Nascido no Líbano em
1924, Salim Miguel chegou ao Brasil ainda criança. Depois de viver sua adolescência no município catarinense de Biguaçu, mudou-se para Florianópolis
onde, nas décadas de 1940 e 50, integrou o movimento modernista nas artes
catarinenses: o Grupo Sul. Juntamente com sua esposa, a também escritora Eglê
Malheiros, escreveu o roteiro do primeiro longa-metragem catarinense, o filme
“O Preço da Ilusão”. Em 1965, depois de ser preso pelo Regime Militar, mudou-se
para o Rio de Janeiro, onde editou a revista Ficção e trabalhou para a Editora
Bloch e de onde retornou em 1979. Jornalista renomado com passagem por diversos
jornais e revistas nacionais, Salim Miguel dirigiu também a editora da
Universidade Federal de Santa Catarina e a Fundação Cultural Franklin Cascaes.
Autor de 30 livros, entre contos, crônicas, romances, depoimentos e impressões
de leitura, dos quais se destacam: “A Morte do Tenente e Outras Mortes”, “A Voz
Submersa”, “Nur na Escuridão” (que recebeu o prêmio de melhor romance de 1999
pela Associação Paulista de Críticos de Arte, e o Prêmio Zaffari & Bourbon
da 9º Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo), “A Vida Breve de
Sezefredo das Neves, poeta” (indicado para o Prêmio Jabuti) e “Mare Nostrum”.
Doutor Honoris Causa
pela UFSC e reconhecido como intelectual do ano pela União Brasileira dos
Escritores e Folha de S. Paulo, recebendo o Troféu Juca Pato, Salim Miguel
recebeu o Sarau Eletrônico em seu apartamento, ao lado do campus da UFSC de
Florianópolis, onde concedeu o presente depoimento no mês de setembro de 2008 e
às vésperas de ver publicado seu mais novo romance, “Jornada com Rupert”.
Nesta entrevista o
escritor e jornalista conta sobre a parceria que estabeleceu com um livreiro
cego e que lhe oportunizou as primeiras leituras, ainda em Biguaçu, relembra
sua infância, a experiência com o Grupo Sul e os momentos difíceis por que
passou durante a Ditadura Militar brasileira e fala da sua história no
jornalismo, das suas aventuras literárias e da sua experiência como escritor.
(Entrevista: Viegas
Fernandes da Costa / Fotos: Darlan Jevaer Schmitt)
Gostaríamos de começar com a tua história de vida. Como
se deu a tua vinda para o Brasil e o teu primeiro contato com os livros?
Eu começaria com a
palavra árabe “Maktub”, que quer dizer “estava escrito”. Estava escrito que o
destino da minha família seria o Brasil. E quando nós saímos do Líbano,
estávamos sendo encaminhados para os Estados Unidos. Como a cota para libaneses
já estava esgotada, nós viemos fazer aquilo que ainda hoje se faz: ir ao México
e de lá, por meio de contrabando, entrar nos Estados Unidos. Quando chegamos em
Marselha, houve um imprevisto. A vista do meu pai estava com uma inflamação e
não pudemos continuar a viagem. Ficamos alguns dias em Marselha, o dinheiro
escasseava, os irmãos da minha mãe, meus tios que moravam nos Estados Unidos,
mandaram algum recurso, mas o primeiro navio que saía vinha para o Brasil.
Então meu pai disse assim: “eu tenho uma irmã morando no Rio de Janeiro e um
irmão no Norte” – que nunca foi localizado. Então o projeto era o seguinte.
“Vamos para o Rio de Janeiro, ficamos alguns dias com a minha irmã” – meu pai
dizendo – “e de lá retomamos o projeto para os Estados Unidos”. Foi aí que
entrou “maktub”. Quando chegamos aqui, em pouco tempo, meu pai disse para minha
mãe: “vamos ficar pelo menos alguns anos por aqui porque estou gostando deste
tal de Brasil”. E estes “poucos anos” duraram a vida toda. Ele nunca saiu do
Brasil, nem para voltar ao Líbano! Só que nós fomos parar em Magé, na casa de
minha tia, e lá ele fez o que fazem todos os imigrantes libaneses – não só
eles, mas também os sírios, os judeus, que começam mascateando – : ele começou
mascateando. Mas não estava dando certo. Então ele se lembrou que tinha uns
primos em Florianópolis. Veio para Florianópolis e aí “maktub” de novo! Uma
correspondência mal explicada, enquanto ele pensava em voltar para o Rio,
porque era tudo igual, fez com que a família chegasse em Florianópolis. Ficamos
uns dois, três meses aqui, e o primeiro lugar em que fomos morar foi em São
Pedro de Alcântara, primeiro núcleo de colonização alemã em Santa Catarina.
Ficamos lá um ano e pouco e fomos parar em Rachadel, outro núcleo de
colonização alemã. Depois fomos para Alto Biguaçu. Mas o resto da minha
infância e a minha adolescência passei em Biguaçu. Por isso digo que sou um
líbano-biguaçuense. Comecei a ser alfabetizado em árabe e em alemão, porque
tanto em São Pedro de Alcântara como em Rachadel não havia escola que ensinasse
em português. Mas quando cheguei em Biguaçu, entrei imediatamente no grupo
escolar, e nessa besteira de criança não quis mais estudar nem o alemão nem o
árabe. Meu pai dizia “aprende, continua estudando, um homem que sabe dois idiomas
vale por dois”. Ele tinha sido professor primário no Líbano. Eu me recusei a
estudar e hoje, a não ser alguns palavrões em alemão e árabe, não sei mais
nada.
Houve, nas comunidades onde vocês se instalaram, alguma
resistência ao fato de vocês serem libaneses, algum tipo de preconceito?
Em São Pedro de
Alcântara sim. Embora meu pai não tivesse nenhuma vocação para o comércio, acho
que – vendo hoje, à distância – os alemães tinham menos vocação do que ele.
Então ele estava tirando a freguesia dos comerciantes alemães. E um dia houve,
na missa de domingo, um padre que falou contra os alemães que estavam
preferindo comprar naquele turco do que com os alemães. De repente ninguém mais
comprava na venda do meu pai. A família foi obrigada a sair e fomos para Rachadel,
que é outro núcleo de colonização alemã. Mas lá já foi diferente. Tanto que meu
pai logo se tornou amigo de alguns alemães, e um deles passou a me ensinar o
alemão. Mas como lá também comercialmente não estava indo bem, fomos para Alto
Biguaçu, que hoje é o município de Antônio Carlos. Ali o núcleo alemão já era
muito rarefeito, mas lá também comercialmente não estava dando certo e meu pai
resolveu ir para Biguaçu, onde pelo menos havia algumas famílias descendentes
de libaneses, e foi onde ficamos por doze anos. Minha infância e adolescência
passei em Biguaçu.
E na tua família havia uma cultura do livro, ou ele se dá
mais tarde na tua vida?
