Em 1985 fui aluno do Colégio de Aplicação, na cidade Florianópolis. Tive bons colegas e excelentes professores. Embora eu fosse um aluno desinteressado e malandro, no que diz respeito aos estudos, eu tinha respeito pelos professores, ainda que muitas vezes eu conversasse bastante. Nunca fui de responder ou bater boca com qualquer professor. Dentre os docentes da época, lembro-me dos seguintes nomes: Clarmi (Português), Herta (Biologia), Jandira (Filosofia), Junior Biava (Física), Cuneo (Química Orgânica), Naoraldo (Matemática), Carmem (História), Elisabete (Inglês), Toninho (Educação Física)... sei que esqueci de alguém e peço desculpas por esta falha... Foi um ano de aprendizado e de amizade. Muitos anos depois reencontrei alguns professores pelas estradas da vida, por acaso... Depois de muitos anos eu fui trabalhar no Colégio Catarinense e conheci muitos alunos. Um dia, ao ler o nome completo de um deles, notei um sobrenome que era familiar e ao questionar o aluno sobre o parentesco com uma pessoa, a resposta foi afirmativa: "É minha mãe". Em seguida eu contei para ele que tinha sido aluno dela e lembrava muito bem da minha ex-professor. Passado mais alguns anos, quando comecei a me interessar pela escrita, eu descobri, pesquisando na internet, sobre autores catarinenses, que aquela minha ex-professora havia publicado um livro e assim, fiz contato com ela, via Facebook. A partir desse contato, eu fiz umas perguntas para ela, que abaixo coloco à disposição de vocês.
1) No seu blog
(blogpalavra.com.br), a senhora diz que: “é uma pessoa apaixonada pela língua
portuguesa, pela riqueza de seu vocabulário, pela musicalidade com que soam
suas palavras, pela interação que possibilita a povos de distantes territórios,
pela harmonia em sua sintaxe”. Como essa paixão pela língua portuguesa teve
início? Foi no colégio, na universidade, em casa? Comente...
R.: Renato, acho que
fui beneficiada pela família em que cresci e pelo momento em que frequentei
meus anos básicos de escolaridade. Em minha casa, lia-se muito: meu pai era
daqueles senhores que liam jornais, comentavam os fatos políticos, acompanhavam
os acontecimentos (Imagine que ele tinha guardados os mapas do avanço dos
aliados durante a Segunda Guerra Mundial publicados pela Revista O Cruzeiro!).
Minha mãe, embora até os dez anos só falasse alemão, mantinha sua biblioteca em
casa e a dividia conosco. Antes dos catorze anos, eu já tinha lido, entre
outros, todos os de José de Alencar, Hemingway, os três primeiros volumes de Tarzan
dos macacos, de Edgar Rice Burroughs, e até mesmo autores tidos então como
perigosos, como Júlio Ribeiro. Eu tinha uma prima, já professora, que narrava
com detalhes todos os livros que lia, uma maravilha!
Além disso, sou da
geração de O Tico-tico (uma publicação mensal dirigida às crianças): ali se
aprendiam jogos, fatos históricos, cantos, lendas; despertava-se para leituras
mais complicadas. Na adolescência, lia-se também o Reader’s Digest.
2) De acordo com a
primeira pergunta, dê um exemplo de musicalidade com que as palavras soam...
R.: Nessa afirmativa
vai um pouco de brasilidade: existe algo mais doce e musical do que o Português
falado no Brasil? Nossos múltiplos sotaques, que parecem canções? Fico
encantada ouvindo os irmãos nordestinos, também os mineiros, os paulistas, os
gaúchos... E o nosso manezinho? Onde encontar música mais agradável aos
ouvidos?!
3) A senhora foi
minha professora de português, no ano de 1985, no Colégio de Aplicação – UFSC.
Lembro-me de um exercício, de um exemplo, quando fizemos uma leitura e análise
da letra da música “Língua”, escrita por Caetano Veloso. Guardo ainda, algumas
explicações sobre o conteúdo e seus detalhes. Por exemplo: “Gosto de sentir a
minha língua roçar a língua de Luis de Camões”; “Gosto de ser e de estar”. Se
não me engano e se aprendi direito, o que a senhora ensinou, esses dois trechos
fazem referência aos idiomas português e inglês. O verbo to be, que pode ser e
estar e que na língua portuguesa utilizamos dois verbos/palavras, pois são duas
ações diferentes... Sendo um crítica ao excesso de palavras e expressões da
língua inglesa, quando deveríamos nos aproximar mais do português que se origina
de Portugal. É isso mesmo?
