sexta-feira, 12 de junho de 2020

ENTREVISTA COM O ESCRITOR CATARINENSE RAFAEL ZEN

Escritor, poeta, professor e sociólogo. Brusque/SC.




Atualmente, Rafael Zen atua em projetos paralelos que abrangem literatura, sociologia, debate e cultura. Nesse percurso, tem sido um dos nomes mais importantes na produção de atividades artísticas independentes na cidade.
É um dos co-fundadores do Coletivo Hiato, atua como professor no Centro Universitário de Brusque (UNIFEBE), organiza os encontros do grupo de estudos Café Com Texto e também é editor da coluna Zona Autônoma,
que vai ao ar todas as terças-feiras no site do jornal O Município.

Publicou os livros A Questão da Andorinha (poemas, 2011), Corpo Oral (contos, 2013) e Leito Invisível (poemas, 2015).

Conversamos com o autor para descobrir mais sobre o processo criativo da escrita e entender como o cenário local pode dar suporte e abraçar a sua comunidade de escritores.

Quando você passou a assumir-se como escritor? Descreva como aconteceu esse processo.

É engraçado porque a escrita foi acontecendo. Eu sempre fui incentivado à leitura, sempre li muito, desde que me entendo por sujeito. Eu sempre estive com livros nas mãos, quer dizer, sempre com universos de ideias pulsando a cada nova descoberta. Penso que todos os leitores assíduos têm isso em comum, nós somos colecionadores de personagens, caçamos metáforas, queremos sempre a próxima cena a ser descrita, o próximo poema que fará com que todos os outros se pareçam inúteis. Então, quando você chega nesse estágio, há sempre um novo desejo que surge — o desejo de criar os próprios textos, de também manusear cuidadosamente as palavras.

Escrever, para mim, é uma batalha travada entre nós mesmos e nossas ideias, no sentido do texto ser sempre o resultado do que estava perfeito e completo na minha cabeça, e do que eu consegui expressar a partir do meu conjunto de termos, do meu vocabulário, da minha engenhosidade. Como eu dizia, desde que me conheço por “sujeito” eu já era um “sujeito leitor”, até que aos treze ou quatorze anos comecei a colocar ideias no papel — quase que diariamente. E foi acontecendo, às vezes com intervalos infinitos — seis, sete meses sem escrever nada. Outras, com fluxos mais intensos. É normal respeitar esses períodos de seca, da mesma maneira que é preciso dar tempo para que a escrita se torne essencial.

Você publicou dois livros solo de poesia e um de contos. O que atualmente você mais gosta de escrever? Por que?

Recentemente mergulhei em pesquisas teóricas, até mesmo por organizar o Café com Texto e a coluna Zona Autônoma. Estava produzindo quase que exclusivamente textos sobre sociologia da cultura, mas eis que comecei a
ler João Cabral de Melo Neto, Wilson Torres Nanini, Adélia Prado, Angélica Freitas, Julio Cortázar… quase que me provando a impossibilidade desse vazio. Comecei a comprar e ler mais poesia, e acho que de tanto ler novos textos, conhecer novos repertórios, a escrita do poema foi acontecendo novamente. Um processo pode ser esse, se deixar contaminar por novas formas de produção, por novos modos de contar.

Existe um processo criativo diferente para cada gênero que você escreve? Fale um pouco sobre a matéria prima do escritor, a palavra.

Acho que existem processos diferentes para sair de cada seca. O que fazemos como escritores é isso: vamos nos dando desafios. Buscando dentro do nosso repertório — que está sempre em construção e por isso cada processo se difere, porque vem carregado de novos textos, de novos métodos — a gente vai moldando as ideias, deixando os pensamentos mais refinados, vai conseguindo criar formas de editar o material na cabeça, o processo literário se torna algo natural, uma ferramenta do processo de pensar.

Eu nunca penso no gênero, penso no texto, qual o seu propósito. Até mesmo porque é muito comum eu testar diferentes formatos para um mesmo texto, expandindo e contraindo as ideias, brincando com a forma da leitura, até se desapegar do texto inteiro. Para mim, alguém se torna escritor quando consegue encarar essa tela em branco como um espaço de experimentação. Não me importa tanto o resultado final, mas que eu instaure constantemente espaços de escrita no meu cotidiano. Na prática, o escritor é aquele que escreve.

Suas fontes de inspiração mudaram muito nos últimos anos? Quais os campos onde ela germina para você colher a escrita?

Todo escritor é um colecionador de referências. As fontes mudam porque as inspirações mudam. A cultura é um processo de acumulação e assimilação,
é quase como ir de um ponto a outro fazendo trinta paradas no meio desse caminho — muito similar ao que acontece online, por exemplo. Um filme cita um poema que resultado numa busca por um período literário que te faz assistir um curta que te apresenta uma nova palavra, uma nova fonte de busca. É impossível a literatura e a escrita não germinarem para todas as direções. Para escrever, não se pode ter preguiça de conhecer múltiplas expressões.

Qual sua visão sobre o cenário literário brusquense?

Com a Internet, não existe mais esse campo local, os leitores estarão onde estiverem. Resumindo, acho que o cenário local é tímido e descompromissado, existe-se um repúdio a que aconteçam cenas porque o improviso não existe na cidade.Acredito que falta produção de verdade, aqui. Não acredito que seja falta de pessoas interessante e com ideias interessantes na cabeça, as novas pessoas que conheço vão me mostrando que pessoas interessantes existem aos montes. Mas se produz muito pouco, se socializa muito pouco essa informação. A escrita serve para isso, para que se forme uma corrente de leitores e ouvintes. Sem escrita e sem performance não há cena. Novamente, faltam zonas autônomas temporárias. É preciso que se perca o medo da contaminação poética.

A publicação de um livro é um divisor de águas para quem escreve? Ou é possível manter-se em produção sólida apenas engavetando textos e publicando de maneira informal?

Acredito ser possível, com certeza. Mas acho uma pena. Pensar um livro é treinar um outro estágio, diferente desse primeiro onde a escrita vem descompromissada. Lapidar um livro é pensar o texto como uma forma de contato. É divisor de águas porque faz com que o autor se torne responsável por produto cultural. Mas essa publicação pode ser online, por exemplo. Pode ser tanto um fanzine em PDF quanto uma coletânea de poemas impresso em capa dura com mais de duzentas páginas. Não importa o tamanho, importa é pensar nesse todo como algo que afetará pessoas. Que criará afetos mediante a palavra. É para isso que escrevemos, para criar laços — independente do tamanho das comunidades que queremos atingir, seja um grupo fechado de cinco amigos ou publicar em uma grande editora.