Havia este contato. Minha mãe era de uma família tradicional, e além do árabe ela havia estudado russo e inglês. Meu pai era de uma família humilde, mas foi professor primário. E além disso, naquela época, estudava-se árabe e francês no Líbano. E ambos gostavam muito de ler. Então eu comecei a me interessar pelo livro com meu pai me contando – a minha mãe também, mas mais ele – aquelas histórias orais que passam de geração para geração, um pouco modificadas, mas que mantêm aquela tradição da literatura oral, que é uma coisa muito bonita. Contar histórias é uma coisa muito bonita. Então eu comecei a me interessar pelo livro ali. Quando fui alfabetizado, e aí é outro fato curioso, entrei no grupo escolar José Brasilício de Sousa sabendo pouca coisa de português. No fim do ano a professora bateu palmas, chamou a atenção dos alunos, me apontou e disse: “vejam só, chegou ontem aqui, mal sabia algumas palavras de português misturadas com árabe e alemão; hoje fala, lê e escreve melhor que vocês! Não se envergonham diante deste turco?” Eu desabei no choro, não sei se foi
pelo
elogio ou pelo turco. Porque meu pai sempre dizia: “não aceite que te chamem de
turco.” Porque a Síria e o Líbano durantes anos foram dominados pelo império
otomano, pelos turcos. E a professora me deu de presente um tinteiro que tenho
até hoje. Aos oito anos comecei a ler absolutamente tudo que encontrava. Quando
não tinha nada para ler, eu lia bula de remédio. E devo muito a almanaques. Foi
em almanaques que li, aos oito anos, pela primeira vez, Machado de Assis, o
“Soneto à Carolina”, que é um dos mais belos sonetos da língua portuguesa e,
certamente, o melhor de toda a poesia machadiana. Até porque a praia dele não
era bem a poesia, embora deixou um volume enorme de poesias.
Além dos almanaques, quais as outras fontes de acesso à
literatura? Havia bibliotecas?
Em Biguaçu
praticamente não havia bibliotecas nem nas escolas. Havia uma meia dúzia de
livros, e poucas pessoas tinham bibliotecas. Tinha alguns livros, mas que não
podiam ser chamados de biblioteca. Até que certo dia, lá pelos meus dez ou doze
anos, eu me lembrei que havia uma livraria de um poeta cego chamado João
Mendes. Fui lá e fiz uma proposta que ele não aceitou. Mas ele me fez uma outra
proposta, que eu aceitei. A minha era a de ele me emprestar livros e eu me
comprometia a não amassá-los e não sujá-los quando fosse devolvê-los, depois que
os tivesse lido. E quando eu tivesse os tostõezinhos para comprar um livro, eu
compraria. Ele disse “não, vamos fazer diferente. Tu vens aqui, lês para mim em
voz alta o tempo que tu quiseres todos os dias, porque eu também tenho fome de
leitura.” E acertamos isso. Durante alguns anos li em voz alta para ele. Todas
as vezes em que conto esta história as pessoas me perguntam, e acho que tu vais
me perguntar: “que livraria fantástica era essa que pôde, durante anos,
alimentar vocês?” Ora, o que ele tinha não daria para nos alimentar a fome de
livros por quinze dias. Mas ele tinha experiência. Ele tinha um primo em
Florianópolis, que era poeta também, que gostava muito de ler e tinha uma
excelente biblioteca, e passou a nos mandar livros. Além disso, ele começou a
comprar livros em consignação. Comprava quarenta livros de uma editora e
noventa dias depois devolvia. Mas não podia devolver os quarenta livros. O que
ele fazia? Obrigava parentes e amigos a comprar alguns dos livros, devolvia os
demais, mas nós já tínhamos lido os quarenta. Então através disso tomei
conhecimento da literatura brasileira e universal. Foi ali que li Shakespeare,
“As alegres comadres de Windsor”, em uma edição portuguesa muito feiazinha por
sinal. Foi ali que li pela primeira vez um livro em espanhol, “Don Segundo
Sombra” de Ricardo Güiraldes. Não sei se ele ou e eu entendemos todo o
espanhol, mas o negócio é que devoramos o livro. Então foi ali a minha
formação. O primeiro romance que li na vida, não sei de onde me apareceu este
romance, foi “O Tronco do Ipê” do José de Alencar. Relendo este livro há pouco
tempo, pela terceira vez, notei uma coisa que não havia observado na segunda
leitura. Na primeira nem pensar! Tem um conselheiro, neste livro, que é o
conselheiro Acácio, que é o primo Basílio do Eça de Queiroz. É o mesmo tipo
enfatuado que diz coisas banais com uma pose como que se estivesse dizendo as
últimas maravilhas do mundo. E aí fui para a internet para ver se o livro do
Eça era posterior. Eu achava que era, mas não tinha certeza. Porque se o livro
do Eça fosse anterior, o José de Alencar poderia ter copiado aquele
conselheiro. Mas não. O livro do José de Alencar é de 1873 e o livro do Eça é
de 1878. Será que o Eça tomou conhecimento?
É possível supor que, pelo fato de seres um devorador de
livros, o interesse pela escrita se dá de uma forma quase natural. Quando
começas a escrever e perceber que o que escrevias tinha qualidade? E como se dá
o processo que leva à publicação dos teus textos?
Bem, são duas
perguntas e por isso vou responder de duas maneiras diferentes. Lá pelos dez
anos de idade, meu pai me vendo devorar tudo o que era impresso, aqueles
símbolos mágicos, perguntou assim: “o que pretendes fazer na vida?” E respondi:
ler e escrever. Aí a minha mãe, que era uma mulher sensível, mas com os pés no
chão, disse: “não vai ser fácil.” Meu pai então disse: ”fácil não vai ser, mas
se ele persistir, conseguirá.” Então se há uma palavra que me acompanha até
hoje, esta é persistir. Persistência é fundamental em tudo que a gente quer
fazer. Então aos dez anos eu já pensava não só em ler, mas também em escrever.
Naquela época, depois das estripulias do dia, porque eu não só lia, eu era uma
criança normal que gostava de nadar, de correria, de jogar futebol, até de
brigar com os amiguinhos, de noite a gente se reunia na frente das casas e cada
um contava, a sua maneira, aquilo que estava na sua lembrança do dia. Eu fazia
diferente. Quando eu chegava em casa, pegava uma folha de papel, fazia uns
traços na vertical e na horizontal, botava algumas palavras e transformava
aquelas coisas do dia numa matéria de jornal ou numa crônica. Então, lá pelos
dez anos, eu já brincava de jornalista e escritor. Tive a preocupação de não
publicar cedo e de ler, reler e rasgar. Porque rasguei e coloquei no lixo muito
mais do que publiquei. Fiquei em Biguaçu até os meus 19 anos, já tinha alguma
coisa manuscrita, mas nada daquilo foi publicado. Foi só chegar em
Florianópolis e, aquilo que me faltava de leitura, li na Biblioteca Pública do
Estado, que tem um acervo enorme. Foi em 1943 que nós mudamos para
Florianópolis. Veio a família toda.
Quais os motivos para a mudança?
Em Biguaçu, durante a
guerra, nem a vendola do meu pai estava dando para as despesas da casa.
Vendia-se muito fiado e recebia-se pouco retorno. Também as pessoas de Biguaçu,
São Miguel, Tijuquinhas, Ganchos, de Alto Biguaçu, daquela região toda que
frequentava a venda do meu pai e as outras, também estavam tendo dificuldades
financeiras. Então ele resolveu se aventurar em Florianópolis, onde nunca
passou de um dono de venda. Quando faleceu, aos 60 anos de Brasil ou mais, a
única coisa que deixou foi uma casa hipotecada na Caixa Econômica Federal. A
primeira lembrança que tenho, e a mais exata, é a de que nós chegamos em maio
de 1943 e no começo de 44 começamos a nos reunir e conversar, eu estava com
exatos 20 anos. Desse primeiro grupo, três acabariam no Grupo Sul: Ody Fraga,
Antônio Paladino, Cláudio Bousfield Vieira. Ody Fraga fez uma trajetória no
teatro e depois no cinema. Antônio Paladino faleceu de tuberculose aos 23, 24
anos. E Cláudio Bousfield Vieira nunca mais quis saber de literatura depois da
Revista Sul. Aí sim nós começamos, primeiro trocando originais com aquela velha
história: leia o meu que eu leio o teu. Depois começamos a furar os espaços dos
jornais. Tem colaboração nossa, não só minha, mas do Ody, do Paladino, depois
da Eglê Malheiros, do Aníbal Nunes Pires, a quem nós devemos muito, em todos os
jornais de Santa Catarina, que na época, nos anos cinquenta, eram quatro: O
Estado, Diário da Tarde, A Gazeta, Diário da Manhã. Tem colaboração nossa em
todos os jornais. Então começamos a publicar ou crônicas ou poemas. E como a
minha praia não era a poesia, então comecei a publicar crônicas e anotações
sobre livros.
