mínimas para isso, claro) politizar nossas compras em todas as direções: do arroz ao sapato, da geladeira à cadeira, das férias ao livro — ainda mais em se tratando de livros políticos, como os que publicamos. Onde comprar? Por quê? Quem produz? Como? Com quais materiais? Provenientes de onde? Qual é a qualidade do trabalho envolvido na produção? Como se realiza a entrega? E várias outras questões.
Olhar apenas para o preço despolitiza a compra, pois desconsidera as condições sob as quais determinado produto ou serviço é fabricado e vendido ou oferecido. Quero acreditar que, hoje em dia, todo mundo se recusa a consumir bens produzidos por pessoas (em geral, migrantes) em situação de trabalho análoga à escravidão, mesmo que o preço seja, por razões óbvias, muito mais baixo.
Por que, então, comprar pela Amazon? Não, não tenho notícias de que Jeff Bezos ou seus representantes, direta ou indiretamente, escravizem funcionários — ou melhor, “colaboradores”. Por outro lado, os relatos sobre a precarização do trabalho nos galpões da empresa pululam na internet, em reportagens e artigos publicados por meios de comunicação sérios de vários países, sobretudo dos Estados Unidos, onde ficam os quartéis generais da companhia.
Isso sem mencionar o imperativo da pressa. Pra que tanta apologia à velocidade? Sim, é frustrante quando um livro comprado pela internet demora a chegar — ou, pior, quando se perde pelo caminho. Mas precisamos entender melhor o que consideramos uma “entrega rápida” e por que valorizamos tanto essa “eficiência”. Também é preciso dizer que há diferentes conceitos de rapidez e que cada um tem um preço, que não é apenas financeiro, mas também físico e emocional, e que recai sobre as pessoas que trabalham fazendo as entregas. Elas podem, por exemplo, estar sendo terrivelmente pressionadas por um algoritmo que avalia de maneira draconiana a prestação do serviço, sem querer saber se houve imprevistos no percurso. Isso sem falar na total desproteção trabalhista e social desses entregadores. O filme Você não estava aqui, de Ken Loach, lançado em 2019, encena muito bem o que estamos querendo dizer.
É um clássico da “gestão” econômica eficiente reduzir os custos de produção para aumentar os lucros. Qualquer pessoa sabe disso e é capaz de fazê-lo, mas, a menos que já tenha desistido de qualquer princípio de humanidade e abraçado o cada-um-por-si, haverá de convir que potencializar rendimentos à custa do bem-estar alheio é altamente condenável. Ainda mais se quem está ganhando é o homem mais rico do mundo, com uma fortuna maior que o PIB nominal de mais de 150 países, capaz de ver seu patrimônio crescer treze bilhões de dólares em um único dia — claro, são ações, números em uma tela de computador, mas não é isso que “vale” na economia atual?
Novamente, uma questão política. Haverá quem aplauda esse executivo de enorme sucesso, grande visionário, forte candidato a se tornar o primeiro trilionário da história da humanidade. Haverá quem sinta náuseas ao ler sobre sua obscena riqueza. Haverá quem sonhe ser como esse senhor, rolar em montanhas de dinheiro, acender charutos em notas de cem. E haverá quem deseje intensamente vê-lo condenado pelo tribunal do povo quando a improvável revolução chegar — outro dia, alguns manifestantes colocaram uma guilhotina de mentirinha em frente à sua casa.
Contudo, não quero reduzir a discussão sobre a Amazon a uma questão de consumo consciente e responsável. A partir do momento em que passa a concentrar tamanho poder, Jeff Bezos e sua constelação de empresas — Washington Post (mídia), Amazon Web Services (inteligência/informática), Amazon Prime Video (audiovisual), Blue Origin (aeroespacial), Whole Foods (alimentos) etc. — passam a ser um problema político, social e econômico que só pode ser tratado de maneira sistêmica.
Em vários momentos, escrevendo este texto, me deu vergonha imaginar que alguém pudesse pensar que estou propondo que a Amazon seja combatida pela consciência de cada consumidor. Não se trata disso. Estou convicto de que Jeff Bezos — e, consequentemente, a Amazon — deve ser detido. Em tempos de crise climática, pessoas que pensam como ele, gozam de tamanho poder e influência e defendem, por exemplo, que os seres humanos precisam colonizar outros planetas antes de esgotar os recursos da Terra, porque assim a economia não precisará parar de crescer — conforme foi publicado em um perfil do bilionário na revista piauí —, são um perigo notório para a humanidade.