Recentemente você tem publicado textos sobre a Sociologia da Cultura e vem organizando e se apresentando em eventos de debates. Fale um pouco sobre essa produção paralela mais voltada para a área acadêmica.

A área acadêmica me encanta porque me permite sair da esfera da ficção e continuar escrevendo na esfera do real. Apesar de compreender que esse real também é uma narrativa proposta, a sociologia e a filosofia permitem que o escritor pense o campo social de formas mais imaginativas. Meus últimos textos no Zona Autônoma, bem como meus últimos artigos publicados, possuem essa característica de expandir a criatividade para se pensar o campo das relações sociais. E é no Café com Texto que tive o privilégio de encontrar mais pessoas, em Brusque, que querem debater o mundo. Saem boas reflexões desse grupo, me alimentam em outra área de interesse.

Já foi anunciado que seu novo livro de poemas, intitulado “Ficção, 3%”, será lançado no em 2019. O que você pode nos contar sobre ele?

Acredito perseguirem novos temas dentro da minha poesia. Estão impregnados de Foucault, Hakim Bey, de pensadores das áreas da sociologia, dos estudos identitários, da poesia e da arte ativista. Em “Questão da Andorinha” eu era um escritor que tinha descoberto micropoemas e queria testá-los no papel, como um livro que se manuseia. “Corpo Oral” — tanto o livro quanto a peça — se basearam em trajetos que eu fazia de ônibus e as pessoas que eu ouvia nesses caminhos, são furtos que fiz de outras bocas. O “Leito Invisível” é a tentativa de um livro monotemático, tenta rasgar a vida íntima de um casal de personagens. Agora, são textos mais esparsos. Propõem mais visões, toda reflexão é possível, é um novo processo de inspiração, possuem um novo objetivo dentro da poesia crítica.

Para finalizar, gostaríamos que você deixasse algumas considerações para os futuros escritores e todos aqueles que, de alguma forma, exercitam a escrita dentro da nossa comunidade.

Venham para o Incorporação da Escrita e experimentem novos processos. Vamos nos encontrar para escrever, para despertar novos textos, para movimentar de novo a cena. Exercitem a escrita, mas também os laços.


https://medium.com/@underlinestd/entrevista-rafael-zen-1b419aa95e6c

quinta-feira, 11 de junho de 2020

ENTREVISTA COM O ESCRITOR CATARINENSE SAULO ADAMI

Entrevista com Saulo Adami, autor do livro: “Homem Não Entende Nada! Arquivos Secretos do Planeta dos Macacos”
Por

Em mais uma entrevista exclusiva para o “Devo Tudo ao Cinema”, converso com o amigo Saulo Adami, com quem compartilho a paixão pela franquia “O Planeta dos Macacos”. Ele está lançando o livro: “Homem Não Entende Nada! Arquivos Secretos do Planeta dos Macacos”, que reúne os conteúdos de seus três livros anteriores sobre o tema, incluindo mais de 200 páginas com informações inéditas.

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Saulo no lançamento do seu livro nas Livrarias Curitiba (PR).
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Fotografia autografada pela atriz Kim Hunter.
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 Octavio Caruso
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O – Saulo, você dedicou quase quarenta anos em pesquisas, não se trata apenas de um carinho pelo legado de Pierre Boule, imagino que haja uma relação que vai além do garimpo de um pesquisador, como o livro e os filmes te impactaram emocionalmente, como foi o seu primeiro encontro com eles? Isso tem relação direta com a forma como enxergo o cinema, como uma maneira de decodificar a vida. O que essas obras significam pra você?

S – “O Planeta dos Macacos” é meu projeto de arqueologia cinematográfica vitalício. Há 40 anos frequento a caverna descoberta pelo Dr. Cornelius. Escavo em busca de vestígios do passado e provas de que este universo continua vivo no presente desde 1975, quando eu tinha 10 anos de idade. A princípio, como um menino curioso para entender o que seus atores favoritos (Roddy McDowall, Charlton Heston e Kim Hunter, não necessariamente nesta ordem!), seu diretor favorito (Franklin J. Schaffner) e seu músico favorito (Jerry Goldsmith) estavam fazendo juntos em um mesmo filme. Depois, como fã do filme que me causou grande impacto, não apenas pela trama (a Terra de ponta-cabeça), mas por sua maquiagem, cenário, figurino… Que tipo de planeta era aquele? Quem teve a ideia de criar sua ambientação, quem escreveu o roteiro…? Sempre assisti este filme com o olhar de quem quer aprender mais alguma coisa, seja através das tiradas filosóficas ou através do olhar de um escavador de informações. Quem são os extras que aparecem naquela cena arriscada? Charlton Heston estava ali ou foi substituído por seu dublê? Por quem foi criada e como era aplicada a maquiagem dos macacos? Estes filmes – e seus derivados – são minha própria vida de escritor, pesquisador e fã. Não dá para separar um do outro. Nem quero!

O – Você se correspondeu durante muitos anos com a atriz Kim Hunter, eterna e querida Dra. Zira, minha personagem favorita na franquia. Como era pra ela ter um escritor brasileiro, após tantos anos, valorizando esse legado? Ela demonstrava surpresa pelo encantamento dos brasileiros com os filmes? Discorra sobre essa experiência.