E é o que vai te perseguir pela vida inteira, porque muitos dos teus livros são sobre livros. Com este que está saindo agora, “Minhas Memórias de Escritores”, são sete livros onde faço anotações sobre aquilo que estou lendo. Interessante observar que muitos dos teus romances também tratam de livros. “As Confissões Prematuras”, por exemplo, é a angústia de um escritor. “A Vida Breve de Sezefredo das Neves, poeta” também. Então muitos dos teus livros têm como tema o livro.
Sim, têm como tema o
livro. Mas de repente, em 1946, nós colaboramos com o jornal Folha da
Juventude. Em 1947 o Antônio Paladino, o Cláudio Bousfield Vieira, o Aldo Sagaz
e eu criamos um jornalzinho datilografado chamado Cicuta. A tiragem era de
quatro exemplares e tinha uma frase que caracterizava o jornal: “leitor, por
favor, não faça com este jornal o que faz com os demais”. Tudo isso não
bastava. Então nós resolvemos partir para uma coisa maior, que era a Revista
Sul. Naquela época, dos fins dos anos 40 aos fins dos anos 50, eram cerca de
quarenta publicações de jovens em todos os estados brasileiros. Não tinha
estado que não tivesse a sua revista de literatura. Só que não queríamos nenhum
contato com órgãos oficiais, com poderes estabelecidos. Queríamos inteira
independência. Também não tínhamos como fazer a revista porque não tínhamos
recursos. Todos nós éramos classe média ou classe média baixa. Então o Ody disse
assim: “por que nós não fazemos um espetáculo de teatro para angariar
recursos?” As duas ou três primeiras revistas foram bancadas por dois
espetáculos de teatro; a primeira com três peças de um ato. No segundo
espetáculo nós lotamos a casa. Florianópolis sempre gostou de teatro. A
população pediu um segundo espetáculo, nós pedimos um tempo, e em lugar da peça
do Ody, “Um homem sem paisagem”, nós adaptamos um conto do Sartre, ao qual
demos o nome de “Estátuas Volantes”, embora o conto não se chamasse assim. O
conto era do livro “O Muro”, mas não me lembro do título original. E muita
gente em Florianópolis, depois, achava que nós tínhamos inventado o tal de
Sartre.
Qual era o ambiente intelectual da Ilha neste contexto em
que vocês estavam montando o Grupo Sul?
Havia um grupo
intelectualizado, só que eles haviam estacionado no tempo. Eu me lembro de,
talvez, uma das figuras mais proeminentes do estado de Santa Catarina dizer
assim: “vejam só, ‘tem uma pedra no meio do caminho’. Isso é poesia? E esse Drummond hoje está
sendo considerado um poeta! Na minha época ele não serviria nem para varrer o
chão de um poeta!” Então era esse o ambiente na época. Tanto que quando surgiu
a Revista Sul, nós tínhamos publicado um caderno chamado “Os Velhos e os Novos”
e, ou intencionalmente, ou por esquecimento, não convidamos essa figura para
participar desse caderno. Então ele ficou indignado porque se considerava a
maior autoridade em Goethe, não só em Santa Catarina. A esta altura nós já
estávamos com uma página, chamada “Página do Círculo de Arte Moderna”, no
jornal O Estado. Então nós tivemos a mais duradoura polêmica sobre literatura e
cultura em Santa Catarina, que durou um ano no jornal O Estado. Nós tínhamos
espaço uma vez por semana e ele diariamente, quando quisesse tinha espaço para
nos atacar. No fim – ele tinha sido dono do jornal O Estado, que depois foi
vendido para o Aderbal Ramos da Silva – ele disse que não era concebível, como
ex-dono do jornal, que ele, uma autoridade intelectual respeitada, fosse
atacado por um grupo de jovens que nem sabiam começar uma frase por um pronome
oblíquo. Assim nós perdemos a página. Mas este debate durou um ano!
E qual era o nome dele Salim?
Professor Altino
Flores.
Quando começas a atuar como jornalista?
Comecei trabalhando
aqui, primeiro como free-lance, depois como correspondente de jornais do Rio
Grande do Sul e de revistas do Rio de Janeiro e colaborando, eventualmente, nos
principais órgãos de imprensa do país. Tem colaboração minha no Estadão, no
Diário de Notícias, no Correio da Manhã, no Correio do Povo. Costumo dizer que
tenho contos e textos, não de crítica, mas de anotações sobre livros, do
Oiapoque ao Chuí. A minha primeira carteira de jornalista profissional foi
assinada pelofoto Diário da Manhã de Florianópolis em 1951. Trabalhei dois anos
nesse jornal, depois comecei a trabalhar como correspondente de jornais e
revistas. Mais adiante uma revista, que durou dois números, mas que levou dois
anos para tirar dois números, chamada BN, que naquela época era Bossa Nova, e
que me assinou a carteira. Depois um jornal chamado Opinião Pública. E depois
do Golpe, quando fui preso e fui obrigado a sair de Santa Catarina, no Rio
trabalhei por 13 anos na Bloch Editores. Comecei como copidesque, depois
redator, repórter especial e por fim chefe de redação de uma revista chamada
Tendência.
Salim, sabemos que a Eglê é a grande companheira da tua
vida. Em vários dos teus livros vemos dedicatórias a ela. Como vocês se
conheceram?
Em 1947, quando
estávamos montando as peças de teatro. A Eglê eventualmente tinha colaborado no
jornal Folha da Juventude. Quando estávamos montando o espetáculo, precisávamos
de atrizes, e a Eglê foi uma dessas atrizes. Depois ela trabalhou em uma outra
peça chamada “Cândida”, uma peça em três atos do Bernard Shaw. Na verdade, desde o primeiro momento, a gente
sentiu que tinha uma coisa muito próxima, tínhamos interesses comuns, uma visão
de mundo mais ou menos parecida. Começamos a namorar em 1947. Um amigo nosso diz
que foi em um jantar que nós fizemos depois dos dois espetáculos com as três
peças, porque ainda sobrou um trocadinho para a gente fazer um jantar porque
ninguém é de ferro. Ele disse que naquele momento percebeu que nós estávamos de
namoro, a Eglê e eu. Como naquela época a gente não namorava hoje e amanhã
estava junto, nós levamos até 1952 entre namoro, noivado e casamento. Mas eu
costumo dizer que nós estamos juntos há exatos 61 anos! Desde 1947! Na verdade
eu não seria quem sou sem a Eglê.
Teus primeiros livros são de contos, e depois vem o
romance “Rede”...