R.: Sim. Naquela
música, Caetano apresenta uma homenagem à Língua Portuguesa, de certa forma,
advogando o respeito a suas formas, seja na valorização de sua origem “roçar a
língua de Luís de Camões”, seja nas especificidades que a enriquecem “ser e
estar” (a maioria dos idiomas tem apenas uma forma para designar o que é permanente
e o que é transitório). Não sei o que ele pensaria hoje. Às vezes Caetano me
causa espanto.
4) Ainda no seu blog,
assim está escrito: “Também escrevo, um pouco, nas horas vagas”. Sobre o que a
senhora mais gosta de escrever? Contos, poemas, crônicas, artigos científicos?
R.: Não sei trabalhar
a poesia! Já desisti.
Escrever crônicas é o
mais divertido: surge como um olhar desesperançado sobre o ser humano, mas com
um viés bem-humorado, uma certa condescendência, um certo riso.
Os contos se impõem
como uma necessidade de dizer, uma percepção que grita, mas se esconde atrás
das palavras, atrás de uma história.
Os textos técnicos
surgem como uma exigência do trabalho. Procuro usá-los como forma de
comunicação com meus alunos. Não têm ambição maior.
5) Penso que a
escrita e a leitura estão ligadas direta e fortemente, mas geralmente, cada
pessoa tem uma preferência. A senhora prefere ler ou escrever? Justifique...
R.: Ler. Ler me
alimenta, é quase uma justificativa para continuar. A curiosidade sempre chama
para novas leituras. Nos últimos anos, tentando entender o ser humano, tenho
escolhido leituras que me permitam acompanhar a trajetória humana.
6) Conte para nós
sobre o seu livro, Sombras e Silhuetas.
a) Em que ano ele foi
publicado?
b) Do que se trata?
c) A publicação foi
por conta própria ou foi financiada de outra forma?
d) Quantos exemplares
foram publicados?
e) O livro vendeu
bem?
R.: Sombras e
silhuetas é resultado de uma série de coincidências felizes. Eu estava num
daqueles períodos de observação intensa, em que tudo parece virar texto. Reuni
um punhado de relatos sobre momentos vividos por mulheres em seu cotidiano e
levei para Eglê Malheiros, esposa do escritor Salim Miguel, ela também
escritora, ler e avaliar. Ela me incentivou (acredito que, se ela me tivesse
desencorajado, eu jamais escreveria uma linha sequer). Talvez eu nunca possa
dizer a ela (que hoje mora em Brasília) o quanto seu olhar acolhedor e sua fala
tranquila representaram para mim naquele momento.
Também a Editora da
UFSC, sob a direção do professor Alcides Buss, oferecia a seus leitores a
Coleção Ipsis Litteris, voltada para a poesia, o conto e o romance. Aprovada
minha proposta pelo Conselho Editorial, Sombras e silhuetas foi publicado em
1998, numa edição de setecentos exemplares. Sendo uma publicação da EDUFSC, não
tive despesas. Não sei dizer se deu algum lucro à Universidade. Hoje só pode
ser encontrado em sebos. Preciso pensar em editá-lo novamente.
7) No seu blog é
possível encontrar dicas de como escrever melhor. Na sua opinião, a maioria dos
brasileiros escreve bem ou não? Justifique...
R.: Aprender a
escrever é um processo. Algumas profissões exigem essa habilidade. Tenho
percebido um crescente abandono no cuidado com a Língua, tanto falada quanto
escrita, entre os brasileiros. Na verdade, é um abandono autorizado. Não sei o
que se pretende, já que a manutenção da Língua é uma das garantias da sobrevivência
de um povo.
8) Ser
professora é uma vocação, mas também é um desafio. Quais os aspectos e/ou
fatores que tornam a arte de ensinar prazerosa e ao mesmo tempo, desafiadora?
R.: Ensinar é sempre
um desafio. Ligado ao profissional, está o ser humano, com seus erros e
acertos, seus medos, suas inseguranças. Fundamental é acreditar, estabelecer
cumplicidade, ter claros os objetivos do trabalho.
Se eu pudesse voltar
ao passado, a única coisa que faria diferente seriam as vezes em que perdi a
paciência. Foram poucas, e me lembro de cada uma.
Agradecer,
agradeceria sempre, por cada vida que se somou à minha, que me deu oportunidade
para crescer e aprender.
Para que você
acredite em como é funda essa parceria, vou relatar um fato. Teve um período em
que minha saúde ficou muito prejudicada e precisei fazer várias cirurgias. Isso
mexia muito comigo, me deixava receosa. Numa dessas cirurgias, voltando da
anestesia, na sala de recuperação, senti alguém sentado a meu lado, segurando
minha mão, e uma voz que me dizia “Eu estou aqui, professora. Está tudo bem. Eu
estou aqui”. Quem era? Não importa: era meu aluno. Sim, estava tudo bem.