S – Kim Hunter foi uma bênção na minha vida. Um privilégio conhecer – embora apenas por correspondências, de 1997 até sua morte, em 2001 – e entrevistar minha atriz preferida. Consegui seu endereço via internet, e enviei para sua casa, em New York City, um exemplar do meu livro, pedindo que me enviasse em troca, se possível, uma carta, uma fotografia autografada, para que eu pudesse saber se ela realmente o havia recebido. Algumas semanas depois, recebi um envelope com quatro fotografias autografadas. Nada de carta, nem bilhete. Imagine!” Receber em casa fotografias autografadas por sua atriz preferida, vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante por “Uma Rua Chamada Pecado” (1951)! Eu também ganhei meu Oscar, naquele dia! Acredito que ela tenha se divertido bastante com a nossa “convivência postal”. Teve momentos em que se aborreceu porque, de tanto que gostava dela e do seu trabalho, enviei para sua casa itens como filmes, recortes de jornais… Em troca, recebi várias fotografias autografadas, respostas a diversas pequenas entrevistas para tirar dúvidas que eu ainda tinha sobre os filmes Apes. Nos divertimos trocando informações sobre o seu trabalho de bastidores em “O Planeta dos Macacos” (1968), “De Volta ao Planeta dos Macacos” (1970) e “Fuga do Planeta dos Macacos” (1971). Sempre amável, enviava cartões de Natal, e um dia mencionou ter assistido e gostado do filme “Central do Brasil” (1999), estrelado por Fernanda Montenegro, e que concorreu a dois Oscar: melhor filme estrangeiro e melhor atriz. Pouco antes de sua morte, recebi sua última carta. Ela falava sobre a perda do marido Bob Emmett, também ligado a cinema e teatro, e dos aborrecimentos que estava vivendo em função da sua morte. Recebeu e fez comentários sobre meu livro “O único humano bom é aquele que está morto!” e meu fãzine “Century City News” (1985-2000), que trouxe várias matérias e entrevistas com ela e outras personalidades ligadas a “O Planeta dos Macacos”. Logo após que suas cartas pararam de chegar, foi anunciada a morte de Kim Hunter. Mas, a Dra. Zira continua aqui, viva entre nós, assim como a memória de sua intérprete.

O – No livro, o astronauta voltava ao planeta Terra ao final, após várias aventuras. Já no filme, numa inteligente mudança no roteiro, descobre-se que aquele planeta dominado por macacos era a própria Terra, após os humanos a destruírem com suas guerras nucleares. Como você enxerga essa modificação, no que tange o aspecto da crítica social que foi potencializada na adaptação cinematográfica? Você acredita que essa mudança, simbolizada pela poderosa cena final do filme original, foi fundamental para o sucesso do filme e, por conseguinte, para que a indústria até hoje lucre com a ideia?

S – A cena da Estátua da Liberdade não existiria no filme “O Planeta dos Macacos” (1968) se o produtor Arthur P. Jacobs e o diretor Blake Edwards – cogitado para dirigir o filme para a Warner Brothers no início da década de 1960 – não tivessem saído para um cafezinho. Na lanchonete que eles frequentaram, havia na parede um pôster com a Estátua da Liberdade… Foi aí que tudo começou. Ou terminou! Eu gosto do livro do Pierre Boulle, mas prefiro o filme. Não conheço todas as obras do Boulle, mas sei que ele não acreditava que o livro pudesse vir a fazer tanto sucesso. Sabe aquelas histórias que um escritor escreve mais para se manter ocupado do que propriamente para se expressar? Pois é, acho que assim estava se sentindo o escritor, ele queria dizer umas “verdades” para a humanidade, e aproveitou para se divertir. Na minha opinião, conseguiu! Aliás, ele jamais acreditou que “La Planéte des Singes” (1963) pudesse ser transformado em filme. Tanto é verdade que ao vender os direitos de filmagem para Arthur P. Jacobs, Boulle deixou bem clara sua opinião: “Vocês jamais farão deste livro um filme. Ele é infilmável”. Ao que Jacobs deve ter respondido: “Pois então, me aguarde, senhor escritor, em breve terei notícias!”. O sucesso do filme, no entanto, é o resultado da soma de muitas coisas, desde o roteiro até a criação da maquiagem, desde a construção da cidade cenográfica até a ambientação, desde o desenho do figurino até a música, que é espetacular. Aliás, o filme foi indicado aos Oscar de melhor figurino (Morton Haack) e melhor música (Jerry Goldsmith). Não posso afirmar se o filme teria o mesmo sucesso, caso tivessem optado por filmar a história que Boulle escreveu. Mas, de qualquer modo, “O Planeta dos Macacos” estava predestinado ao sucesso ou não teria acontecido tudo o que aconteceu, e hoje não estaríamos aqui conversando sobre isso.

O – Por falar nisso, como você avalia os novos filmes? Em minha crítica para “A Origem”, saliento que não gostei do roteiro, dependente demais da auto-referência. E os novos são o reflexo dessa nova mentalidade mercadológica, onde os roteiros são escritos pensando no público que compra ingresso hoje, o adolescente. Na época dos originais, especialmente os três primeiros, o público-alvo era o adulto. Eu não imagino, por exemplo, uma sequência forte como a do assassinato de Zira e Cornelius em “A Fuga…”, naquele tom pesado, em um dos novos. Como você analisa, em comparação, os antigos e esses novos?

S – “Planeta dos Macacos: A Origem” não nasceu para ser um filme “Planeta dos Macacos”. Os roteiristas vinham guardando recortes sobre experiências com símios em laboratório havia um bom tempo. Cada notícia de jornal ou revista era recortada e guardada, enquanto buscavam um caminho para escrever o roteiro para cinema ou TV. Um dia, sem um “tema da vez”, abriram a gaveta e reencontraram os recortes, começando a desenvolver uma trama. E a trama “se transformou” em “Planeta dos Macacos: A Origem”. Quando visitaram a Twentieth Century-Fox Film Corporation, propuseram escrever o filme e receberam sinal verde para dar continuidade ao projeto, foram para casa e começaram a fazer homenagens – até em excesso, na minha opinião! – aos filmes da Ape Saga. De onde se conclui que a princípio não havia intenção de criar nenhuma nova série, apenas produzir “um novo filme”. O filme foi para as telas, a audiência e a bilheteria surpreenderam, e não parava de entrar dinheiro no caixa da Fox! Ah, isso deixa qualquer produtor inspirado! E começou tudo de novo: sequência requerida, roteiristas se estrebuchando em cima de ideias antigas e novas, público de todas as idades pedindo mais, produtos de merchandise subindo pelas prateleiras… “O Planeta dos Macacos” reviveu, para a alegria de todos nós, fãs e estudiosos. Mas, fazer comparações, não! A Ape Saga é a Ape Saga, ponto. As séries de TV são as séries de TV, ponto. O filme do Tim Burton é um filme de Tim Burton, ponto. A nova série do cinema é uma outra história! Hoje, atores não usam maquiagem de macacos, nem são vistos como “macacos” enquanto atuam. A maior parte das cenas são interpretadas diante de gigantescos fundos em azul ou verde… Hoje, nem Hollywood nem “O Planeta dos Macacos” é o mesmo. Não perco meu tempo fazendo comparações, nem tentando encaixar em uma mesma “cronologia histórica” a Ape Saga, as séries de TV e os demais filmes. Isso é coisa para quem tem pouca imaginação – ou para quem tem certeza de que conhece tudo a respeito de tudo.