Sim, meus dois
primeiros livros são de contos: “Velhice e outros contos”, de 1951, e “Alguma
Gente”, de 1953. “Rede”é de 1955. Todos eles pela Sul. Meu projeto era um livro
a cada dois anos. Quando publiquei “Rede”, sentei para refletir e cheguei à
conclusão que o mais importante não é publicar; o importante é o que e como se
publica. Porque na verdade o escritor, desde o início dos tempos, trabalha com
alguns poucos temas. A maneira dele trabalhar esses temas, a maneira dele
resolvê-los, é que diferencia e identifica um escritor do outro. Então passei
exatos 18 anos sem publicar livros. Eventualmente publicava um conto, mas
passei a me dedicar mais ao jornalismo e às anotações de leituras, escrevendo
sobre livros. Só em 1973, já residindo no Rio de Janeiro, e graças ao Carlos
Jorge Appel, um amigo meu de Brusque que hoje é uma figura da intelligentsia
gaúcha, acabei reunindo alguns dos contos publicados em jornais e revistas num
livro chamado “O Primeiro Gosto”. O título do livro era “Os nossos iguais”, mas
o Appel achou que este título não traria muito interesse para os leitores.
Então uma das epígrafes era de um poema de Camões, que fala do primeiro gosto,
foi quando sugeri “O Primeiro Gosto” e ele achou que estava bom. Este livro
ainda não me satisfez, embora eu hoje ache que pelo menos três contos do livro
tenham alguma validade. Parei outros seis anos e disse para a Eglê: “Eglê, vou
fazer mais uma tentativa, se não der certo vou ficar como jornalista, talvez
passe para o cinema, mas vou parar com literatura porque não estou fazendo nada
que me satisfaça”. Em 1979 publiquei um livro chamado “A Morte do Tenente e
Outras Mortes” que foi considerado o melhor livro de contos daquele ano. E
este, na verdade, me satisfez. E tem uma introdução do Fausto Cunha onde, em
alguns pontos, ele diz assim: “tem um conto chamado ‘Aranha’ que, além de ser
um dos melhores contos da literatura brasileira, marca um novo momento na
literatura de Salim Miguel”; e ele cita mais três ou quatro contos desse livro.
Aí eu disse para a Eglê: “acho que agora tenho o meu caminho na literatura. Se
vou fazer coisa melhor do que esse não sei, mas agora sei que vou continuar”.
Em 1984 publiquei “A Voz Submersa”, que teve uma boa aceitação e uma boa
vendagem, e não parei mais.
Uma das grandes dificuldades para o escritor radicado em
Santa Catarina é chegar a uma grande editora. Normalmente ele consegue
publicações mais localizadas, mas poucos são os autores que conseguem dar este
salto para uma editora maior. No teu caso, desde a década de 1980 já publicas
por editoras de âmbito nacional. Como conseguiste chegar a estas editoras?
Vou dizer uma coisa,
não sou melhor nem pior que outros escritores de Santa Catarina. Hoje podemos
dizer que temos em Santa Catarina escritores, em todas as áreas e não só na
ficção, que não deixam nada a desejar a escritores de outros estados. Só que eu
tive a “sorte” de ser preso e por isso tive que sair de Santa Catarina. No Rio,
embora eu tivesse feito na imprensa tudo o que se possa imaginar, trabalhei
mais na área de cultura, e com a Laura Sandroni, o Cícero Sandroni, o Fausto
Cunha e a Eglê Malheiros fizemos uma revista chamada “Ficção”, que durante
quatro anos fez um mapeamento do conto no Brasil, do passado e do
presente. Com isso nós cinco nos
tornamos uma referência, e isso me ajudou. Ou seja, morando no Rio, já tendo
feito essa revista, tornou-se mais fácil, para mim, conseguir espaço nas
editoras do Rio, de São Paulo, de Brasília e de Porto Alegre. Se examinares
meus livros, verás que a maioria deles foram publicados por editoras destas
regiões. Mas repito aqui que não sou melhor, também não sou pior do que outros
escritores de Santa Catarina, não vou bancar o falso modesto.
Como surgiu a idéia de filmar o longa-metragem “O Preço
da Ilusão”?
Nós criamos o primeiro
clube de cinema de Santa Catarina, que tinha como presidente o Armando
Carreirão. Aí nós passamos a trazer não só filmes importantes, como também a
comprar livros, não só a Eglê e eu, mas vários do grupo. Tenho uma razoável
biblioteca sobre cinema, não só de história do cinema, mas sobre argumento,
roteiro e tudo o que diz respeito ao cinema. Em 1956 nós pensamos: “já estamos
encharcados de ver filmes e ler sobre cinema, por que não partimos para o nosso
próprio filme?” Todo mundo achou isso uma loucura. E era uma loucura! Mas é boa
essa loucura dos jovens, e dos velhos também! Então fizemos contato com todo o
pessoal do grupo para que apresentassem sinopses para um argumento de filme. E
o mais viável, por vários aspectos, era o da Eglê e meu. Foi aprovado.
Começamos a preparar o roteiro. No roteiro tivemos a ajuda de um amigo chamado
E. M. Santos. Estava tudo pronto, sim, mas precisávamos de recursos. Fizemos
então outra coisa inimaginável em termos de Florianópolis dos anos de 1950:
saímos vendendo cotas deste filme. E através das cotas conseguimos tornar
viável este filme. Nenhum de nós tinha coragem de dirigir o filme, por isso
pegamos um diretor do Rio Grande do Sul que tinha trabalhado como diretor
assistente em um longa-metragem de lá e tinha feito alguns curtas. Trouxemos de
São Paulo, para fazer a fotografia do filme, um jovem que tinha trabalhado com
Alberto Cavalcanti, importamos os equipamentos e começamos o filme. O filme tem
duas linhas. A primeira é uma crônica de uma cidade pequena, que era
Florianópolis. a segunda veio porque nós éramos muito marcados pelo
expressionismo alemão e pelo neo-realismo italiano, e o filme procura fundir
estas duas tendências. Quando o filme ficou pronto – a gente sempre acha que
está fazendo uma obra-prima – nós vimos que não era uma obra-prima e que ele
tinha vários problemas que nós não tínhamos conseguido solucionar. Então o
filme foi apresentado em Santa Catarina, em duas ou três cidades fora e
desapareceu durante uns dois anos. Depois uma atriz de São Paulo disse que
tentaria recuperar o filme, desde que fossem feitas algumas modificações e ela
entrasse no filme. Mas antes pediu que fosse feita uma cópia de 16 milímetros.
Nós estávamos morando no Rio de Janeiro quando, certa noite, telefonou Ricardo
Ramos, grande amigo nosso, filho do Graciliano Ramos, dizendo: “Ô Salim, você
disse que o filme de vocês não vale nada, não vou dizer que é uma obra-prima,
mas não é tão ruim. Está na média do que se fazia no Brasil naquela época.”
“Mas como é que você está me dizendo uma coisa dessa?” “É que ontem à noite, na
TV Gazeta, tinha um programa de cinema brasileiro e passou “O Preço da Ilusão”,
a cópia de 16 milímetros.” “Não brinca Ricardo!” “Passou, eu vi, minha mulher
viu e estou te telefonando para dizer isso!” Isso foi lá pela metade da década
de 1970. Nós saímos atrás dessa cópia de 16 milímetros, jamais conseguimos a
cópia, e o que existe para provar que o filme foi feito são os oito minutos
finais. Quem projetava os filmes na TV Gazeta era um grego. Consegui o telefone
dele e liguei para ele. Nós ficamos sabendo que ele tinha brigado com a TV
Gazeta e tinha levado filmes que eram do acervo da emissora, e um deles era “O
Preço da Ilusão”. Ele me disse: “isso é uma mentira deslavada, querem me
prejudicar, nunca tive esse filme na mão!” Depois o diretor do filme também
telefonou para ele, o nome do diretor era Nilton Nascimento: “me ligou um tal
de Salim Miguel, e o que eu disse para ele vou te dizer: não tenho nada a ver
com esse filme, nunca projetei nada na TV Gazeta!”
