terça-feira, 20 de abril de 2021

EDITAR UM LIVRO É SEMPRE UM RISCO - Edição em Portugal

Numa grande estante cheia de livros, cabem histórias provenientes de lugares geograficamente distantes, autores que se cruzaram em vida e outros que nunca se conheceram. Por muito diversas que possam ser as narrativas, as edições e o estilo de escrita dos próprios autores, há um fator que têm sempre em comum: alguém escolheu editá-los. Como escolher um livro para editar? É uma pergunta com múltiplas respostas.


De Carolina Franco


Na viagem que um livro percorre até chegar à estante cheia de outros títulos, seja numa livraria ou numa biblioteca, existe um trabalho demorado, que implica decisões a cada passo que podem ditar o posicionamento desse mesmo livro. No trabalho de edição, o primeiro passo pode ser o mais entusiasmante, mas será, certamente, o que implica mais risco. Escolher editar um autor em detrimento de outro, ou um título desse mesmo autor ao invés de outro, pode representar um risco. Não é fácil prever o seu impacto no panorama literário, sobretudo se for uma voz jovem e dissidente. Mas Carmen Serrano (Grupo Leya), Diogo Madre Deus (editoras Elsinore e Cavalo de Ferro) e Gonçalo Gama Pinto (Agência Literária Ilídio Matos) garantem: vale sempre a pena entrar na viagem.

Os motivos que levam um editor a escolher um livro para editar são variados, encontrando-se intrinsecamente ligados ao perfil literário de cada editora ou chancela editorial. Como se ao escolher um autor e determinado livro para traduzir se estivesse a acrescentar uma camada à identidade do grupo editorial, e uma espécie de membro à sua família sempre em crescimento. No caso de obras traduzidas, optar pela sua edição pode ser, também, o construir de uma ponte com o que foi feito ou o que se está a fazer no contexto literário do país em que foi escrito.

Carmen Serrano, editora do Grupo Leya responsável pela publicação de ficção traduzida, conta que “a definição das linhas orientadoras dos catálogos das chancelas é importante para a criação da identidade de cada uma delas mas, após esse momento inicial, a escolha dos livros é bastante pessoal”. Embora adeque os critérios de seleção aos géneros que publica, dentro do universo da ficção, o que a move é a relação que estabelece com o texto. “Seja pela escrita, pela voz do autor, pelo enredo, o tema, os personagens ou, idealmente, pela junção de todos estes fatores”, a editora mergulha “totalmente nos universos dos escritores”.

Se no caso da Leya o processo de edição parte de um género que se estende a várias editoras de um mesmo grupo, no caso de Diogo Madre Deus, editor na Cavalo de Ferro e Elsinore, existe um olhar para diferentes géneros literários que integram as editoras que gere. “Na Cavalo de Ferro e Elsinore, apesar de distintas, preocupo-me, no interior da literatura, com certa literatura, com a coerência do conjunto, com a construção de um catálogo de autores que sejam afins”, explica.

Editar um livro é, nas palavras da editora da Leya, “uma imprevisibilidade desconcertante, entusiasmante e motivadora”. Optar por editar um livro com bastante sucesso a nível internacional não significa necessariamente que o mesmo terá sucesso em Portugal; aliás, “é impossível prever um grande sucesso”, garante. “Se um livro ou autor ganhar um prémio literário importante ou visibilidade internacional, a probabilidade de se destacar em Portugal é maior, claro, mas será sempre uma incógnita até ao momento em que o livro vai para as livrarias.” Diogo Madre Deus arrisca mesmo dizer que “em Portugal editar um livro é, por si só, um risco”. “Não há propriamente nenhuma garantia, mesmo quando falamos de traduzir um best seller. Só se percebe se o investimento valeu a pena depois de editar”, explica. Além disso, importa referir que “o resultado de vendas não é sempre o único argumento a contribuir para essa validade.” Sobre best sellers, a editora do Grupo Leya acrescenta que “em países como Portugal, Espanha, França, Itália, Reino Unido, Alemanha, as listas de livros mais vendidos têm inevitavelmente alguns títulos em comum, mas a diversidade é maior do que a homogeneidade”.


FEIRAS E AGENTES LITERÁRIOS: AS PONTES DA EDIÇÃO

Há já 64 anos que a Agência Literária Ilídio Matos tem um papel preponderante na edição de livros em Portugal. Representa editoras e agências estrangeiras e, segundo o atual diretor, Gonçalo Gama Pinto, o seu trabalho passa sobretudo por “proativamente fazer a ponte entre as editoras portuguesas e os catálogos” que representa, “tentando encontrar as editoras certas para determinados títulos e autores”.  No caso dos clientes estrangeiros, Gonçalo Gama Pinto conta que a mais-valia do agente local é “conhecer bem os catálogos estrangeiros com que se trabalha e os catálogos das editoras portuguesas”. “Para além das novidades, um trabalho que considero importante é o de ‘vasculhar’ as backlists e sugerir títulos que, por alguma razão, estão indisponíveis há muito em Portugal ou que nunca foram sequer cá publicados”, partilha.

A agência é responsável por todo o processo que implica o momento inicial da edição: “desde o envio de manuscritos para avaliação à negociação dos direitos de tradução, preparação de contratos, facilitar o contacto com autores para eventuais deslocações ou outras ações de promoção do livro”. O diretor aponta como principais critérios para a escolha de um livro que venha a ser traduzido e publicado em Portugal, “o fator comercial” e, naturalmente, “a qualidade ou pertinência da obra” — sendo que este último se aplica “sobretudo às editoras mais pequenas, independentes, e que fazem hoje um trabalho mais arriscado”.