Entretanto, não estou escrevendo este texto para defender a regulação da Amazon — até porque, quem a faria, os Estados, cuja institucionalidade foi construída para defender os interesses privados dos mais ricos? Os parlamentos, povoados de lobistas que financiam campanhas e compram votos de deputados e senadores? Não faço a menor ideia de como resolver esse problema. Aqui, quero apenas falar sobre a Amazon enquanto “livraria” on-line. Daí o recurso aos argumentos sobre a compra como ato político. Como leitores, infelizmente, é o que temos, hoje, à mão.
Como editora, temos ainda a possibilidade de não fornecer livros à Amazon. Afinal, somos nós que produzimos o livro e podemos escolher onde queremos vendê-lo. Assim, preferimos inverter a equação: não somos nós que precisamos da Amazon, é a Amazon que precisa de nós. Sem o produto do nosso trabalho, ela não tem o que oferecer. No caso da Elefante, temos certeza de que quem deseja nossos livros e os considera relevantes irá comprá-lo onde quer que ele esteja sendo comercializado, desde que se ofereçam condições de acesso, sobretudo às pessoas que vivem em cidades mais distantes dos grandes centros, desprovidas de livrarias e serviços expressos de entrega — daí a enorme importância dos Correios, tão combalido, tão sucateado, tão atacado, mas tão essencial a um país com as dimensões do Brasil, porque chega em praticamente todos os cantos desta terra.
No começo de agosto, a Amazon procurou a Editora Elefante, por e-mail, manifestando interesse em estabelecer uma relação direta para a comercialização de nossos livros; educadamente, rechaçamos a proposta. Fomos perguntados sobre as razões da recusa; dissemos que responderíamos oportunamente, com a publicação de um texto (este aqui). Dias antes de receber a mensagem da “maior loja de livros do Brasil, e um dos maiores sites de e-commerce do mundo”, como a gerente de contas apresentou a empresa, havíamos iniciado conversas com as distribuidoras com as quais trabalhamos, e por meio das quais a Amazon vinha tendo acesso a nossos títulos. Pedimos que deixassem de fornecer ao(s) CNPJ(s) da gigante varejista. E estamos sendo atendidos.
A cadeia de produção do livro é longa e tem uma grande capacidade de distribuir renda. Sem me referir à produção de papel, que é oligopolizada por empresas gigantescas e atrelada ao mercado internacional, posso dizer que o livro passa por basicamente quatro etapas antes de chegar ao leitor: autor, editora, gráfica e livraria — ou cinco, se incluirmos a distribuidora como intermediária entre a editora e a livraria; ou seis ou sete, se levarmos em consideração o empacotamento e o envio, quando a compra se dá pela internet e esses serviços são prestados por empresas específicas.
Assim que um livro é vendido, seu preço respinga em toda essa cadeia, com dezenas de trabalhadores beneficiados. E, quanto menores são as empresas envolvidas em cada etapa da cadeia, menor será o índice de automação dos processos e maior o número de pessoas remuneradas por essa venda. Com um detalhe: vender livros não é como vender outros produtos. Quem trabalha em pequenos estabelecimentos dedicados ao livro tende a gostar muito do que faz e, geralmente, não estaria igualmente feliz fazendo qualquer outra coisa. Eu, ao menos, não estaria, e sei de colegas que também não.
Há certo romantismo no mundo dos livros, e não devemos sentir vergonha de nutrir afeto por essas folhas encadernadas repletas de letras ou ilustrações que nos levam para longe e, às vezes, mudam nossa vida. Por mais brega ou hipócrita que isso possa soar a quem enxerga o livro apenas como uma commodity e acredita na ideia tão deprimente de que “livro bom é livro que vende” — o que, infelizmente, não é exclusividade da Amazon —, esse romantismo precisa ser lembrado e considerado em qualquer discussão sobre o mercado editorial no Brasil e no mundo.
Claro que o livro é um produto, mas não é apenas um produto. É uma ideia, um portal, uma possibilidade, um alento — às vezes, uma tremenda perda de tempo. Muita gente já escreveu maravilhosamente sobre isso; quero apenas sublinhar que é da milenar cultura livresca que nasce a brutal diferença, social e economicamente falando, entre comprar um livro na Amazon e no site de uma pequena editora — e, mais ainda, incomparavelmente, em uma livraria de bairro.