S – Charlton Heston foi um dos atores da história do cinema que mais ganhou dinheiro com um mesmo filme. “O Planeta dos Macacos” deu a ele um cachê de US$ 250 mil, todas as suas despesas pagas durante o período de produção e mais 10% sobre a arrecadação. Sabe o que significa isso? O filme custou US$ 5,8 milhões e rendeu US$ 15 milhões nos Estados Unidos, US$ 30 milhões em toda a Terra, em 1968. Até final do século XX, rendeu US$ 100 milhões. É claro que nada mais interessava ao Heston quando o assunto era “O Planeta dos Macacos”, seu futuro estava garantido, nem queria participar da sequência “De Volta ao Planeta dos Macacos” (1970). Depois que concordou em estar no filme, defendeu a ideia da explosão da Terra. Mas, não contava com a criatividade do roteirista Paul Dehn, que criou as tramas de “Fuga do Planeta dos Macacos” (1971) e “Conquista do Planeta dos Macacos” (1972), para a alegria de Jacobs e dos executivos da Fox. Mas, não foi apenas Charlton Heston quem dificultou a vida de Jacobs e a sobrevivência dos macacos da Ape Saga. A Fox também jogou duro na questão orçamento: a cada filme, mais cortes de orçamento. Para se ter uma ideia, “A Batalha do Planeta dos Macacos” (1973) foi produzido com pouco mais de US$ 1,7 milhão.O – Tenho um carinho especial por “Fuga…” e “Conquista…”, talvez por terem sido os filmes na franquia que eu mais revia quando adolescente, gravados da televisão. Qual é sua análise desses filmes, levando em conta a dificuldade que os produtores tiveram de reverter aquele final apocalíptico do segundo, destruindo o sonho de Heston de enterrar pra sempre a franquia (rs)?

S – São várias histórias e memórias que compõem este mosaico. Quarenta anos é bastante tempo. Prefiro lembrar apenas os momentos mais emocionantes. Viajar a Los Angeles em 1998 e 1999 para conhecer Ron Harper, John Chambers, Booth Colman, Linda Harrison, Natalie Trundy, Bill Blake, Don Pedro Colley, Buck Kartalian, William Smith, Lee Delano; poder abraçar meu amigo e colaborador Jeff Krueger e ser hospedado em sua casa, em Anaheim, CA, e ir com ela e Natalie Trundy pesquisar os arquivos de Arthur P. Jacobs. Passar pela sessão de maquiagem pelas mãos de Bill Blake, usando figurinos originais de Roddy McDowall. Autografar meus livros sobre os bastidores e segredos destes filmes e séries de TV. Quarenta anos depois de ter escrito a primeira linha como resultado das minhas pesquisas, ainda despertar o interesse de jornalistas, fãs e estudiosos deste tema, responder às suas perguntas e colaborar com outras obras e projetos que visam preservar e divulgar a memória destas produções. E, ao final de tudo isso, poder olhar nos teus olhos e afirmar: “Estou apenas começando”!O – Compartilhe com meus leitores as situações mais interessantesertidas/emocionantes nesses 40 anos dedicados à pesquisa dos livros. Tem algum momento que você guarda como o mais especial?

O – Talvez eu consiga encontrar em você um colega defensor de “A Batalha…”, um encerramento de baixo orçamento, cheio de problemas compreensíveis, mas com alma, coerente ao que havia sido estabelecido nos filmes anteriores. Além de ter John Huston, vivendo o Legislador, o filme tem uma boa trilha sonora composta pelo Leonard Rosenman (lançada pelo selo FSM, lá fora). Você gosta do filme? Fique à vontade para defendê-lo.

S – Eu gosto das sequências de “O Planeta dos Macacos” (1968). Depois do original, meu favorito é “Conquista do Planeta dos Macacos”, e na minha opinião o mais fraco de todos é “A Batalha do Planeta dos Macacos”. O filme, na verdade, preparou terreno para o lançamento da série de TV “Planeta dos Macacos” (1974), onde, assim como em “A Batalha…”, os humanos falam, os macacos vivem mais primitivamente ainda, e tecnologia ainda é vista em cena. A trilha do Rosenman é ótima; aliás, a Ape Saga só teve boas trilhas. Este último episódio também tem o mérito de reunir um elenco de primeira, contando inclusive com John Huston, que topou fazer o Legislador para arrecadar uns dólares a mais para apostar nas corridas de cavalo.

O – Parafraseando o astronauta Taylor: “O homem, esta maravilha do universo, este glorioso paradoxo que me enviou às estrelas, continua guerreando contra seus irmãos? Continua deixando os filhos de seus vizinhos perecerem pela fome?”. A profundidade desse trecho do filme original comprova a força filosófica inerente ao projeto. Claro que a imagem dos macacos falantes em cavalos ajudou na “Macacomania” que tomou de assalto o mundo, inclusive o Brasil (programas como “Planeta dos Homens”, por exemplo), mas, pra você, qual foi o elemento essencial no filme original que cativou o público? E, complementando, analisando a sociedade de consumo tão menos corajosa de hoje (simbolizada pelos roteiros mais infantilizados dos novos), o que você acha que fez com que involuíssemos enquanto cinéfilos?

S – Praticamente todas as frases célebres dos filmes da Ape Saga foram citadas nesta entrevista. Mas, temos outras. Dezenas. “Era para isso que o homem queria petróleo, para matar peixe?”, pergunta a Dra. Zira (Kim Hunter) ao Cornelius (Roddy McDowall) em “Fuga do Planeta dos Macacos”. “Nós não matamos nossos inimigos, fazemos com que nossos inimigos se matem uns aos outros”, diz o mutante Negro em “De Volta ao Planeta dos Macacos” (1970), botando Taylor (Charlton Heston) e Brent (James Franciscus) para lutar. “O homem não é capaz de nada além da destruição!”, disse o Dr. Zaius (Maurice Evans), antes de Taylor detonar a bomba atômica. A Ape Saga colocou em cena personagens símios que falam e agem como seres humanos, somos nós diante do espelho. Este foi o pulo do gato – ou melhor, o golpe do macaco! – dos filmes, e de certa forma foi levado para todos os outros formatos nos quais a ideia original de Pierre Boulle foram transformados: filmes, séries de TV, histórias em quadrinhos, outros livros… Sim, os roteiros de Rod Serling, Michael Wilson e Paul Dehn são muito melhores do que os atuais. Se as tramas de hoje são inferiores é porque não existe tanta gente talentosa quanto o Oscar nos quer fazer acreditar – ou então os novos roteiristas da franquia não são tão inventivos quanto os do passado o eram. Talvez por isso tenhamos tantos roteiros fazendo “homenagem” ao invés de contar “uma história nova”.