“É de realçar a importância de certas tendências internacionais, o trabalho das editoras em oferecer aos leitores portugueses o que se passa lá fora”, diz o diretor da Agência Ilídio Matos. Quanto à visibilidade dos autores editados, Carmen acredita que “os agentes literários continuam a desempenhar um papel fundamental, principalmente na divulgação de jovens autores e primeiras obras, uma vez que os autores consagrados já beneficiam de canais de comunicação privilegiados”, sendo, por isso, feiras literárias como as de Londres (março/abril) e de Frankfurt (outubro) lugares importantes para o encontro.
Como lembra Gonçalo Gama Pinto, a dimensão da editora dita algumas das preocupações existentes na seleção. Em grande parte dos casos, os agentes representantes de autores e as feiras internacionais trazem as novidades e oportunidades; segundo Diogo Madre Deus, estes “sugerem novidades editoriais: aquilo que neste momento se produz ou é valorizado”. “É muito importante, essencial, dependendo das editoras, mas nem sempre aquilo que nos é sugerido por esta forma é o melhor ou o que queremos”, diz o editor, acrescentando que, no caso da Cavalo de Ferro, há outros critérios de seleção como “as leituras, as referências pessoais, as conversas e opiniões que nos levam a determinado livro ou autor”.

O QUE PESA NA TRADUÇÃO DE ALEMÃO PARA PORTUGUÊS?

Atendendo às décadas de experiência da sua agência, Gonçalo Gama Pinto nota que “atualmente se publicam mais livros, um pouco por todos os géneros”. No caso dos títulos de língua alemã, a sua “colaboração com várias editoras é mais recente”, uma vez que a língua foi sendo um obstáculo, “já que o acesso ao texto original é mais difícil”. “Mesmo quando o interesse de uma editora num determinado livro é notório, acaba sempre por se perder algum momentum à espera que uma eventual tradução (numa língua “legível”, como o inglês, o francês, o italiano ou o espanhol) fique pronta”, contextualiza. E outra questão a ter em conta é o preço da tradução, questão para a qual os programas de apoio, bem como os portais LETRA e Litrix, são bastante importantes.

Diogo Madre Deus acrescenta que “há muito pouca edição de autores alemães contemporâneos no nosso país”, mas que “não é problema exclusivo desta língua”. Além do custo da tradução, acredita que a expressão ainda pouco pronunciada de autores alemães se deve à “ainda fraca divulgação, aos poucos tradutores disponíveis, o predomínio anglosaxónico, a reduzida dimensão da nossa oferta”. Numa análise positiva, Gonçalo Gama Pinto diz que “talvez se tenha arriscado, timidamente, um pouco mais nos últimos anos, no que diz respeito a nomes desconhecidos ou mesmo novos nomes do panorama literário alemão”.

“Autores clássicos como Mann, Musil, Hesse, Sebald, Fallada, Zweig, Grass, acabamos por encontrar sempre nas livrarias, mas já tem sido possível fazer chegar aos leitores portugueses nomes novos, desconhecidos ou, embora estabelecidos, pouco traduzidos em Portugal, como Sasha Marianna Salzmann, Marion Poschmann, Daniel Kehlmann, Eugen Ruge, Robert Menasse ou Judith Schalansky (a ser publicada em 2021).” Vale sempre a pena arriscar.


AUTORA

Carolina Franco é jornalista no Gerador, e olha para assuntos internacionais no Shifter. Nascida no Porto, aprofundou o seu interesse na cultura e na arte enquanto estudou na Escola Artística de Soares dos Reis. Licenciou-se em Ciências da Comunicação pela Universidade Lusófona do Porto, passou uns tempos em Ljubljana e, na procura por outros olhares sobre o mundo, começou o mestrado em Antropologia – Culturas Visuais da Universidade Nova de Lisboa, onde se encontra agora.


https://www.goethe.de/ins/pt/pt/kul/sup/lit/22179254.html?fbclid=IwAR2NrqfxBLC9ykz_B26DSdrPoK1zvYDk6x1OEhbvzOMyWh4SjwqTO0zrHmY

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

OS LIVROS NÃO PRECISAM DA AMAZON


Por Tadeu Breda, na Editora Elefante

A Amazon entrou em minha pauta de discussões e preocupações em abril de 2019, quando eu soube que a empresa comercializava os livros da Elefante por um preço que nem nós conseguíamos praticar, mesmo nas vendas diretas em nosso site, sem intermediários. O fato me motivou a publicar um textinho no blogue da editora e em nossos perfis no Instagram e no Facebook, informando os leitores sobre essa que, para nós, foi uma surpreendente — e desagradável — descoberta.

Na época, a postagem foi compartilhada algumas dezenas ou centenas de vezes, provocou discussões no espaço dos comentários nas redes sociais e inspirou outras postagens sobre o assunto, em perfis de pessoas interessadas em livros e no mercado editorial — um universo muito restrito. Mais de um ano depois, em julho de 2020, o texto voltou a ser compartilhado, agora por círculos mais amplos, porém ainda muito reduzidos — porque minúsculo é o público leitor brasileiro e microscópica a parcela da população que se dispõe a discutir o mundo dos livros, ainda mais a partir de um artigo assinado por uma pequena editora.

Acredito que o texto em questão, intitulado “Amazon destrói”, ressuscitou devido à notícia de que a fortuna pessoal de Jeff Bezos, CEO da empresa, cresceu treze bilhões de dólares em apenas 24 horas no dia 20 de julho — fato muito revoltante para as poucas almas que não foram seduzidas pelo neoliberalismo selvagem e ainda se indignam com a concentração de renda neste país e mundo, sobretudo em tempos de pandemia, quarentena e crise.

Esse salto vertiginoso no patrimônio do dono do maior site de venda de livros do planeta (é só por isso que estou dedicando meu tempo ao assunto: porque edito livros no Brasil e a Amazon os vende aqui) me motivou a escrever outra carta aos leitores da Elefante, a qual não “viralizou” sequer entre os recantos livrescos do bairro onde eu moro, mas provocou alguns comentários sobre “democratização do acesso ao livro” e “você reclama, mas queria ser rico igual a ele”, os quais, no meu juízo, demonstraram a necessidade (que talvez seja apenas minha) de voltar ao tema com mais empenho.