E o filme continua perdido...
Existia uma cópia em
35 milímetros, das três que foram feitas, com o sujeito que projetava os filmes
em Florianópolis. Ele era o responsável por todos os cinemas, embora não fosse
o dono. O Carreirão deixou sob a guarda dele uma cópia de 35 milímetros. Um dia
um dos participantes do filme, que tinha feito uma ponta, disse para o
Carreirão: “me empresta este teu filme, eu vou levar e percorrer Santa Catarina
dizendo venham conhecer Florianópolis e o primeiro filme feito em
Florianópolis”. Carreirão, que já estava em outra e já não queria mais saber de
cinema e nem de literatura, emprestou e nunca mais cobrou a devolução do filme.
E até hoje não se sabe onde foi parar esta cópia. Que o cara andou projetando
pelo interior, andou. Fez em São José, Lages, Criciúma, Itajaí, isso em fins
dos anos sessenta quando eu já estava no Rio.
Sobre o Regime Militar. Sabemos que foste preso e que
tiveste que ir para o Rio de Janeiro. Depois a Eglê também foi presa. O que
desencadeou a tua prisão? Qual foi o argumento utilizado pelas forças de
segurança para te prender?
Bem, a minha prisão
foi uma coisa fantástica! Eu era chefe do escritório da Agência Nacional em
Santa Catarina. A Agência Nacional era o órgão de comunicação do Governo Federal.
Ao mesmo tempo eu era assessor de imprensa do governador Celso Ramos. Eu estava
saindo do gabinete de relações públicas do governo, onde eu trabalhava, e
estava indo para os Correios para passar uma mensagem para o Rio de Janeiro.
Isto no dia 2 de abril. Mas disse: “vou tomar um cafezinho no ‘Ponto Chic’
antes de passar a mensagem.” Chego lá, peço um cafezinho, está lá um amigo,
lembro-me até hoje, eu estava pronto para tomar o cafezinho quando vejo a rua
cheia de policiais, civis e uma ambulância. Naquela época a rua era aberta, não
como hoje, fechada para veículos. Chega um comissário perto de mim e disse:
“estás preso!” “Pô, deixa de brincadeira e me deixa tomar um café em paz!”
Resumo. “Estás vendo a ambulância ali? Vamos levá-lo ao 5º Distrito Naval.”
“Que brincadeira é essa?” “Não é brincadeira! Nós temos uma autorização do 14º
Batalhão de Caçadores para prendê-lo.” E aí fiz uma coisa que hoje eu não faria
de maneira alguma; recusei-me a ir para o 5º Distrito Naval e a entrar na
ambulância. Isso durou quase uma hora, e haja gente circulando em torno
daquilo! Até que de repente, acho que esse comissário mandou alguém se informar
e voltou dizendo assim: “tudo bem, quartel da polícia militar!” “Está certo.”
“Entra na ambulância!” “Não. Já disse que não estou doente e não vou entrar na
ambulância! Vamos fazer o seguinte. Sei muito bem onde é o quartel. Vou pegar
um táxi e vocês podem ir de ambulância!” “Vai de táxi, mas dois soldados vão
junto.” Os dois soldados chegaram para mim: “podemos ir no seu táxi? Porque se
nós formos em outro, vai sair do nosso bolso e nós não ganhamos pra isso!”
(RISOS) “Tudo bem, não tenho nada contra vocês.” Fui de táxi, desci lá na Praça
Getúlio Vargas, na entrada do quartel militar. O comissário já estava lá e me
entregou ao sub-comandante da polícia, que tinha sido oficial de gabinete do
Celso Ramos, e nós dois trabalhamos juntos e várias vezes viajamos juntos. Ele
me olhou e disse assim: “poxa Salim, é isso! Tu falavas demais, dizias o que
querias dizer e não devias e agora estás aqui preso!” “Vou te dizer uma coisa.
Isto comigo não é nada. Eu quero ver, amanhã ou depois, teu chefe Juscelino
Kubitschek estar pior do que eu.” E não deu outra! Pouco depois cassaram o
Juscelino. Fiquei 48 dias preso, e as alegações eram duas: primeiro a de que eu
era chefe do núcleo do Partido Comunista de Santa Catarina. Eu nunca participei
de partido político nenhum! Não acredito em partidos políticos, e estamos vendo
hoje o que eles são. Sempre fui um homem de esquerda, embora hoje isto nem se
deva mais dizer, mas continuo sendo um homem de esquerda. Mas diziam que eu era
chefe do Partido Comunista e que tinha feito a Eglê entrar no partido porque eu
não queria aparecer. Ela era filiada, mas isso nada tinha a ver com nosso
relacionamento de marido e mulher e de pessoas que se gostam e até hoje
continuam. Além disso, eu era sócio da Livraria Anita Garibaldi. Foi a primeira
livraria a trabalhar com livros estrangeiros, de todas as tendências, inclusive
livros de esquerda e comunistas. Mas era um ponto de referência em Santa
Catarina. Foi a única livraria em todo o Brasil, na pacata Florianópolis, que
foi queimada. Isso cinco dias depois de eu ter sido preso. Como o Brasil é um
país surrealista, devo a minha soltura não só, mas principalmente, a um dos
escritores mais importantes de Santa Catarina chamado Adonias Filho. Adonias
Filho era um homem ligado aos militares. Quando o diretor geral da Agência
Nacional foi obrigado a fugir, Josué Guimarães, um excelente jornalista e
romancista, o Adonias assumiu a direção da Agência Nacional. Eu o conheci no
Rio de Janeiro através do Jorge Lacerda, governador de Santa Catarina que
morreu em um acidente de aviação. E o Adonias ficou muito espantado em ver um
jovem provinciano conhecer toda a obra dele e discuti-la de igual para igual.
Eu dizia: “ó Adonias, isso aqui você fez muito bem, mas eu não faria desse
jeito” Quando ele assumiu a direção da Agência Nacional, a primeira coisa que
fez foifoto procurar me soltar. Conseguiu depois de 48 dias. Fiquei preso no
quartel da polícia militar. Os primeiros 30 dias de prisão fechada, sem poder
me comunicar com ninguém. Os outros 18 dias meus filhos pequenos, minha
família, já podiam me visitar. A Eglê não porque já estava presa. A minha
soltura foi uma coisa fantástica! Eu estava no restaurante, porque os presos
políticos, ao contrário dos coitados dos soldados, comiam no restaurante dos
oficiais. Eu estava no restaurante dos oficiais com o prato e os talheres na
mão quando ouço uma voz dizer “Salim Miguel!” Em um momento destes a primeira
coisa que se pensa é: “o que virá de pior para mim?” E ele repetiu: “Salim
Miguel!” “O que é que há?” “Vem comigo, estás solto!” “Pô, me deixa jantar em
paz!” “Chegou um comunicado do 14º Batalhão de Caçadores, do General Sarmento, mandando
te soltar.” Aí todos começaram a gritar: “janta! janta!” “Vou jantar? E vem
outra mensagem me mandando ficar? Vou-me embora! Só que vou levar a faca e o
garfo!” Como o oficial não disse nem sim e nem não, se vocês olharem na minha
estante verão a faca e o garfo. Imediatamente telefonei para o Adonias, para
saber o que tinha acontecido, e ele disse: “o seu processo foi arquivado e você
continue dirigindo o escritório da Agência Nacional em Santa Catarina.” Mas já
não havia mais condições. Amigos meus, dos tempos de infância, viravam rua para
não me encontrar, enquanto pessoas que eu mal conhecia vinham me abraçar e me
convidavam para tomar um cafezinho. É quando a gente fica conhecendo melhor o
bicho homem, o ser humano.