S – É um filme de Tim Burton: sombrio, pesado de humor duvidoso. Roteiro fraco, infantil e confuso. A maior bobagem que já vi na tela do cinema foi a estátua de Abraham Lincoln como a cara do general Thade. Um ator sem carisma no papel do astronauta sem destaque, sem uma frase marcante em quase duas horas de filme. Um maquiador presunçoso que transformou a personagem Ari em uma caricatura de Michael Jackson. Um ponto forte? Dois pontos, então: 1) ter arrecadado quatro vezes o que custou; 2) ter trazido de volta as discussões em torno do futuro da franquia.O – O que você achou da versão feita por Tim Burton? Fique à vontade pra analisar os pontos fortes e fracos da adaptação.

O – Saulo, por gentileza, deixe uma mensagem final para meus leitores, fãs da franquia como nós. E fique à vontade para divulgar tudo relacionado ao livro.

S – É muito bom saber que há outras pessoas interessadas por este tema que me fascina há 40 anos. Conhecer o interesse de outras pessoas por uma série da qual a gente gosta é um estímulo para que continuemos em frente. Que continuemos nos reunindo nas sessões de autógrafos, nas salas de cinema, nos fãs clubes, na internet – hoje o grande ponto de encontro de todas as tribos. Gostaria que todos tivessem acesso ao livro “Homem não entende nada! Arquivos secretos do Planeta dos Macacos” (Editora Estronho, 2015), que em suas 612 páginas comporta 40 anos de pesquisas, uma declaração de amor aos filmes e profissionais que fazem parte da nossa vida há tanto tempo, e os quais – apesar de anônimos ou desconhecidos – nos parecem tão familiares. E fiquem atentos pois teremos muito mais boas-novas em um curto espaço de tempo. E o melhor: sem precisar sair da Terra! Muito obrigado!


https://www.devotudoaocinema.com.br/2016/03/entrevista-com-saulo-adami-autor-do.html


A ÚLTIMA ENTREVISTA DE GUIMARÃES ROSA

Uma preciosidade histórica da língua portuguesa: a entrevista realizada pelo escritor e jornalista português Arnaldo Saraiva, em 24 de novembro de 1966. Guimarães Rosa morreria menos de um ano depois de tê-la concedido




 

Eis o homem. O homem que em menos de 20 anos, com sua prosa, seu estilo, sua literatura — sem os favores profissionais da medicina, que pode dar saúde mas ainda não deu gênio (cf. alguns prêmios Nobel), conquistou o Brasil, Portugal, a Alemanha, a Itália, os Estados Unidos, o mundo, não?

Repara no corpo: mau grado as ligeiras ameaças de obesidade, parece atleta, cavaleiro que foi, ou de bandeirante, que da língua é. Vê como está sobriamente elegante, distinto, sorridente, calmo, aristocrata, como convém a um embaixador (ou não estivéssemos num salão do Itamarati). Mas nada da pose ou dos gestos artificiais com que outros tentam iludir a mediocridade. Quem esperou quase quarenta anos para publicar o primeiro livro, ou quem avançou sozinho pelos grandes sertões da língua, não precisa ter pressa nem pedir emprestado um corpo, uma casaca, máscaras.

Lá está o lacinho (ou gravata-borboleta, meu chapa?) simetricamente impecável, fazendo pendant com os óculos claros, tão claros que ainda esclarecem mais os olhos sempre inquiridores, atentos. E é curioso como um mineiro de Cordisburgo, a dois passos (brasileiros) da Ita­­bira de Drum­mond, gosta, ao contrário deste (à primeira vista), de falar, de con­tar, de ser ouvido. Até nisso parece grande o seu amor à língua. Mal me sentei, já ele me começou a falar de Portugal e de escritores portugueses…

Guimarães Rosa — Estive em Portugal três vezes. Na primeira, em 1938, passei lá apenas um dia; ia a caminho da Alemanha. Na segunda, em 1941, passei lá quinze dias, em cumprimento de uma missão diplomática que me fora confiada em Ham­­burgo. Na terceira, em 1942, passei um mês, pois estava já de regresso ao Brasil, por causa da guerra.

Durante essas estadas, travou relações ou conhecimentos com alguns escritores?

Guimarães Rosa — Não. Até porque eu ainda não era “escritor” (“Sagarana”, com efeito, só foi publicado em 1946) e o que me interessava mais era contatar com a gente do povo, entre a quais fiz algumas amizades. Gosto mui­to do português, sobretudo da sua integridade afetiva. O brasileiro também é gente muito boa, mas é mais superficial, é mais areia, enquanto o português é mais pedra. Eu tenho ainda uma costela portuguesa. Minha família do lado Gui­marães é de Trás-os-Montes. Em Minas o que se vê mais é a casa minhota, mas na região em que eu nasci havia uma “ilha” transmontana.

Mas não chegou a conhecer Aquilino?

Guimarães Rosa — Conheci Aquilino (Aquilino Ribeiro), mas acidentalmente. Eu entrei numa livraria, não sei qual, do Chiado (presumo que a Bertrand) e, quando pedi al­guns livros dele, o empregado per­guntou-me se eu queria co­nhecê-lo, pois estava ali mesmo. Respondi que sim, e desse modo obtive dois ou três autógrafos de Aquilino, com quem conversei alguns instantes. Voltei a estar com ele, mais tarde, num jantar que lhe foi oferecido enquanto de sua vinda ao Brasil. Mas ele, naturalmente, não se recordava de mim (porque eu não me apresentara como escritor), e eu também não lhe falei do assunto.