Faz algumas semanas saiu uma pesquisa sobre as marcas que vêm à cabeça dos brasileiros quando pensam em comprar livros on-line. A Amazon, isolada na dianteira desse ranking chamado “top of mind”, é a resposta de 51,2% dos entrevistados. Acredito que essa liderança absoluta se deve principalmente à imagem construída pela empresa de que os preços dos livros que vende são imbatíveis (e também de que é muito “eficiente”; falarei disso mais adiante).

A Amazon alardeia seus famosos “preços mais baixos” em letras garrafais, mas, em caracteres menorzinhos, sem estardalhaço, informa a taxa do frete. Nossos olhos de consumidores treinados para pagar sempre mais barato (porque fomos ensinados que pagar mais caro, em qualquer situação, é coisa de otário) veem apenas a cifra de maior destaque, desviando a atenção do valor do envio. Quando finalizamos a compra, porém, ele é cobrado, claro. Não precisamos dizer aqui que, em compras on-line, o preço final do produto para o consumidor não é o que se anuncia com maior destaque, mas a composição deste com os custos do frete.

Por isso, no site da Elefante, passamos oito anos oferecendo frete grátis — sem exigir que, para ter direito ao envio sem cobrança adicional, os leitores pagassem mensalidade para ter acesso a uma espécie de “Elefante Prime”. Apenas em 2020 é que implementamos o sistema de frete compartilhado, em que a pessoa contribui com os custos de envio — por pedido, não por livro — com um valor de cinco reais. Por quê? Sabemos que o frete no Brasil é caro e não achamos justo jogá-lo totalmente no bolso do leitor que já está sendo muito gente fina comprando livros diretamente conosco.

Vamos fazer umas contas, pois.

Em agosto, quando fiz essa pesquisa, a Amazon vendia nossa edição de Contra Amazon, de Jorge Carrión — alguém dirá que isso comprova o amor da empresa pela liberdade de expressão —, por R$ 39,41, mais R$ 7,70 de frete, totalizando R$ 47,11; em nossa lojinha virtual, o mesmo livro, com frete, sai por R$ 54,90, uma diferença de R$ 7,79. (Se você for até uma livraria, onde se pode dar e receber “bom-dia”, pagará R$ 50). Calibã e a bruxa, de Silvia Federici, pela Amazon, custava R$ 44,01, mais R$ 8,49 de frete, totalizando R$ 52,50; em nosso site, o mesmo livro, com frete, sai por R$ 64,90, ou seja, R$ 7,40 mais caro. (Na livraria, fica R$ 60 e você leva na hora.)

São diferenças importantes — que, sabemos, pesam no orçamento cada vez mais apertado do trabalhador brasileiro, cada vez mais precarizado —, porém não tão expressivas como quer fazer crer o marketing da Amazon e o clichê dos comentários que defendem as práticas de mercado de Jeff Bezos por “facilitarem o acesso da população à leitura”. Para quem não dispõe de algoritmos de última geração nem de robôs que empacotam livros nem de contas correntes com bilhões de dólares e nem fará fortuna com a mineração dos dados pessoais da clientela, até que estamos bem. Esse “detalhe” é importante: os usos que uma pequena livraria on-line, o site de uma pequena editora e a Amazon fazem das informações que você fornece no momento da compra são completamente diferentes. Posso falar pela Editora Elefante, e o que fazemos é mandar newsletters com nossas promoções e novidades. Já as gigantes companhias de comércio eletrônico…

Mas voltemos ao preço, esse grande chamariz sobre o qual se constroem impérios do “pague menos, nos enriqueça mais”: a diferença entre os preços praticados pela Amazon e pela Elefante, apesar de relevante — como citei acima, com todas as ressalvas tecnológicas e econômicas —, é menor do que o custo de duas passagens de ônibus, trem ou metrô em São Paulo (e aqui fica nosso veemente protesto pelo valor absurdo do transporte público, que é um direito do cidadão). Entretanto, há diferenças ainda menores que as apontadas.

Anseios, de bell hooks, era vendido pela Amazon em agosto por R$ 44,90, com frete de R$ 13,60, o que dá R$ 58,60; no site da Elefante, custa R$ 59,90, com R$ 5 de frete, um preço total de R$ 64,90. Aqui a diferença é de R$ 6,30. E, surpresa: No espelho do terror, de Gabriel Zacarias, era anunciado pela Amazon por R$ 29,10, com frete de R$ 9,99: total de R$ 39,99. No site da Elefante, o mesmo livro pode ser comprado, com frete, por R$ 34,90 — R$ 5,09 mais barato! Por essa, nem eu esperava.

Essas comparações são aleatórias e perdem toda a utilidade quando fazemos uma pré-venda. Nesse caso, os livros comercializados em nosso site sempre saem mais barato que na Amazon. Isso porque costumamos aplicar um desconto de 10% a 20% sobre o preço de capa — às vezes um pouco mais, dependendo das nossas intenções com o livro em questão —, além de oferecer frete grátis. Assim, o valor final para o leitor cai sensivelmente. Isso lança por terra, pelo menos quando falamos da Editora Elefante, a imagem de que a Amazon é imbatível nos preços.

Geralmente, abrimos a pré-venda de um título quando falta cerca de um ou dois meses para que ele seja impresso. É uma maneira de antecipar recursos financeiros para a remuneração de todo o trabalho necessário à produção do livro: desde adiantamento de direitos autorais e tradução (quando se trata de obras estrangeiras) até a gráfica, passando por preparação de texto, revisão, projeto gráfico, capa e diagramação.

A pré-venda é uma relação de confiança entre leitor e editora. O leitor paga adiantado, confiando que a editora entregará o livro na data prevista (mesmo que às vezes haja atrasos devido ao excesso de tarefas por aqui, desculpem). Em agradecimento pelos recursos que receberá antecipadamente — o que é uma bela ajuda econômica para quem nunca contou com investidores, como nós —, a editora oferece desconto e frete grátis. Mais do que uma simples ação de marketing ou fluxo de caixa, a pré-venda reduz o preço do livro — facilitando, pois, seu acesso — ao mesmo tempo que estreita os laços entre essas duas pontas do mercado editorial: leitor e editora.