9) Quais os problemas
mais comuns na docência? É o excesso de aulas a preparar e provas a corrigir? É
a falta de interesse dos alunos? É a remuneração baixa?
R.: Para mim, o mais
difícil sempre foram as avaliações. Gostaria de ensinar sem avaliar.
No que se relaciona à
atividade do magistério, somam-se vários problemas: desvalorização do
conhecimento e, consequentemente, do professor; descaso com a educação;
abandono das escolas a ponto de se tornarem sucateadas; distanciamento entre os
objetivos dos planos de ensino e a realidade da população. São tantas coisas. É
preciso um olhar atencioso para o assunto.
10) “Se você acha que
a educação é cara, experimente a ignorância”, Esta frase é atribuída a Robert
Orben. O que a senhora pode comentar sobre ela?
R.: Não há o que
discutir: o conhecimento nos torna melhores, mais capazes, mais irmãos.
Qualquer povo que apostar na ignorância fica condenado a se destruir.
11) Hoje, eu penso
que as escolas deveriam ter mais aulas de português, de redação, de oratória...
Existem muitas disciplinas que ensinam coisas que a maioria dos alunos não
utilizam durante a vida, principalmente química, física, matemática (eu nunca
utilizei o que aprendi sobre logaritmo)...
A escola, como espaço
de ensino-aprendizagem, ao meu ver, erra de forma grave, na construção da grade
curricular e nas ementas. Esta é a minha opinião. A senhora concorda, discorda,
enfim, qual a sua opinião?
R.: Minha mãe dizia:
“Saber não ocupa lugar”. Fiel a esse raciocínio, penso que tudo o que
aprendemos nos aprimora. Pode não ter uso prático na carreira que escolhemos,
mas desenvolve o raciocínio, a capacidade de observação, de dedução, de
associação. Somos a soma de tudo o que lemos e aprendemos.
12) Rubem Alves
afirmou: “Escrever e ler são formas de fazer amor. O escritor não escreve com
intenções didático-pedagógicas. Ele escreve para produzir prazer. Para fazer
amor. Escrever e ler são formas de fazer amor. É por isso que os amores pobres
em literatura ou são de vida curta ou são de vida longa e tediosa”. Peço que
comente essas palavras...
R.: A leitura só frui
se for prazerosa. Ler por obrigação tem outro significado, se bem que possa ser
necessária. Escrever é uma forma de comunicar. É um encontro com o outro; um
diálogo.
13) Um livro que lhe
marcou positivamente? E por quais motivos este livro foi marcante?
R.: Os Buddenbrook,
de Thomas Mann. Eu já lera E o Vento Levou, de Margaret Mitchell, em minha
adolescência, e, ao acompanhar a decadência dos Buddenbrook, despertou em mim a
consciência das grandes mudanças que os povos e as sociedades sofrem com o
advento de novos valores, novos costumes, grandes tragédias. Passei a olhar a
história dos indivíduos de uma forma mais abrangente, imbricada na história da
humanidade. Também fiquei mais exigente em minhas leituras.
14) Muitos homens
iniciaram uma nova era na sua vida a partir da leitura de um livro. Essas
palavras são de Henry David Thoreau. Indique um bom livro para quem deseja se
aventurar no hábito da leitura, independente do gênero...
R.: Meu conselho é:
“Leia, leia sempre. Jornal, face, whatsApp, instagram, letra de música. Leia.
Você vai encontrar o assunto que lhe agrada, a história que vai transportá-lo
para o mundo das descobertas”. Há muito a humanidade deixou de ser uma
sociedade ágrafa. Dizer que não gostamos de ler é pura ilusão: lemos o tempo
inteiro.
15) A língua
portuguesa é o idioma oficial em diferentes países, porém, muitas vezes,
existem diferenças na forma de escrever e no significado. Essas diferenças
podem ser consideradas normais? Explique...
R.: A Língua é um
organismo vivo, sofrendo permanentes transformações no tempo e no espaço. Isso
é absolutamente normal. Os regionalismos, aqui mesmo, tornam a Língua mais
pitoresca.
Mas existe uma
linguagem oficial, comum a todos os países que falam Português, mantida de
comum acordo. Qualquer alteração exige uma discussão com representantes de
todos os países do grupo. Aprovada a alteração por essa comissão, ela é levada
ao Congresso de cada um dos países para nova discussão e posterior aprovação.
Se não houver consenso, nada se altera. Não é porque um grupo qualquer resolve
mudar a Língua que isso será feito.
Já o linguajar
adotado por diferentes “tribos” é enriquecedor.
16) Portugal tem
dentre os escritores famosos: Fernando Pessoa, Eça de Queiroz, Luis de Camões,
José Saramargo, etc.
No Brasil temos: José
de Alencar, Monteiro Lobato, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade,
Machado de Assis, Clarice Lispector Graciliano Ramos, Mario Quintana.