Muito desta tua experiência já contaste no livro
“Primeiro de Abril”, mas sofreste algum tipo de violência além da psicológica?
Nenhum dos sessenta
que estavam presos comigo sofreu qualquer violência física. Sofreram violência
psicológica. Narro uma no “Primeiro de Abril” que aconteceu comigo. Agora, uma
coisa impressionante é a maneira como as pessoas se diferenciam numa prisão. A
maneira como cada um encara aquilo. Tinha um que durante toda a prisão ficava
numa posição fetal, todo encolhido, e nunca mais se recuperou. Não falava com ninguém.
Tinha outros que contavam anedotas, jogavam, brincavam, numa maneira de tentar
fugir daquela situação opressiva. No meu caso a Eglê, antes de ser presa,
mandou-me um caderno e um lápis, porque não podia entrar caneta, e eu fui
fazendo as anotações que resultaram no “Primeiro de Abril”. E no final do livro
coloquei uma relação com o nome e a profissão de todos que estiveram presos
comigo.
Inclusive, escreves o livro em 2ª pessoa.
O que é uma coisa
rara no Brasil. Este livro acabou de sair na França, só que eles mudaram o
título. Eles acharam que “Primeiro de Abril: Narrativas da Cadeia” funcionaria
para o Brasil, mas não lá. Então eles me consultaram e eu concordei, e ficou
assim: “Brasil, 1964: a ditadura se instala”.
E como se deu a prisão da Eglê?
A Eglê ficou mais
tempo do que eu, só que ela foi presa em casa, numa manhã. Não chegaram a
entrar na casa, não destruíram a nossa biblioteca, mas ela foi chamada, foi
presa, e deixaram, sem ninguém em casa, quatro crianças, o mais velho com 10
anos e o mais moço com 4 anos. E foi preciso uma vizinha ligar para a minha
irmã, para ela ir lá e pegar as crianças. A Eglê foi levada para o hospital da
polícia militar, onde ficou uma semana. O Golpe, na verdade, não foi um golpe
de militares, mas de civis e militares. A cidade se movimentou, começaram a
falar tanto, que acabaram tirando a Eglê do hospital e a levaram para casa.
Então ela ficou em prisão domiciliar. Quando fui libertado, ela ainda estava em
prisão domiciliar. Então ela ficou mais tempo presa do que eu.
E por que a decisão de ir para o Rio de Janeiro?
Aqui eu volto a dizer
que o Brasil é um país surrealista! Eu estava pensando o que iria fazer, porque
não tinha mais condições de continuar na Agência Nacional. Seis dias depois de
ser preso – fui demitido do meu cargo no serviço de imprensa do estado – recebo
um telefonema do Adonias Filho dizendo o seguinte: “Salim, estou te mandando
uma passagem, venha ao Rio porque nós precisamos conversar.” Cheguei lá, sentei
no escritório dele e perguntei: “Qual é a necessidade da minha vinda ao Rio?
Vamos falar de literatura?” “Quero trazer você para vir trabalhar na direção
geral da Agência Nacional comigo.” “Adonias, isso é uma loucura! Eu vou sair de
Florianópolis para vir cair na boca do lobo?” Aí ele falou uma frase que nunca
esqueci: “Você tem as suas idéias e eu tenho as minhas; o que seria de um país
sem idéias? Agora, você também não vai sair por aí berrando nas ruas que és de
esquerda! Mas em Florianópolis não há condições de você continuar por dois motivos:
primeiro porque há a possibilidade de que você volte para a prisão; segundo,
tem uma amigo seu, jornalista, que veio ao Rio e pediu o seu lugar.” Não é um
negócio fantástico? Um amigo jornalista foi ao Rio pedir o meu lugar! Fui para
o Rio em fevereiro de 1965, ainda consegui me segurar aqui durante uns meses.
Eu costumo dizer que foi uma pena o Golpe não ter acontecido antes, porque eu
teria ido antes para o Rio. (RISOS)
Por que então a decisão de voltar para Santa Catarina?
O meu chão é Santa
Catarina! Eu trabalhava em dois empregos com a carteira assinada, e trabalhava
como free-lance em mais um jornal e fazia mais colaborações. Além disso, a Eglê
cuidando de cinco filhos, fazia traduções, já que ela conhece muito bem vários
idiomas, fazia revisão de livros, e não dava para a gente continuar no Rio de
Janeiro. Em 1979 fui falar com o diretor da Agência Nacional, que já não era
mais o Adonias há muito tempo, que disse assim: “tudo bem, você volta para
Santa Catarina para dirigir a Agência Nacional.” “Não faça isso, por favor!”
“Ou você aceita, ou não libero você daqui!” Vim, fiquei uns meses, mas não
havia mais condições para eu ficar na Agência. Então fui colocado à disposição
da Universidade Federal de Santa Catarina, o que foi bom. Aí sim, trabalhando
bastante, mas não mais trabalhando em tempo integral, pude me dedicar mais à
literatura e ao jornalismo. Acredito em três coisas, não acredito em
inspiração, ou muito pouco, mas acredito em vocação, em talento e em
persistência. Vocação todos nós temos, e alguns têm a sorte de ter vocação para
mais de uma coisa. Por exemplo, tinha aqui um excelente médico, o Holdemar
Menezes, que era um excelente ficcionista. No meu caso foi o jornalismo e a
criação literária. Porque jornalismo também é literatura, embora muitos não
aceitem. Talento; é preciso a gente regar o talento como quem rega uma flor
muito preciosa e muito frágil. E a maneira de regar o talento é a persistência.
“Eu quero ser isso, posso não ser um gênio nisso, mas devo chegar aonde quero
chegar!” Então isso é a persistência que faz, e isso eu consegui em
Florianópolis.
Uma pergunta clássica, que fazemos a todos os escritores.
Quais são as tuas referências literárias? Claro, durante a tua carreira
escreveste a respeito de uma infinidade de autores, e as epígrafes dos teus
livros também nos permitem perceber um pouco das tuas referências. Mas o teu
estilo estaria dentro daquilo que hoje chamamos de pós-moderno. Muitos dos teus
livros têm uma trama bastante diferenciada daquilo que se praticava e daquilo
que ainda se pratica ainda hoje. Já nas tuas críticas literárias vemos que tu
tens uma formação literária bastante clássica, como Fernando Pessoa, por
exemplo.
Isso é uma das coisas
mais difíceis para mim, porque sempre fui um devorador de livros, e não
satisfeito em ler, reli muito. Por exemplo, não sei quantas vezes reli Machado
de Assis e Graciliano Ramos. São só dois exemplos. Mas se eu tivesse que ser
obrigado a dizer quais os livros que mais me marcaram, eu teria dois: “Dom
Quixote” e “As Mil e Uma Noites”. Acho que “Dom Quixote” deveria ser um livro
obrigatório. Este foi o livro que talvez mais me marcou, embora eu já
conhecesse anteriormente “As Mil e Uma Noites”. Primeiro pelo que minha mãe e
meu pai contavam, que eram e não eram as “Mil e Uma Noites” que vim conhecer
depois. Quando cheguei a Florianópolis, procurei logo “As Mil e Uma Noites” e
encontrei uma edição resumida para o público juvenil, mas aquilo não me
satisfez. Em 1956, eu já escrevia sobre livros e recebia praticamente tudo o que
as editoras publicavam. Recebi da Saraiva uma edição em oito volumes de “As Mil
e Uma Noites”, a única edição completa, com ilustrações de Aldemir Martins.