A pré-venda também é importante para que a editora meça o interesse que um livro pode ter junto aos leitores e, assim, calcule de maneira mais acertada o tamanho da tiragem de um título. Publicar livros é assumir riscos. Quando não foram fundadas como passatempo cultural de milionários ou de seus herdeiros — o que costuma ocorrer com certa frequência no Brasil —, as editoras pequenas normalmente gozam de escassa autonomia financeira. Uma aposta errada pode ser fatal. A pré-venda ajuda a tomar a temperatura da receptividade do livro e, assim, reduzir as chances de que um lançamento encalhe olimpicamente, comprometendo a existência da empresa.

Um último argumento contra os preços supostamente imbatíveis de Jeff Bezos: quando reunimos títulos semelhantes de nosso catálogo em combos promocionais, e geralmente temos algum no site, nossos preços também são menores — muito menores — do que os praticados pela Amazon.

Mas, claro, o xis da questão não é o preço. Se, depois de ler este artigo, algum gerente da Amazon quiser reduzir ainda mais o valor de venda dos livros da Elefante (enquanto os possua em estoque, porque, como explicarei mais adiante, estamos trabalhando para que a empresa não consiga mais vendê-los), ele o fará tranquilamente, quebrando boa parte dos argumentos que desfiei acima, sem se preocupar em colocar em risco suas finanças: os sessenta e poucos títulos do catálogo de uma pequena editora brasileira são irrelevantes no balancete dessa gigante internacional, menos do que um fragmento do mais ínfimo grãozinho de areia na conta bancária do colosso varejista de Jeff Bezos.

Para os cidadãos com um orçamento pessoal que o permita, consumir — assim como todas as ações que tomamos na vida em sociedade — é um ato político. Trata-se de escolher a quem apoiamos com os poucos recursos financeiros de que dispomos. Mal comparando, não é isso que os governos fazem ao assumir o Estado? Uns destinam mais verbas a saúde e educação; outros tiram dinheiro de hospitais e escolas, e os alocam em presídios; outros preferem aumentar o orçamento das Forças Armadas e reduzir os programas sociais, enquanto jamais cogitam a possibilidade de interromper o pagamento dos juros da dívida aos bancos.

Uma vez que estamos presos no sistema capitalista, aparentemente sem saída no curto, médio ou longo prazo, nós, pessoas comuns, trabalhadoras e trabalhadores (em uma escala infinitamente menor e, claro, sem dispor dos instrumentos tributários e monetários ao alcance do poder público), podemos (sim, quem tiver condições mínimas para isso, claro) politizar nossas compras em todas as direções: do arroz ao sapato, da geladeira à cadeira, das férias ao livro — ainda mais em se tratando de livros políticos, como os que publicamos. Onde comprar? Por quê? Quem produz? Como? Com quais materiais? Provenientes de onde? Qual é a qualidade do trabalho envolvido na produção? Como se realiza a entrega? E várias outras questões.

Olhar apenas para o preço despolitiza a compra, pois desconsidera as condições sob as quais determinado produto ou serviço é fabricado e vendido ou oferecido. Quero acreditar que, hoje em dia, todo mundo se recusa a consumir bens produzidos por pessoas (em geral, migrantes) em situação de trabalho análoga à escravidão, mesmo que o preço seja, por razões óbvias, muito mais baixo.

Por que, então, comprar pela Amazon? Não, não tenho notícias de que Jeff Bezos ou seus representantes, direta ou indiretamente, escravizem funcionários — ou melhor, “colaboradores”. Por outro lado, os relatos sobre a precarização do trabalho nos galpões da empresa pululam na internet, em reportagens e artigos publicados por meios de comunicação sérios de vários países, sobretudo dos Estados Unidos, onde ficam os quartéis generais da companhia.

Isso sem mencionar o imperativo da pressa. Pra que tanta apologia à velocidade? Sim, é frustrante quando um livro comprado pela internet demora a chegar — ou, pior, quando se perde pelo caminho. Mas precisamos entender melhor o que consideramos uma “entrega rápida” e por que valorizamos tanto essa “eficiência”. Também é preciso dizer que há diferentes conceitos de rapidez e que cada um tem um preço, que não é apenas financeiro, mas também físico e emocional, e que recai sobre as pessoas que trabalham fazendo as entregas. Elas podem, por exemplo, estar sendo terrivelmente pressionadas por um algoritmo que avalia de maneira draconiana a prestação do serviço, sem querer saber se houve imprevistos no percurso. Isso sem falar na total desproteção trabalhista e social desses entregadores. O filme Você não estava aqui, de Ken Loach, lançado em 2019, encena muito bem o que estamos querendo dizer.

É um clássico da “gestão” econômica eficiente reduzir os custos de produção para aumentar os lucros. Qualquer pessoa sabe disso e é capaz de fazê-lo, mas, a menos que já tenha desistido de qualquer princípio de humanidade e abraçado o cada-um-por-si, haverá de convir que potencializar rendimentos à custa do bem-estar alheio é altamente condenável. Ainda mais se quem está ganhando é o homem mais rico do mundo, com uma fortuna maior que o PIB nominal de mais de 150 países, capaz de ver seu patrimônio crescer treze bilhões de dólares em um único dia — claro, são ações, números em uma tela de computador, mas não é isso que “vale” na economia atual?

Novamente, uma questão política. Haverá quem aplauda esse executivo de enorme sucesso, grande visionário, forte candidato a se tornar o primeiro trilionário da história da humanidade. Haverá quem sinta náuseas ao ler sobre sua obscena riqueza. Haverá quem sonhe ser como esse senhor, rolar em montanhas de dinheiro, acender charutos em notas de cem. E haverá quem deseje intensamente vê-lo condenado pelo tribunal do povo quando a improvável revolução chegar — outro dia, alguns manifestantes colocaram uma guilhotina de mentirinha em frente à sua casa.