Não sabe que, justamente numa crônica motivada pela sua ida ao Brasil, Aquilino colocou o seu nome, logo em 1952, ao lado dos de José Lins do Rego, Gilberto Freyre, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Jorge de Lima e Agripino Grieco, que, segundo ele, eram os “notáveis escritores e poetas” que estavam a “encostar a pena contra a lava” que ia no Brasil “sepultando prosódia e morfologia da língua-mater”? Eu creio mesmo que é essa uma das primeiras referências ao seu nome, em Portugal…

Guimarães Rosa — Não sabia dessa curiosa referência do Aquilino. Antes dessa, porém, há uma referência a mim numa publicação do Consulado do Porto, de 1947, feita por não sei quem. Sei de outra referência feita, anos depois, salvo erro, por um irmão de José Osório de Oliveira.

Voltando a Aquilino: acha que recebeu alguma influência dele? Já, pelo menos, um crítico, o mineiro Fábio Lucas, notou alguns “pontos de contato nada desprezáveis” entre a sua obra e a de Aquilino.

Guimarães Rosa — Eu gosto de Aquilino, sobretudo da “Aventura Maravilhosa”, mas não creio que dele tenha recebido alguma influência, a não ser na medida em que sou influenciado por tudo o que leio. A verdade é que antes de 1941 só conhecia de Aquilino um ou dois trechos, co­mo infelizmente ainda hoje sucede em relação à quase totalidade dos escritores portugueses vivos. E, como sabe, “Sagarana”, foi escrito em 1937.

Um garçom do Itamarati entra com um copo de água, e pergunta se precisa mais alguma coisa. Guimarães Rosa agradece e diz: Vá com Deus, como se fosse um beirão ou um transmontano. Mais uma razão, portanto, para eu prosseguir: Como encara ou explica o enorme prestígio de que goza nos meios intelectuais e universitários portugueses?

Guimarães Rosa — Em relação a mim, houve por aqui (no Brasil) muitos equívocos, que ainda hoje não desapareceram de todo e que, curiosamente, ao que parece, não houve em Por­tugal. Pensaram alguns que eu inventava palavras a meu bel-prazer ou que pretendia fazer simples erudição. Ora o que sucede é que eu me limitei a explorar as virtualidades da língua, tal como era falada e entendida em Minas, região que teve durante muitos anos ligação direta com Portugal, o que explica as suas tendências arcaizantes para lá do vocabulário muito concreto e reduzido. Talvez por isso que ainda hoje eu tenha verdadeira paixão pelos autores portugueses antigos. Uma das coisas que eu queria fazer era editar uma antologia de alguns deles (as antologias que existem não são feitas, como regra, segundo o gosto moderno), como Fernão Mendes Pinto, em quem ainda há tempos fui descobrir, com grande surpresa, uma palavra que uso no “Grande Sertão”: amouco. E vou dizer-lhe uma coisa que nunca disse a ninguém: o que mais me influenciou, talvez, o que me deu coragem para escrever foi a” História Trágico-Marítima” (coleção de relatos e notícias de naufrágios, acontecidos aos navegadores portugueses, reunidos por Ber­nardo Gomes de Brito e publicados em 1735). Já vê, por aqui, que as minhas “raízes” es­tão em Portugal e que, ao contrário do que possa parecer, não é grande a distância “linguística” que me se­para dos portugueses.

Eu penso até que na imediata e incondicional adesão portuguesa a Gui­marães Rosa há muito de transferência sublimada de uma frustração linguística nossa, coletiva, que vem pelo menos desde Eça. Mas não nos desviemos. Admira-me muito que não tenha citado ne­nhum livro de ca­valaria, nem ne­nhuma novela bu­cólica, pois pensava que deles e delas havia diversas ressonâncias na sua obra, sobretudo no “Gran­de Sertão: Veredas”…

Guimarães Rosa — Sim, li muitos livros de cavalaria quando era menino, e, por volta dos 14 anos, entusiasmei-me com Ber­nardim (Bernardim Ri­beiro), e depois até com Camilo. Ainda continuo a gostar de Ca­milo, mas quem releio permanentemente é Eça de Queiroz (quando tenho uma gripe, faz mesmo parte da convalescença ler “Os Maias”; este ano já reli quase todo “O Crime do Padre Amaro” e parte da “Ilustre Casa de Ramires”). Camilo, leio-o como quem vai visitar o avô; Eça, leio-o como quem vai visitar a amante. Quando fui a Portugal pela primeira vez, eu só queria comidas ecianas (que gostosura, aquele jantar da Quinta de Tormes). Aliás deixe-me que lhe diga que me torno muito materialista quando penso em Portugal; penso logo nos bons vinhos, nas excelentes comidas que há por lá. E talvez seja também por isso que se há um país a que eu gostaria de voltar é Portugal…

… que, naturalmente, o receberá de braços abertos, em festa. Mas permita-me ainda uma pergunta: como “enveredou” — e penso que a palavra se ajusta bem ao seu caso — pelo campo da “invenção linguística?

Guimarães Rosa — Quando escrevo, não pen­so na literatura: penso em capturar coisas vivas. Foi a necessidade de capturar coisas vivas, junta à minha repulsa física pelo lugar-comum (e o lugar-comum nunca se confunde com a simplicidade), que me levou à outra necessidade íntima de enriquecer e embelezar a língua, tornando-a mais plástica, mais flexível, mais viva. Daí que eu não tenha nenhum processo em relação à criação linguística: eu quero aproveitar tudo o que há de bom na língua portuguesa, seja do Brasil, seja de Portugal, de Angola ou Mo­çambique, e até de outras línguas: pela mesma razão, recorro tanto às esferas populares como às eruditas, tanto à cidade como ao campo. Se certas palavras belíssimas como “gramado”, “aloprar”, pertencem à gíria brasileira, ou como “malga”, “azinhaga”, “azenha” só correm em Por­tugal — será essa razão suficiente para que eu as não empregue, no devido contexto? Porque eu nunca substituo as palavras a esmo. Há muitas palavras que rejeito por inexpressivas, e isso é o que me leva a buscar ou a criar outras. E faço-o sem­pre com o maior respeito, e com alma. Respeito muito a língua. Escrever, para mim, é como um ato religioso. Tenho montes de cadernos com relações de palavras, de expressões. Acompanhei muitas boiadas, a cavalo, e levei sempre um
caderninho e um lápis preso ao bolso da camisa, para anotar tudo o que de bom fosse ouvido — até o cantar de pássaros. Talvez o meu trabalho seja um pouco arbitrário, mas se pegar, pegou. A verdade é que a tarefa que me impus não pode ser só realizada por mim.