Santa Catarina possui
Cruz e Souza, Lausimar Laus, Flávio José Cardoso, Silveira de Souza, Urda
Klueger, Virgílio Várzea, Antonieta de Barros entre outros nomes. Com tantas
referências e exemplos, por quais motivos, boa parte das pessoas tem medo de
escrever?
R.: Exatamente por
isso. Se admiro muito a excelência, tenho medo de me expressar. É preciso
primeiro vencer a barreira.
17) Já que estou
conversando com uma professora de português, eu aproveito para confessar a
minha dificuldade com o uso da crase. Como faço para entender a regra e não
errar mais nessa questão? A senhora tem algum macete ou dica para me auxiliar?
R.: Renato, é muito
simples, desde que você se atenha ao significado da crase. Crase é fusão de
preposição com artigo (a+a) ou de preposição com o a dos pronomes aquele,
aquela, aquilo (a+aquele, etc.). Quando e por que acontece?
Temos situações em
que um termo solicita um complemento. Veja:
• Confio em você.
• Tenho confiança em você.
• Ele está confiante em encontrar um
emprego.
Note que confio,
confiança e confiante são acompanhados da preposição em.
Observe as orações:
• Ele tem confiança na vida. Aqui empregamos
a preposição em contraída ao artigo a = na
• Ele sempre contou com a ajuda da
família. Aqui, a preposição com seguida do artigo a
O mesmo acontece
quando um termo for regido pela preposição a:
Gilberto ficou a
esperar.
Gilberto ficou a a
(à) espera de Maria.
Dedicou sua obra a a
(à) pessoa mais importante de sua vida.
O que chama a atenção
é seu amor a a (à) vida.
Você já deve ter
percebido que só se dá a crase em complementos (objeto direto preposicionado;
objeto indireto; complemento nominal) ou em adjuntos (que informam uma
circunstância): à vontade, às turras, às cegas e são formados com a+a (as); na
entrada= à entrada, na proporção em que= à proporção que. Neles sempre se
encontra a fusão da preposição a com o artigo a.
Aquelas dicas todas
que a gente aprende são decorrentes dessa norma. Basta entender a relação de
complementação.
18) Na imprensa
brasileira, a senhora consegue perceber, notar erros de português com
frequência? Se sim, quais os erros mais comuns, seja nos jornais impressos,
televisão, rádio, revistas...?
R.: Erros
gravíssimos: abandonaram totalmente as preposições e conjunções; desconhecem as
concordâncias, as formas do subjuntivo; não distinguem sequer mal de mau.
Dizem que os textos
são elaborados por estagiários sob supervisão. Supervisão de quem? Os
jornalistas devem ter abandonado seus estagiários ou já não interessa prezar
pela língua portuguesa. Esse descuido se encontra em toda a imprensa escrita,
tradicional ou virtual.
19) O Brasil por ser
um país territorialmente imenso, possui muitos regionalismos, na fala e também
na escrita. Essa característica é benéfica ou atrapalha na hora de aprender e
de estudar o nosso idioma?
R.: Essa
característica nos torna múltiplos e unos a um só tempo. É natural que assim
seja.
20) A internet, mesmo
sendo uma ferramenta incrível, parece que ela atrapalha a atual geração, a
desenvolver o raciocínio para escrever bem, assim como está diminuindo o
vocabulário das pessoas. A senhora concorda ou discorda com esta afirmação?
Justifique...
R.: A internet é um
incrível meio de aproximação. Para o bem e para o mal. Basta saber usá-la. O
que acontece é que a facilidade que oferece nem sempre é aproveitada.
Com relação à atual
geração, essa garotada irá muito mais longe do que supomos. Se lhe for
oferecida a Escola de que precisa, a orientação necessária e liberdade para a
descoberta, poderemos acreditar no futuro.
21) A senhora tem
intenção de publicar outro livro? Se sim, o que ele abordará e o que falta para
que ele fique pronto?
R.: Tenho participado
de algumas publicações coletivas. Também aproveitei a reclusão forçada e
escrevi, com minha prima Maria Ester, uma narrativa sobre nossos antepassados
germânicos. Foi um mergulho interessante.
Meus irmãos têm
pedido que eu escreva algo sobre nosso pai. Talvez... Se eu conseguir levantar
os dados necessários.
É claro que esses
escritos são destinados à família apenas.
No momento, estou
transformando o material que publiquei no blog em um livro sobre redação.
Estou pensando também
em reunir algumas dezenas de crônicas já escritas.
Por que a crônica?
Li há algum tempo a
declaração de um escritor que afirma que, ao envelhecer, ficamos debochados.
Acho que é isto: a crônica permite, talvez não o deboche, mas a ironia que a
vida desperta.