Contudo, não quero reduzir a discussão sobre a Amazon a uma questão de consumo consciente e responsável. A partir do momento em que passa a concentrar tamanho poder, Jeff Bezos e sua constelação de empresas — Washington Post (mídia), Amazon Web Services (inteligência/informática), Amazon Prime Video (audiovisual), Blue Origin (aeroespacial), Whole Foods (alimentos) etc. — passam a ser um problema político, social e econômico que só pode ser tratado de maneira sistêmica.

Em vários momentos, escrevendo este texto, me deu vergonha imaginar que alguém pudesse pensar que estou propondo que a Amazon seja combatida pela consciência de cada consumidor. Não se trata disso. Estou convicto de que Jeff Bezos — e, consequentemente, a Amazon — deve ser detido. Em tempos de crise climática, pessoas que pensam como ele, gozam de tamanho poder e influência e defendem, por exemplo, que os seres humanos precisam colonizar outros planetas antes de esgotar os recursos da Terra, porque assim a economia não precisará parar de crescer — conforme foi publicado em um perfil do bilionário na revista piauí —, são um perigo notório para a humanidade.

Entretanto, não estou escrevendo este texto para defender a regulação da Amazon — até porque, quem a faria, os Estados, cuja institucionalidade foi construída para defender os interesses privados dos mais ricos? Os parlamentos, povoados de lobistas que financiam campanhas e compram votos de deputados e senadores? Não faço a menor ideia de como resolver esse problema. Aqui, quero apenas falar sobre a Amazon enquanto “livraria” on-line. Daí o recurso aos argumentos sobre a compra como ato político. Como leitores, infelizmente, é o que temos, hoje, à mão.

Como editora, temos ainda a possibilidade de não fornecer livros à Amazon. Afinal, somos nós que produzimos o livro e podemos escolher onde queremos vendê-lo. Assim, preferimos inverter a equação: não somos nós que precisamos da Amazon, é a Amazon que precisa de nós. Sem o produto do nosso trabalho, ela não tem o que oferecer. No caso da Elefante, temos certeza de que quem deseja nossos livros e os considera relevantes irá comprá-lo onde quer que ele esteja sendo comercializado, desde que se ofereçam condições de acesso, sobretudo às pessoas que vivem em cidades mais distantes dos grandes centros, desprovidas de livrarias e serviços expressos de entrega — daí a enorme importância dos Correios, tão combalido, tão sucateado, tão atacado, mas tão essencial a um país com as dimensões do Brasil, porque chega em praticamente todos os cantos desta terra.

No começo de agosto, a Amazon procurou a Editora Elefante, por e-mail, manifestando interesse em estabelecer uma relação direta para a comercialização de nossos livros; educadamente, rechaçamos a proposta. Fomos perguntados sobre as razões da recusa; dissemos que responderíamos oportunamente, com a publicação de um texto (este aqui). Dias antes de receber a mensagem da “maior loja de livros do Brasil, e um dos maiores sites de e-commerce do mundo”, como a gerente de contas apresentou a empresa, havíamos iniciado conversas com as distribuidoras com as quais trabalhamos, e por meio das quais a Amazon vinha tendo acesso a nossos títulos. Pedimos que deixassem de fornecer ao(s) CNPJ(s) da gigante varejista. E estamos sendo atendidos.

A cadeia de produção do livro é longa e tem uma grande capacidade de distribuir renda. Sem me referir à produção de papel, que é oligopolizada por empresas gigantescas e atrelada ao mercado internacional, posso dizer que o livro passa por basicamente quatro etapas antes de chegar ao leitor: autor, editora, gráfica e livraria — ou cinco, se incluirmos a distribuidora como intermediária entre a editora e a livraria; ou seis ou sete, se levarmos em consideração o empacotamento e o envio, quando a compra se dá pela internet e esses serviços são prestados por empresas específicas.

Assim que um livro é vendido, seu preço respinga em toda essa cadeia, com dezenas de trabalhadores beneficiados. E, quanto menores são as empresas envolvidas em cada etapa da cadeia, menor será o índice de automação dos processos e maior o número de pessoas remuneradas por essa venda. Com um detalhe: vender livros não é como vender outros produtos. Quem trabalha em pequenos estabelecimentos dedicados ao livro tende a gostar muito do que faz e, geralmente, não estaria igualmente feliz fazendo qualquer outra coisa. Eu, ao menos, não estaria, e sei de colegas que também não.

Há certo romantismo no mundo dos livros, e não devemos sentir vergonha de nutrir afeto por essas folhas encadernadas repletas de letras ou ilustrações que nos levam para longe e, às vezes, mudam nossa vida. Por mais brega ou hipócrita que isso possa soar a quem enxerga o livro apenas como uma commodity e acredita na ideia tão deprimente de que “livro bom é livro que vende” — o que, infelizmente, não é exclusividade da Amazon —, esse romantismo precisa ser lembrado e considerado em qualquer discussão sobre o mercado editorial no Brasil e no mundo.

Claro que o livro é um produto, mas não é apenas um produto. É uma ideia, um portal, uma possibilidade, um alento — às vezes, uma tremenda perda de tempo. Muita gente já escreveu maravilhosamente sobre isso; quero apenas sublinhar que é da milenar cultura livresca que nasce a brutal diferença, social e economicamente falando, entre comprar um livro na Amazon e no site de uma pequena editora — e, mais ainda, incomparavelmente, em uma livraria de bairro.

Existe um nível de cumplicidade entre o livreiro e o leitor que só pode se estabelecer entre as prateleiras cheias de livros de uma pequena livraria ou sebo. Olhares, gestos, conversas; dicas que um dá ao outro; e tantas coisas mais… Eu, como editor, já traduzi e publiquei um livro que só fiquei conhecendo após receber a recomendação de um amigo livreiro. Dentro de uma pequena livraria, portas se abrem — ou, como esse amigo livreiro prefere dizer, conexões se estabelecem. Na internet, mesmo em sites de editoras independentes, isso só se dá por e-mail ou WhatsApp — ou seja, não acontece.