Guimarães Rosa vai buscar uma fotografia para me mostrar onde levava o caderninho de notas, nas boiadas: vai buscar uma pasta com a correspondência com um seu tradutor norte-americano, para me mostrar as dúvidas e dificuldades deste, e o trabalho, a seriedade e a minúcia com que as vai resolvendo uma por uma (escrevendo, ele próprio, preciosas autoanálises estilísticas ou considerações filológicas). E, entretanto, vai-me fazendo outras confissões interessantes. Por exemplo:  “gosto das traduções que filtram. Da tradução italiana do Cor­po de Baile gosto mais do que do original.” Ou: “Estou cheio de coisas para escrever, mas o tempo é pouco, o trabalho é lento, lambido, e a saúde também não é muita.” Ou: “Não faço vida literária: como regra, saio daqui e vou para casa, onde trabalho até tarde.” Ou: “No próximo ano, vou publicar um livro ainda sem título, com 40 estórias” (que têm aparecido quinzenalmente, no jornal dos médicos “O Pulso”, onde frequentemente aparecem também cartas ou a atacá-lo ou a defendê-lo ferozmente). Ou ainda: “eu não gosto de dar, nem dou entrevistas. Tenho sempre a sensação de que não disse o que queria dizer, ou que disse mal o que disse, ou que criei maior confusão; e não estou assim tão seguro do que procuro e do que quero. Com você abri uma exceção…”.


Nota: Entrevista realizada pelo escritor e jornalista Arnaldo Saraiva, em 24 de novembro de 1966. Publicada no livro “Conversas com Escritores Brasileiros”, editora ECL em parceria com o Congresso Portugal-Brasil.


https://www.revistabula.com/383-a-ultima-entrevista-de-guimaraes-rosa/



ENTREVISTA COM O ESCRITOR CATARINENSE JOÃO CHIODINI

João Chiodini, autor de Os Abraços Perdidos, fala sobre os temas do seu romance e dá dicas para novos escritores.

O bate-papo desse Recorte Entrevista foi com João Chiodini, autor de “Os Abraços Perdidos”, pela Editora da Casa.

RECORTE LÍRICO – Você escreveu um livro em 2005 que não chegou a ser publicado. Quanto evoluiu linguisticamente e em termos dos temas propostos?
Chiodini – Sim, em 2005 escrevi um primeiro romance. Ele não foi publicado por ser um livro muito frágil, com muitas falhas de estrutura, personagens e narrativa. Eu tinha uma grande quantidade de personagens e diversos conflitos que, na época, eu não soube lidar muito bem. Porém, me serviu de aprendizado. Na escrita de Os Abraços Perdidos, antes de ter a história em si, eu sabia que elementos eu queria utilizar e quais erros eu não poderia repetir (se for para ter erros, que sejam novos. Risos…). E falo isso com relação a tudo: tema, personagens… Em Os Abraços Perdidos, houve um grande cuidado em deixar a narrativa bem seca, sempre. Cuidar para não haver rodeios enquanto Pedro relatava sua história e trabalhar os fatos sempre em tom de confissão. De 2005 até 2015 acabei publicando livros em outros gêneros que, de certa forma, colaboraram com meu aprendizado e amadurecimento para encarar a ficção longa novamente. 
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RL – O principal tema do livro é a relação entre pai e filho. Qual a principal motivação para explorar esse relacionamento familiar?
Chiodini – Como disse, antes de ter a história em si, eu já imaginava os elementos que eu queria utilizar na construção do livro. Um exemplo: Sempre manter um número limitado de personagens nas cenas e diálogos. Criar um protagonista e um antagonista que tivessem relações que não fossem lineares, onde pudesse colocar afeto e rejeição (vamos chamar assim) em cenas muito próximas umas das outras. Por fim, cheguei à relação de pai e filho, um tipo de situação que se encaixa muito bem nesses parâmetros e, além disso, sempre disso que ninguém passa imune por uma relação de pais e filhos. Em algum momento, por menor que este seja, o leitor vai, inevitavelmente, se colocar na história, no lugar de algum dos personagens. Talvez por semelhança, identificação, talvez por testemunhar um choque com a sua própria realidade.

RL – Falando um pouco sobre mercado editorial, qual a maior dificuldade para publicar no Brasil, principalmente atravessando um momento de recessão financeira, e quais dicas você deixa para os novos autores?
Chiodini – Não existe dificuldade para publicar. Hoje, a Amazon, pequenas editoras e impressão sob demanda possibilitam que qualquer pessoa transforme-se, do dia para a noite, em escritor. Arrisco a dizer que o cidadão não precisa nem saber escrever. Se for analfabeto, faz um monte de linhas num livro e vende o novo Jardim Secreto. Vai ser um autor de livro anti-stress. O Osho da Faber Castell. Ou, se for um Youtuber qualquer, com um tanto de seguidores, pede para alguém assistir seus vídeos e transcrever suas frases de maior impacto. Faz um livro de citações de Youtube. Essa facilidade toda cria uma oferta absurda de livros, para um país que não é leitor. Desse jeito, o João, o José e a Maria, que escrevem contos, poemas e romances, ficam perdidos no meio desse mar de livros e vão afundando, afundando, afundando.

E aqui eu começo a minha resposta para a sua pergunta, falando para o João, o José e para a Maria. Essas pessoas que, por alguma razão qualquer, querem/precisam escrever. E, tem uma coisa, depois que o João, o José e a Maria colocaram na cabeça que vão escrever, podemos falar qualquer coisa, isso não vai mudar a atitude deles. Eles não irão deixar de tentar. Então, vamos lá:

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Imagem: Reprodução/Editora da Casa
Dificuldade 1: Editora. No Brasil, João/José/Maria, como vocês devem saber, poucas são as editoras grandes, que investem em autores e fazem a chamada “compra de direitos autorais para publicação”. São muitos os escritores e poucos os leitores, e as editoras precisam faturar. “Ah, mas meu livro é muito bom. Sou um grande escritor.” Pode ser, João/José/Maria, mas acontece que demanda muito tempo ler um original e chegar a essa conclusão. Por isso, geralmente, o caminho é começar pelas pequenas editoras. Criar um público inicial e ser introduzido no mercado editorial, mas, não se iluda, geralmente isso acontece com vendas tímidas. Existem diversas editoras pequenas com projetos editoriais legais espalhadas pelo Brasil, com vários modelos de negócios que poderão ajudar nessa sua caminhada. Por mais fácil que seja a autopublicação, sempre aconselho um novo autor a buscar uma editora. Por menor que seja ela, vai dar um pouquinho mais de credibilidade para seu trabalho e auxiliar na sua publicação.