Estão todas elas ali, traduzidas do francês. Depois disso comprei o que foi
saindo, e só não comprei esta de agora, que é a primeira que está sendo
traduzida diretamente do árabe, porque não vou conseguir ler já que estou
praticamente cego. E outro fato. Cervantes esteve preso durante muito tempo. E
na prisão e no contato com aquelas pessoas, ele deve ter sabido e ouvido muito
d’“As Mil e Uma Noites”. Há no “Dom Quixote” uma influência que nunca foi
devidamente examinada, ou se foi não tomei conhecimento, d’“As Mil e Uma
Noites”. Mas tem outros livros que me marcaram. Um livro que é muito contestado
e que algumas pessoas põem debaixo do braço para dizer que leram, mas que nunca
leram, o “Ulisses” de James Joyce. Li “Ulisses” em 1948,foto aos 24 anos, em
edição espanhola. Tinha saído na Argentina uma tradução na qual o tradutor
trabalhou por sete anos. Depois li a tradução de Antônio Houaiss, que foi a
primeira tradução brasileira e na qual ele levou um ano inteiro para aprontar.
Ele tinha sido demitido do Itamarati e foi contratado pelo diretor da
Civilização Brasileira para traduzir o “Ulisses”. Quando eu estava no Rio,
colaborei com a Enciclopédia Delta Larousse, que era coordenada pelo Antônio
Houaiss e pelo Otto Maria Carpeaux. Então conversei com o Houaiss sobre a
tradução que ele fez. “Vou te dizer uma coisa, em alguns aspectos, embora não
conheça o original, gostei mais da tradução argentina.” E ele disse que a
conhecia. Ele fez a tradução dele consultando não só a edição inglesa, mas a
italiana, a francesa, a alemã e esta espanhola. Na Rússia tem três ou quatro
que não canso de ler e reler: Dostoievski, Tolstoi, Gogol e Tchekhov, que para
mim, é um dos mais importantes contistas de toda a história do conto, desde os
tempos mais antigos.
Gostaria que falasses sobre o teu processo criativo. Como
surgem as idéias? Onde buscas as histórias? Vemos que muito é autobiográfico...
Eu disse, no começo
desta nossa conversa, que os temas com que o escritor trabalha são
relativamente os mesmos desde o início dos tempos. Agora, no meu caso, não
tenho personagens nem temas. Temas ou personagens é que me procuram. Para
alguns digo: “tudo bem, vamos trabalhar”; para outros: “procure outro escritor
porque não consigo chegar aonde tu queres”. Posso dar dois exemplos. Quando vou
para um livro, um conto, uma novela, não sei como ele vai caminhar ou até onde
ele vai chegar. Não sou como Érico Veríssimo ou como é aqui o Adolfo Boos
Júnior. Eles fazem uma planta baixa, estruturam tudo o que vão narrar, o local,
a situação, o perfil dos personagens. Eu não, não sei nada disso. Então vou
contar esses dois casos. Primeiro, eu estava na minha casa de praia e, de
noitinha a minha filha, que estava passando as férias conosco, atendeu ao
telefone e me chamou. “Quem é?” “Não sei, é uma mulher.” Peguei o telefone: “É
Salim Miguel? Estou chegando do Rio e preciso encontrá-lo.” “Por quê?” “Só
posso explicar quando nos encontrarmos. Vamos nos encontrar em um bar?”
“Desculpe, mas não vou sair. Por que não vens na minha casa de praia?” “A sua
casa é muito longe, mas tenho que vê-lo! Vim do Rio especialmente para isso!”
“Então amanhã pela manhã procure-me na editora da universidade, onde trabalho.”
No outro dia eu estava passando uns originais para a secretária quando ouço uma
voz dizer “que pena! Parece mas não é! Me desculpe!” Olho para a dona da voz.
“O que é?” “Desculpe, parece mas não é.” “Mas parece e não é o quê?” “Vi uma
fotografia sua num jornal do Rio falando do lançamento do seu livro e disse ‘é
ele! É o homem que ando procurando desde 1964!’.” “Mas que história maluca é
essa?” “Desculpe!” “Não, você me criou um problema em casa. Minha mulher agora
está pensando que eu tive um caso com alguém. E agora diz ‘que pena’,
‘desculpe’, ‘não é ele’ e vai embora? Você vai sentar aqui e me explicar esta
história!” Ela me contou um verdadeiro tema que não daria só um conto, como
acabei fazendo, mas uma novela ou um romance. Só que nunca consegui dar o clima
que ele merecia. Mas ainda assim fui obrigado a publicá-lo porque nunca
consegui me livrar daquilo. O conto se chama “Um Verão Louco”. O outro é muito
mais fantástico ainda! Eu estava em Chapecó com Gervásio Batista, fazendo uma
reportagem sobre o extremo oeste de Santa Catarina para a revista Manchete. Nós
estávamos sentados em um restaurante, tínhamos pedido um jantar e uma cerveja.
Eu estava resumindo para o Gilmar Batista o romance “São Miguel” do Guido
Wilmar Sassi, que se passa naquela região. De repente vejo alguém se levantar e
dizer: “posso sentar?” Antes que a gente pudesse dizer “pode”, ele sentou.
“Estava naquela mesa ao lado, ouvia o que estavas contando e me interessei
muito. Sou balseiro, minha vocação é ser balseiro, poderia ser outra coisa, mas
eu gosto muito de ler e fiquei interessado neste romance porque se passa por
aqui.” “Eu não tenho o romance aqui e ele está esgotado, talvez encontres nos
sebos.” “Só para provar que gosto de ler, vou dizer que li a pouco ‘E Rilo
Oscuro’ do Alfredo Varela.” “Conheço, é um bom romance.” “Mas este outro tu não
conheces: “Anaconda”, do Horácio Quiroga.” “Também conheço!” “Ma tu conheces
tudo?” “Não, não conheço tudo. Por exemplo, não sei o que é esse teu trabalho
de balseiro. Sei o que é uma balsa porque já andei em uma, mas balseiro, como
tu, não sei o que é.” “Mas para eu contar o que é ser balseiro, preciso tomar
outra coisa que não seja essa cerveja. Preciso de um conhaque ou de uma cachaça
da brava. Posso pedir?” “Mas por que estás me pedindo?” “Por que sei que vais
anotar na cachola tudo que estou te dizendo, depois vais escrever tudo isso e
vais me transformar em personagem. E os meus direitos autorais?” (RISOS). Este sim acho que é um dos meus contos que
mais me agrada. Chama-se “Ponto de Balsa”. As florestas naquela região estão
praticamente devastadas porque os madeireiros cortavam a madeira,
transformavam-na em tábuas e toras, faziam balsas e esperavam a enchente para
levar para a Argentina. Isso era corriqueiro naquela região de Santa Catarina.
A história dele era a de uma balsa que ele estava levando para a Argentina
durante um temporal enorme, e eles acharam que o temporal tinha terminado, mas
não. A balsa bate e afunda e os amigos dele, mais a mulher com quem ele vivia,
desaparecem e ele nunca mais os encontra. Ele me contou e eu anotei tudo, e o
conto é mais dele do que meu, mas dei tempero e esta é a minha maneira de
escrever. No meu último livro de contos, publicado pela Editora Record, “O
Sabor da Fome”, tem três contos cujo início é igual. Eu estou em uma sala
escura, de uma clínica oftalmológica, e pessoas que estão ali me contam pedaços
das suas vidas, que transformo em contos.