Na Amazon e nas “livrarias” on-line que competem apenas pelo preço e pela rapidez na entrega, essa relação é, além de impossível, impensável, com um agravante: tais lojas virtuais se apropriam de todo o trabalho de editoras, livreiros, leitores, professores, jornalistas e formadores de opinião (ou influenciadores digitais) para dar a conhecer um livro. Fala-se do livro, resenha-se o livro, fotografa-se, divulga-se, recomenda-se, critica-se. Surge o interesse. Ao pesquisar onde a obra pode ser comprada, dá um Google, e os algoritmos sequestram a atividade humana (ainda que feita pelas redes) da conversa, da sedução, da publicidade — no sentido mais nobre do termo.

As livrarias de bairro são a redenção do mercado editorial? Infelizmente, por enquanto, não. O setor livreiro nacional ainda padece de pouco profissionalismo e, às vezes, falta de seriedade. A cena de uma editora tomando calote de livrarias — das grandes, como Cultura e Saraiva, mas também das pequenas — é mais comum do que deveria. Com a Elefante, acontece com muita frequência. Nesses casos, a gente conversa, negocia, insiste, briga; quando é possível, damos mais prazo, dividimos os acertos em mais vezes — o que está longe do ideal. Enquanto isso, de acordo com relatos de colegas editores que trabalham diretamente com a Amazon, Jeff Bezos paga em dia e, em vez de fazer consignação (pegar o livro “emprestado”, vender, informar que vendeu e, só então, pagar, num espaço de aproximadamente noventa dias), compra.

Sabemos das tremendas dificuldades que uma pequena livraria enfrenta no Brasil e não queremos comparar a estrutura de um pequeno estabelecimento de bairro com a da Amazon. Também sabemos que pouquíssimas cidades brasileiras contam com livrarias. Mas precisamos estabelecer uma relação mais firme de confiança e compromisso entre pequenas editoras e pequenas livrarias, se quisermos continuar existindo — ou se quisermos continuar existindo sem nos tornarmos reféns da Amazon, que está em franca expansão no Brasil, muito provavelmente devido ao fechamento de mais unidades da Saraiva e da Cultura — as duas grandes redes nacionais que já vinham mal antes da covid-19 — e ao crescimento experimentado pela empresa durante as medidas de restrição de mobilidade provocadas pelo surto de coronavírus — o que se expressa pela multiplicação da fortuna de Jeff Bezos.

Em 2020, a Amazon, que já tinha um centro de distribuição em Cajamar (SP), inaugurou mais um em Cabo de Santo Agostinho (PE) e anunciou a abertura de outros três, em Brasília, Betim (MG) e Nova Santa Rita (RS).

Há quem diga que, com a cabeça povoada das ideias expostas neste texto e de algumas outras de mais complexa tradução verbal, estamos na contramão do mercado ou da história. Sim, você pode achar cafona, mas, para nós, só vale a pena estar no mercado (que, afinal, é praticamente inescapável) de mãos dadas — não com algoritmos nem com bilionários, mas com pessoas como nós, que gostam de sentir o cheiro de tinta quando abrem um livro novo, que se satisfazem ao passear demoradamente os olhos por prateleiras repletas de lombadas coloridas, que caminham pela rua, trocam ideia, contam da vida, tomam café, reclamam, elogiam, são chatas, são incríveis, são insuportáveis, surpreendem, decepcionam, enfim, que são seres humanos.

Para nós, publicar livros têm a ver com isso. Porque, como diz o escritor espanhol Jorge Carrión, “um livro é um livro é um livro”. E, como temos visto dia após dia, um algoritmo é um algoritmo é um algoritmo. Não pode haver nada mais distante de um livro do que um algoritmo projetado para enriquecer um bilionário.



segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

OUTRA MATÉRIA DE RELEVANTE INTERESSE


Livros autorais: autopublicação e editoras de pequeno geram oportunidade para novos autores.

Normalmente no Dia Nacional do Escritor (25 de julho) lembramos logo dos autores reconhecidos dentro e fora do Brasil, como Jorge Amado, Érico Veríssimo, Rachel de Queiroz, entre outros. Mas, isso vem mudando. Além dos renomados escritores, diversos autores iniciantes vem ganhando a admiração do público leitor.

O fotógrafo e artista audiovisual baiano Gilucci Augusto faz parte dessa “nova geração” e está estreando na cena literária com o livro intitulado “Nuances – Entre Luzes e Sombras”. Tendo Fernando Pessoa como sua maior inspiração, Gilucci não sabe ao certo como embarcou nesse universo, a sua única certeza é que nunca atuaria em apenas uma área. “Eu nasci e fui criado em Santo Antônio de Jesus, recôncavo baiano. Mas em paralelo a isso, frequentava muito Salvador. Então, eu transitava por vários contextos socioculturais e políticos. E do mesmo modo que a minha vida foi bem diferente em vários aspectos, minha cabeça também passou a funcionar assim. Ter várias ocupações para mim é natural. Uma coisa alimenta a outra, não existe uma hierarquia”, assegura.

Acostumado a ser visto como um artista das imagens, Gilucci ainda está se adaptando com a nova condição ao adentrar na cena literária sem perder a imagem simbólica que dá sentido a todos os seus trabalhos: o devaneio. “No sentido atribuído pelo autor Gaston Bachelard, o devaneio é algo que me interessa muito na tentativa de me confundir e confundir os outros, misturando ficções e realidades de modo a perder-me nesse fluxo e não mais saber o que é o quê.