Existe um nível de cumplicidade entre o livreiro e o leitor que só pode se estabelecer entre as prateleiras cheias de livros de uma pequena livraria ou sebo. Olhares, gestos, conversas; dicas que um dá ao outro; e tantas coisas mais… Eu, como editor, já traduzi e publiquei um livro que só fiquei conhecendo após receber a recomendação de um amigo livreiro. Dentro de uma pequena livraria, portas se abrem — ou, como esse amigo livreiro prefere dizer, conexões se estabelecem. Na internet, mesmo em sites de editoras independentes, isso só se dá por e-mail ou WhatsApp — ou seja, não acontece.
Na Amazon e nas “livrarias” on-line que competem apenas pelo preço e pela rapidez na entrega, essa relação é, além de impossível, impensável, com um agravante: tais lojas virtuais se apropriam de todo o trabalho de editoras, livreiros, leitores, professores, jornalistas e formadores de opinião (ou influenciadores digitais) para dar a conhecer um livro. Fala-se do livro, resenha-se o livro, fotografa-se, divulga-se, recomenda-se, critica-se. Surge o interesse. Ao pesquisar onde a obra pode ser comprada, dá um Google, e os algoritmos sequestram a atividade humana (ainda que feita pelas redes) da conversa, da sedução, da publicidade — no sentido mais nobre do termo.
As livrarias de bairro são a redenção do mercado editorial? Infelizmente, por enquanto, não. O setor livreiro nacional ainda padece de pouco profissionalismo e, às vezes, falta de seriedade. A cena de uma editora tomando calote de livrarias — das grandes, como Cultura e Saraiva, mas também das pequenas — é mais comum do que deveria. Com a Elefante, acontece com muita frequência. Nesses casos, a gente conversa, negocia, insiste, briga; quando é possível, damos mais prazo, dividimos os acertos em mais vezes — o que está longe do ideal. Enquanto isso, de acordo com relatos de colegas editores que trabalham diretamente com a Amazon, Jeff Bezos paga em dia e, em vez de fazer consignação (pegar o livro “emprestado”, vender, informar que vendeu e, só então, pagar, num espaço de aproximadamente noventa dias), compra.
Sabemos das tremendas dificuldades que uma pequena livraria enfrenta no Brasil e não queremos comparar a estrutura de um pequeno estabelecimento de bairro com a da Amazon. Também sabemos que pouquíssimas cidades brasileiras contam com livrarias. Mas precisamos estabelecer uma relação mais firme de confiança e compromisso entre pequenas editoras e pequenas livrarias, se quisermos continuar existindo — ou se quisermos continuar existindo sem nos tornarmos reféns da Amazon, que está em franca expansão no Brasil, muito provavelmente devido ao fechamento de mais unidades da Saraiva e da Cultura — as duas grandes redes nacionais que já vinham mal antes da covid-19 — e ao crescimento experimentado pela empresa durante as medidas de restrição de mobilidade provocadas pelo surto de coronavírus — o que se expressa pela multiplicação da fortuna de Jeff Bezos.
Em 2020, a Amazon, que já tinha um centro de distribuição em Cajamar (SP), inaugurou mais um em Cabo de Santo Agostinho (PE) e anunciou a abertura de outros três, em Brasília, Betim (MG) e Nova Santa Rita (RS).
Há quem diga que, com a cabeça povoada das ideias expostas neste texto e de algumas outras de mais complexa tradução verbal, estamos na contramão do mercado ou da história. Sim, você pode achar cafona, mas, para nós, só vale a pena estar no mercado (que, afinal, é praticamente inescapável) de mãos dadas — não com algoritmos nem com bilionários, mas com pessoas como nós, que gostam de sentir o cheiro de tinta quando abrem um livro novo, que se satisfazem ao passear demoradamente os olhos por prateleiras repletas de lombadas coloridas, que caminham pela rua, trocam ideia, contam da vida, tomam café, reclamam, elogiam, são chatas, são incríveis, são insuportáveis, surpreendem, decepcionam, enfim, que são seres humanos.
Para nós, publicar livros têm a ver com isso. Porque, como diz o escritor espanhol Jorge Carrión, “um livro é um livro é um livro”. E, como temos visto dia após dia, um algoritmo é um algoritmo é um algoritmo. Não pode haver nada mais distante de um livro do que um algoritmo projetado para enriquecer um bilionário.
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