Apesar da crítica ainda não ter discutindo com o cuidado
que merece, teu livro “As Confissões Prematuras” é uma novela diferente, tem
uma trama diferenciada, não linear, apresentando só três personagens (o gordo,
o magro e a mulher). Como se deu a idéia e a construção deste livro?
Foi quando eu estava
na quarta para a quinta versão do “Nur na Escuridão” e não consegui mais ir
adiante. Eu precisava terminar o romance, mas não conseguia mais ir adiante.
Foi quando disse para a Eglê: “vou ver se pego alguma coisa que seja
inteiramente fora do meu mundo ficcional, que é Biguaçu e Florianópolis.”
“Tenta!” “Se eu conseguir isto, talvez possa retomar o ‘Nur’.” Então pensei em
três personagens sem nome, numa cidade em que nada pudesse ser identificado e
onde as únicas referências seriam o gordo, o magro, a mulher e uma janela
iluminada em um prédio, à noite, e onde na se via mais nada. E incidentalmente
tem uma passagem num hospital. Fiz uma primeira versão, e nesta já senti a
necessidade de incluir mais um personagem secundário, que pode ser o autor mas
não o é, é um outro autor que se intromete ali dentro, e de repente até o
leitor. Fiz uma coisa, que também não é nova, onde o livro é narrado, ao mesmo
tempo, na primeira, na segunda e na terceira pessoa. Isto eu devo em parte ao
Miguel de Unamuno, que tem um romance chamado “Niebla”, um livro muito bom onde
um personagem se rebela contra o que está sendo escrito. E na verdade são dois
personagens. Primeiro a mulher, que na máquina de escrever do leitor ou do
autor, escreve uma carta que é publicada na íntegra; e no fim do livro tem a
carta do gordo. Só que enquanto que a carta da mulher é publicada na íntegra, a
do gordo é recheada de observações de um pseudo-autor, onde este concorda ou
não concorda com o que o gordo está dizendo. Agora tem uma coisa curiosa. Passei
este livro para o Fábio Brüggemann e o Péricles Prade, da editora Letras
Contemporâneas. Não tentei uma editora de fora porque eles iam dizer: “puxa,
isso não tem nada a ver com a tua literatura.” Tem e não tem! O livro saiu e em
menos de dez meses e esgotou a primeira edição. Muitas pessoas me contataram
dizendo que neste livro era um outro Salim Miguel. Não, é o mesmo, porque não
consigo ser, como outros escritores, 350, como diria Mário de Andrade. Mas foi
uma experiência curiosa. Tem inclusive uma publicação da Universidade de
Brasília com dois textos discutindo este livro. Ele está com a segunda edição
esgotada, e quero ver se no próximo ano a Record tem interesse em lançá-lo
junto com outro livro meu, “As Várias Faces”, que é uma novela em três atos.
Tentei fazer uma peça de teatro, não consegui, mas também não consegui me
desgrudar da estrutura do teatro, então resolvi fazer uma novela em três atos.
“Jornada com Rupert”. Poderias falar um pouco sobre este
teu novo livro?
Penso que imigração e
colonização são iguais e são diferentes. Imigração é aquela família que vem de
fora, sozinha. A minha tia, por exemplo, em 1920 ou 21 se tocou sozinha para o
Brasil, maluca que era! Isso é imigração. Colonização é um grupo que já vem com
um espaço definido, já sabe para onde vai, embora não tenha a menor idéia de
como é este lugar. O que é “Jornada com Rupert”? “Jornada com Rupert” é a
colonização do Vale do Itajaí. Só que não faço um romance histórico, muito pelo
contrário. Eu pego Rupert, que é o protagonista do livro, e três famílias, e em
torno deles faço, durante um dia, um percurso que traz fragmentos da
colonização alemã no Vale do Itajaí. Não tem ordem cronológica. O romance
começa com o dia em que Rupert está saindo de Blumenau. De repente, no terceiro
capítulo, nós estamos em 1870, quando os avós e tios-avós estão chegando a
Blumenau. Em outro capítulo estamos no início do século passado, depois estamos
nos anos de 1940, depois em 1946, onde Rupert está em um bar com os amigos.
Então vou intercalando fragmentos com a colonização alemã. No final do livro
temos Blumenau e temos Rio de Janeiro, porque uma das personagens, filha de um
imigrante que chegou depois da guerra de 1914-18 e que vai abrir, em Blumenau,
uma relojoaria além de ser um excelente fotógrafo. Ele vai se casar com uma
blumenauense e da união nasce esta sua filha que, antes do Rupert, não consegue
mais viver em Blumenau e se toca para o Rio de Janeiro. Então, na parte final
do livro, nós temos intercaladas as cartas que ela manda para o pai e a
situação de Blumenau. E o livro se fecha na véspera de Blumenau completar cem
anos. Mas ali estão, como em outros livros meus, passagens da história do
Brasil. 1930 e Getúlio; 36, Plínio Salgado em Blumenau; 37, a Espanha sendo
invadida pelas forças do Franco, ajudado por Mussolini e por Hitler; 42, o
Brasil entrando na Guerra. Então tudo isso vai pontilhar para dar um contexto
da história do país neste período, o que já fiz no “Nur na Escuridão”. Então a
editora está acreditando no livro e eu também. Costumo dizer que o melhor livro
é aquele que se está escrevendo, senão não teria sentido continuar escrevendo.
Para terminarmos gostaria de abordar uma questão cujo
debate vem se tornando cada vez mais acalorado, que é o da existência ou não da
literatura catarinense. Existe uma literatura catarinense, ou podemos falar de
uma literatura produzida em Santa Catarina?
Gosto muito mais da
idéia de uma literatura feita em Santa Catarina. Em 50, quando trabalhava no
Diário da Manhã, fiz um debate em cima desse tema: Literatura de Santa
Catarina. Porque literatura catarinense é muito mais vago. Literatura de Santa
Catarina pode ser feita aqui, mas não necessariamente em cima de temas de Santa
Catarina. Acho que nós temos em Santa Catarina, e já tínhamos no passado
também, nomes representativos que trabalham, ou não, em cima de temas
fotonossos. Por exemplo, tem o livro do Othon D’Eça, que este ano está no
vestibular, o “Homens e Algas”, que é um livro importantíssimo. Tem o Virgílio
Várzea e, do Grupo Sul para cá, há muitos nomes representativos. Em Santa
Catarina nós tivemos um movimento importantíssimo que foi o “Idéia Nova”, de
Cruz e Sousa e Virgílio Várzea. Depois vem a geração da revista Terra, da
Academia Catarinense de Letras, mas se tu pegares os membros que criaram a
Academia, não tem nenhum que tenha deixado uma obra literária, não só na
ficção, mas também no ensaio, na crítica e na historiografia. Tem, depois,
alguns acadêmicos que vão surgir, como o Othon D’Eça, o Oswaldo Cabral, o
Almiro Caldeira. A partir do Grupo Sul criou-se a consciência de que em Santa
Catarina há um campo para todas as áreas de cultura, não só literatura, mas
cinema, artes plásticas, música. Um dos nomes mais representativos da música
clássica é o Edino Krieger, e o pai dele, o Aldo Krieger é outro nome
importante. Na pintura nós não temos só Vitor Meireles, tem Martinho de Haro,
tem Hassis entre outros.
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