Rita Queiroz escritora, optou também por editoras de pequeno porte para apresentar seus textos ao mercado. “São editoras que incentivam muito o escritor desconhecido do grande público, principalmente aqueles que estão lançando o seu primeiro livro”, ressalta a autora que acaba de lançar sua obra de estreia voltada para o público infanto-juvenil, Ciranda, Cirandinha: vamos brincar com Poesia?. Doutora em Letras e professora da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Rita tem outros três livros voltados para adultos já publicados. Desde 2015, quando criou a Confraria Poética Feminina, vem trabalhando para intensificar sua produção literária. “O espaço da mulher na literatura ainda é menor do que o dos homens. Por isso, buscamos atuar em conjunto para discutir sobre autoria feminina”.

Quem está satisfeita com a alternativa de autopublicação é a escritora Silvia Noronha. Ela Quem está satisfeita com a alternativa de autopublicação é a escritora Silvia Noronha. Ela autopublicou o seu primeiro livro de contos sobre o cotidiano A obesidade dos cães e outros contos na plataforma digital Amazon. “Para mim foi uma maneira de começar. Eu não queria perder tempo e achei que a autopublicação era a forma mais rápida para ir experimentando, pois tinha vontade de publicar, mas não lançava. Além disso, encontrar uma editora que apostasse em uma pessoa completamente desconhecida ia levar tempo”, explica Noronha, que também é jornalista e está satisfeita com o resultado.

Agência Educa Mais Brasil

domingo, 3 de janeiro de 2021

AS MULHERES NA LITERATURA DE SANTA CATARINA

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Conheça a nova geração de autoras catarinenses e as pioneiras no mundo das letras.

Carol Macário, Florianópolis. - 26/05/2013

 

Superadas as mágoas da memória patriarcal e a necessária queima de sutiãs em praça pública em que mulheres ergueram suas bandeiras de liberdade depois de séculos de submissão, finalmente é possível gozar de maior igualdade de gêneros, e em todos os sentidos. Especialmente nas letras (a literatura muito reflete a vida real) se observa que a delicadeza, sensibilidade ou percepção intuitiva do mundo não é exclusividade feminina, bem como racionalismo e objetividade (e às vezes, por que não?, grosseria) não é aptidão masculina. Não existe literatura feita por homens ou mulheres. Existe a boa ou a ruim.

Mas no século 21, passado um tempo relativamente curto do período em que mulher que publicava livro era considerada exibida, elas praticamente dominam o universo literário. Em Santa Catarina, cinco anos atrás, o escritor de Jaraguá do Sul, Carlos Henrique Schroeder, já anunciava que havia mais mulheres escrevendo do que homens. O fenômeno é desencadeado pela nova geração de autoras, jovens (muitas abaixo dos trinta anos) e bem mais desapegadas do que os homens.

"Eu aposto minhas fichas nas escritoras, elas estão mais descoladas, menos provincianas, experimentando mais, e são menos birrentas quando o assunto é escrita, na literatura os homens são mais invejosos e traiçoeiros", diz o autor.

Não só em Santa Catarina como em todo o Brasil, a literatura escrita por mulheres só aparece no começo do século 20. Ainda que produtivas, como lembra a pesquisadora Zahidé Muzart, 73, que em 1999 publicou o livro "Escritoras brasileiras do século 19", estudo pioneiro na área, elas foram excluídas dos catálogos literários, feitos quase que unicamente pela crítica e historiografia masculinas.

Passadas revoluções culturais e sexuais, as mulheres de hoje do Estado estão desprendidas ao ponto de extravasar suportes e levar a literatura para outros universos.


Literatura além do papel

Aos 27 anos, Ryana Gabech tem quatro obras publicadas, nem todas em livro. "Sempre achei que as coisas não eram separadas". Ela nasceu em Campinas, mas passou parte da infância em Itajaí e depois mudou-se para Florianópolis. Sua escrita beira a poesia, a música, a performance, as artes visuais. "Trabalho a poesia em diversas dimensões. Alguns poemas são feitos para o papel, outros não. E o redescubro também nas artes plásticas ou no som", diz ela.

Ryana integra uma geração que experimenta mais, transborda o papel e faz a literatura se libertar do tradicional. Assim como ela, outras autoras também atuam nas artes visuais, como Raquel Stolf e Sivana Leal, por exemplo. "Eu e vários poetas trabalhamos para que ele se alastre, o poema. A poesia quer ocupar outros espaços", diz. Dentre as suas obras, destaque para "A data invisível do poema" e "Trêmulo".

Bruna Konder, 27, apesar de ser uma romântica à moda antiga, mulher intensa, personagem de um romance parnasiano que inclusive adota um pseudônimo, é outra jovem que experimenta a literatura tanto por meio do tradicional livro, quanto com a escrita na internet e a transformação das histórias em filme.

Ela é estudante de cinema e está produzindo uma videoarte sobre os diálogos entre ela e os ex-namorado, escritos no seu blog, o Redoma de Cetim (www.redomadecetim.blogspot.com.br) - quem assina é seu alterego, Carlota Violeta. Neta de Márcia Konder, escritora e atriz, Bruna publicou o primeiro livro no ano passado, "Luxuriosa Catarse" (Bernúncia Editora), em que reuniu textos, a maioria poemas de seu diário pessoal. "Toda menina tem um diário, eu tinha um e colocava detalhes da minha vida. Comecei a escrever aos 19, terminei aos 23." Na obra, ela esmiúça com escrita refinada e leve ironia (Ora o peso da vida, da arte, dos sensíveis lhe cai nas costas e na mão que escreve) detalhes dolorosos de sua trajetória  amores e desamores, a doença não usual em jovens, descoberta há poucos anos - (distonia pré-parkinson), ser jovem afinal.    