Dificuldade 2: Leitores. O universo de leitores é dividido em segmentos, de acordo com o gosto de cada um. Quem gosta de livro sobre a Segunda Guerra, vai sempre buscar aquele tipo de leitura antes de todas as outras… Biografia, história, empresariais, autoajuda, suspense, policiais… E por aí vai. Você precisa entender quem são os seus leitores e conhecer o universo que ele está inserido. Se você escrever poesia, seu público inicial pode ser formado por: outros poetas (15%) + pessoas que leem poesia (5%) + não leitores (80%). A quantidade depende de seu círculo de influência. Vamos supor que você fez um lançamento com 100 livros. Muito provavelmente, a sua venda será esta: 15 livros pros poetas da sua cidade. 5 para leitores gerais da livraria (super otimista esse número para poesia) e 80 para não leitores. Aqui, veja bem, considero não leitores os parentes, amigos e conhecidos do autor. Pessoas que ele arrastou para a livraria, que insistiu, que fez chantagem e que, no final das contas, foi a parcela que mais comprou e que, talvez, não leia o livro. E se você fosse a Kéfera? Ah, aí essa proporção aumentaria, mas a fórmula é mais ou menos a mesma: outros youtubers (15%) + pessoas que leem esse tipo de livro (5%) + não leitores (fãs da Kéfera, seguidores, conhecidos, sósias, crushs) (80%). Entende? A Kéfera não se tornou um best-seller por que todos os leitores do Brasil deixaram de comprar o João/José/Maria e sim por que ela tem uma capacidade gigantesca em atingir não leitores. [Considero não leitores pessoas que não compram livro regularmente e o fazem por um motivo específico. Exemplo: Lançamento do livro do filho.]
Ou seja, não adianta brigar pela falta de leitores. Cada um precisa achar uma maneira própria de atingir uma parcela (a maior possível de não leitores). E, se você for capaz de criar uma boa parcela de não leitores, você até pode ser interessante para as grandes editoras.
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O autor dá dicas para os escritores iniciantes. (Foto: Reprodução/Redes Sociais).
Dificuldade 3: Meio de comunicação efetiva. No intervalo da novela da Globo, não vemos propaganda de livros. Livros são “anunciados” em revistas de literatura, blog (de literatura), redes sociais (que nos círculos dos escritores e editoras só tem escritores e editoras e alguns poucos leitores) e canais de Youtube que falam sobre livro. “Literalmente”, uma bolha literária. Nesse meio, um jovem escritor até consegue espaço para falar de sua obra, pagando ou de graça mesmo, mas são tantos livros citados e ofertados que, nem com toda boa vontade do mundo, o “leitor perfeito”, que gosta de ler autores estreantes como o João/José/Maria, consegue ler todo mundo. É muito livro e falta grana para comprar todos os livros que lhe parecem interessantes. Basta assistir um Book Haul de algum Booktuber para ver a quantidade de livro por semana que chega. Acho que o caminho é, justamente, achar uma forma de comunicar e cativar pessoas de fora da bolha, que não recebem ofertas de livros o tempo inteiro. Aqui, tentar cativar e criar novos leitores não é apenas uma ideologia bonita de escritor. É malandragem para sobreviver, para vender um a mais. No meu caso, numa história de um pai alcoólatra, talvez valesse tentar um panfleto para frequentadores de AA: “Até onde o álcool pode destruir sua relação com seus filhos? Leia Os Abraços Perdidos.” Vai que funciona uma coisa dessas? Além de todos os canais do segmento, o novo autor deve tentar os canais de não literatura que esteja relacionado com o tema/assunto do livro. Sim, eu sei que muitos escritores irão dizer que é pedantismo, panfletagem e tal, mas a literatura não pode ser uma arte de terno e gravata. Não pode ser uma arte de gabinete, de cátedra. Ela tem que ir, sim, para a rua e atingir os inatingíveis. Quer um ato de rebeldia maior do que fazer um panfletinho rosinha com sapatinhos de bebê e vender para mamães um livro que conte a história de uma clínica clandestina de abortos? Enquanto os seus 80% de Não Leitores não falarem de você por aí, você terá que fazer por si mesmo.

Conselho 1: Ninguém vai roubar sua obra: Recebo muitos e-mails de novos autores com pedidos de ajuda para publicar, porém, muitos têm medo de mostrar seu livro para terceiros lerem e opinarem sem, primeiro, registrarem a obra. Não tenha medo de mostrar o original para outras pessoas. Dificilmente irá acontecer de alguém roubá-la de você. É bem mais provável que seu livro fique na gaveta do sujeito e nunca seja lido.

Conselho 2: Opiniões não podem formar inimigos. Outro ponto do jovem escritor é achar que, quando um editor ou leitor crítico faz apontamentos em seu texto, que este quer menosprezá-lo, ou mudar seu trabalho. Tem que aprender a aceitar sugestões e ouvir os conselhos dos mais experientes. Aqui, um ponto muito, muitíssimo importante: você pode dar seu original para qualquer pessoa ler, porém, para uma leitura crítica, busque a opinião de editores ou leitores regulares, pessoas que estão habituadas a ler. É muito comum ver um jovem escritor solicitando leitura do primo ou amigo, que sugere coisas, alterações e, no entanto, aquele foi o primeiro livro lido pelo primo ou amigo. Toda opinião é válida. Mas, leve (realmente) em consideração as colocações de quem entende do assunto.

Conselho 3: Cabeça dura, sempre. Muitas vezes será frustrante, desanimador, revoltante. Mas, nunca deixe de escrever. Tente evoluir a cada livro e continue, ano após ano. O tempo é uma grande peneira. Quem persiste e continua fazendo um trabalho sério vai acabar conquistando um espaço. Você deixa de ser um aventureiro e passa a ser alguém que tenta construir um diálogo com a literatura, de alguma forma.

CASA DA LITERATURA CATARINENSE

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