 

Jovem maturidade

Apontada por Carlos Henrique Schroeder como “uma autora de pegada”, Patrícia Galelli, 24, vai publicar seu primeiro livro no dia 11 de julho, na Capital. “Carne Falsa” é um trabalho de sete anos, iniciado quando ela tinha 17 anos. “A literatura é um trabalho pesado”, diz, com maturidade. A obra não é autobiográfica, mas passa algumas impressões suas, revoltas, pensamentos sobre a morte, o amor, o sexo, “coisas que fazem parte da nossa construção enquanto ser humano”, explica.  Tudo isso em 50 micronarrativas ou pequenos contos. “Sou escritora por um acidente cósmico”, afirma. Nascida em Concórdia, ela mora em Florianópolis há dois anos e é formada em comunicação social. “A literatura quer deformar a realidade. Ela tem com uma quebra de linguagem e faz com que as coisas habituais tornem-se percebidas.” A escrita, no caso dela, acontece mesmo como intuição. “Essa vontade vem de um encantamento pelo mundo, e ao mesmo tempo uma indignação.”


“Madame Bovary c’est moi”

Para a escritora de Florianópolis Edla Van Steen, 76, não existe literatura escrita por homem ou por mulher. Ela recorre a uma história conhecida para exemplificar, de quando perguntaram ao francês Gustave Flaubert (1821 – 1880) quem é Emma Bovary, protagonista do romance “Madame Bovary”, publicado em 1857. Ele respondeu: ces’t moi. Sou eu.  “Para mim não importa o gênero”, concorda Patrícia Galelli.

“Tem muitos homens que escrevem com extrema sensibilidade. E tem mulheres que escrevem tamanhas grosserias”, observa a escritora Urda Alice Klueger, 61. Ela tem 21 livros publicados, entre romances históricos, crônicas e literatura infantil, além de participações em coletâneas.

A discussão sobre gênero, hoje considerada ultrapassada, faz sentido quando se volta um pouco na história e se descobre o quanto as mulheres demoraram a aparecer no universo literário – muito mais por falta de espaço formal do que por falta de produção. “As mulheres que escreviam poesia eram nobres e decentes. Romance não era para uma senhora, então tinha que ser uma coisa mais velada”, afirma Zahidé Muzart.

 

As Pioneiras

“D. Narcisa de Villar” é considerado o primeiro romance escrito por mulher em Santa Catarina. Foi publicado em 1859 por Ana Luiza de Azevedo Castro (1823 – 1869), professora de São Francisco do Sul. “O pseudônimo era bastante usado”, diz Zahide Muzart. Ana Luiza, para defender-se da crítica, usou Indígena do Ipiranga para contar uma história de amor entre uma filha de fidalgos e um índio. “Em alguns romances notam-se também que os protagonistas tinham final trágico. A morte seria a saída em alguns casos, como um castigo”.

Eglê Malheiros também lembra que muitas mulheres escreviam poesia em meio aos cadernos de receita, como disfarce. Já outras tinham uma vida com doses de clausura ou loucura, como Júlia da Costa (1844 – 1911), de São Francisco do Sul. Tendo que casar ainda jovem com um homem mais velho e rico, como escreveu Celestino Sachet em “A literatura dos catarinenses”, ela teve o mérito de ser a “primeira mulher que se abriu para a vida valendo-se do poema, que lhe garantia canais de comunicação no jornal e no livro.”

Além de Ana Luiza e Júlia, outras pioneiras foram Delminda da Silveira (1854-1932), que escreveu 22 singelos contos em que exorciza fantasmas e cria metáforas para suas fantasias eróticas; Antonieta de Barros (1901 – 1952), que embora tenha sido professora e a primeira deputada do Estado, publicou no livro “Farrapos de Ideias” suas crônicas e idéias avançadas sobre o mundo; e muitas outras, como Lausimar Laus (1916 – 1979), Maria Carolina Corcoroca de Souza (1854 – 1910) e Gestrud Gross Hering (1979 – 1968).

“Santa Catarina não era nada dois, três séculos atrás. E depois tinham as colônias de imigrantes, e nesses lugares falava-se o idioma da terra natal. Portanto as pessoas escreviam e muito, mas em suas línguas maternas. Por isso muitas autoras passaram batido”, observa a escritora e historiadora Urda Alice Krueger.

 

Desbravadoras do século 20

Quando Edla Van Steen publicou seu primeiro livro em 1963, o caminho já havia sido aberto por outras autoras brasileiras – ela lembra Raquel de Queiroz (1910 – 2003) e as primeiras catarinenses. “Antigamente mulheres publicavam só poesia, e escritoras como a Raquel trouxeram qualidade de texto. Eu já cheguei com tudo aberto”, diz. Edla tem 29 obras publicadas, entre contos, romances, entrevistas, peças de teatro, biografias e livros de arte – quatro delas traduzidas para o inglês. “Quando penso que não tenho mais o que dizer, sento e digo muito.”

A escritora e tradutora Eglê Malheiros, 84, nascida em Tubarão, também encontrou caminho aberto nas letras quando nos anos 1950 e 1960, junto com os intelectuais do Grupo Sul, fez uma revolução artística e cultural em Florianópolis. “Quando comecei a escrever ainda era necessário às mulheres se afirmarem e reafirmarem a todo instante.” Ela tem uma produção pequena se comparada à de Edla – um livro de poemas “Manhã”, de 1952, e duas histórias infantis “Desça menino” (1985) e “Os meus fantasmas” (2002), além de contos e artigos publicados em coletâneas. Começou a publicar crônicas na revista “Sul”, periódico que circulou entre 1947 e 1957.

Ela e o companheiro inseparável Salim Miguel, 89, continuam em ampla atividade – Eglê tem tantos textos que dariam para publicar outros livros. “Ninguém escreve para não ser lido”, diz ela, sobre seu processo criativo. E conclui: “tenho que dedicar algum tempo para reunir tudo e publicar.”

Sobre as autoras do século 20, o escritor Celestino Sachet lembra algumas escritoras que também reverberaram no século passado, como Maura de Senna Pereira (1904 – 1991), jornalista, professora e escritora que insurgiu contra a mesmice e conservadorismo da Capital em meados do século passado.

CASA DA LITERATURA CATARINENSE

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